
Outra mesma guerra, há 170 anos atrás
Camilo Domingues analisa a atuação da Rússia na Guerra da Crimeia (1853-1856) e suas similaridades com o atual conflito na Ucrânia.
Publicado em 11/10/2022 // 1 comentário
Por Camilo Domingues
O século XVIII marcou o longo processo de entrada da Rússia no rol de grandes impérios europeus em constituição à época. O esforço modernizador e dito civilizatório de sucessivos czares e czarinas, a começar por Pedro I, foi coroado com a vitória de Alexandre I sobre Napoleão em 1812 e com o seu protagonismo no Congresso de Viena em 1815. No entanto, apesar do crescente prestígio que o Império Russo adquiria entre os impérios europeus, o seu sucesso militar sobre a Grande Armée, a sua liderança diplomática no Congresso de Viena e a constituição da Santa Aliança também alimentaram a suspeição a respeito de suas ambições expansionistas. A sua fulminante entrada no Concerto da Europa (Grã-Bretanha, França, Áustria e Prússia) não eliminou de imediato o preconceito ocidental a respeito de seu caráter semiasiático e semibárbaro. De modo que o êxito militar e diplomático da Rússia marchava ao lado da desconfiança em relação ao que almejavam e seriam capazes os russos.
Após 1812, a chamada “ameaça russa” pôs em alerta as novas lideranças políticas que passaram a surgir na Europa. Em 1831, após o czar Nicolau I suprimir o Levante de Novembro (guerra de libertação da Polônia), o líder da insurreição, o príncipe Czartoryski, refugiou-se na Inglaterra. Ali se organizaram inúmeras manifestações em protesto contra a intervenção russa. O movimento cartista, por exemplo, declarou em seu jornal: “A menos que a nação inglesa se levante, veremos o espetáculo condenável de uma frota russa armada até os dentes e repleta de soldados ousar navegar no Canal da Mancha!”
Entre 1847 e 1849, durante a Primavera dos Povos, a Rússia agiu novamente a fim de conter os movimentos revolucionários que despontaram na Europa e de salvaguardar o princípio legitimista da Santa Aliança. Dessa vez, Nicolau I enviou 190 mil soldados para auxiliar a coroa austríaca a suprimir a Revolução Húngara. Seria Karl Marx quem daria voz à campanha contra a Rússia, considerada inimiga da liberdade, o “gendarme da Europa”: “A Rússia é decididamente uma nação conquistadora, e assim foi por um século, até que o grande movimento de 1789 trouxe à atividade um antagonista de natureza formidável. […] Desde aquela época há na realidade apenas duas potências no continente europeu – a Rússia e o Absolutismo, a Revolução e a Democracia”.
Aos poucos, principalmente na Grã-Bretanha e na França, constituiu-se uma imprensa identificada com valores fossem liberais, fossem revolucionários, mas intensamente russofóbica. Na Grã-Bretanha, o principal porta-voz daquela tendência foi o jornalista David Urquhart (para cujos jornais o próprio Marx enviou contribuições). Na França, além dos periódicos católicos, o principal expoente seria o Marquês de Custine, que publicou La Russie en 1839, relato de viagem que se tornou um bestseller continental, popularizando a expressão com que cunhou a Rússia: “império de fachadas”.
Nos limites daquele império, o risco de que a imprensa noticiasse os acontecimentos da Primavera dos Povos e alvejasse o próprio regime fez com Nicolau I intensificasse a ação dos órgãos de censura a partir de 1848. Em abril daquele ano, o Comitê Miénshikov, que coordenava a ação da censura no império, alertou sobre o caráter “repreensível e ambíguo” dos jornais Anais da Pátria e O Contemporâneo. Na mesma ocasião, o czar inaugurou o “Comitê Supremo de Supervisão do Caráter e Orientação das Publicações Privadas na Rússia”, ou Comitê Buturlín, nova instância supervisora da censura política, concorrendo com a Terceira Seção e com o Ministério de Instrução Pública. As perseguições e o denuncismo constituíram o clima de terror na limitada esfera pública do império. Nem mesmo os principais escritores eslavófilos, como Konstantín Aksákov, foram poupados pela censura: a sua exaltação da naródnost e do campesinato russo aproximava-se, perigosamente, dos ideais democráticos de 1848.
A censura seria ainda mais acirrada nos anos seguintes, durante a Guerra da Crimeia. Naquela que seria a primeira “guerra moderna” e de intensa cobertura da imprensa ocidental, com as novidades da fotografia, do telégrafo e das estradas de ferro, o czar proibiu que periódicos não-oficiais enviassem correspondentes ao front. Na Rússia, apenas os jornais militares noticiaram os acontecimentos da guerra (com a exceção do periódico civil Abelha do Norte). Não fossem os registros do jovem Conde Liév Tolstói, que serviu durante a guerra, os russos teriam ficado sem nenhuma versão não-oficial dos eventos.
Para Nicolau I, as medidas internas e externas desde 1830 dirigiam-se apenas à preservação do princípio legitimista da Santa Aliança e à prevenção para que as rebeliões ocidentais nacionalistas não servissem de exemplo a outras minorias sob domínio turco, russo ou austríaco, como os sérvios, búlgaros e romenos. Agia como árbitro de uma Europa que percebia como decadente, dividida e em vias de desagregação, devido às perturbações sociais e políticas provocadas pela ascensão de ideais liberais, democráticos e revolucionários. Os arroubos nacionalistas também afrontavam as pretensões expansionistas da ortodoxia russa, causa em nome da qual o czar não poupava esforços diplomáticos, nem soldados.
A questão religiosa, de fato, foi o estopim para o início da Guerra da Crimeia, que opôs o Império Russo aos impérios aliados Turco-Otomano, Britânico e Francês. Em novembro de 1852, após pressão francesa, os turcos garantiram aos católicos o direito de também possuírem uma chave de acesso à Basílica da Natividade. A decisão do Sultão de prover o acesso à Natividade, antes exclusivo dos cristãos ortodoxos, também aos católicos, foi interpretada como uma afronta pelo czar.
Em fevereiro de 1853, Nicolau I deslocou mais de 120 mil soldados para a Bessarábia e para os principados do Danúbio (onde alguns dos súditos otomanos já haviam recebido passaporte russo), e enviou o príncipe Miénshikov para que este ultimasse o Sultão a restabelecer os privilégios da Igreja Ortodoxa na Terra Santa. Apoiado pelos impérios britânico e francês, o Sultão recusou o ultimato. Em junho daquele ano, o czar ordenou a invasão dos principados semiautônomos do Danúbio (Valáquia – atual Romênia – e Moldávia). Simultaneamente, publicou manifesto no qual garantia que a Rússia não possuía pretensões expansionistas, mas que apenas visava a preservar os privilégios religiosos: “Estamos dispostos a estacionar as nossas tropas se a Porta garantir os direitos invioláveis da Igreja Ortodoxa”.
França e Grã-Bretanha deslocaram as suas frotas para as proximidades do Estreito de Dardanelos, como demonstração de apoio militar aos turcos. A Áustria, por sua vez, deslocou 25 mil soldados para a sua fronteira sul, temendo que a Rússia instigasse os sérvios a sublevarem-se contra a coroa. Enfim, no final de setembro de 1853, não obstante a indecisão das demais potências, o Sultão Abdul Mejide I decidiu declarar guerra à Rússia.
Apesar da campanha militar em nome da Ortodoxia, os próprios soldados russos ignoravam os motivos – até mesmo o território – de sua mobilização. Mal treinados, mal armados e mal alimentados, a maioria dos soldados morreria fora do campo de batalha, devido a doenças e a ferimentos. Os oficiais corrompiam as redes de abastecimento das tropas, fazendo com que os soldados fossem obrigados a providenciarem a sua própria ração alimentar, a roubarem ou a saquearem. Segundo o testemunho de Tolstói: “Não temos exército, temos uma horda de escravos intimidados pela disciplina, comandados por ladrões e mercadores de escravos […] Tudo o que possui são, por um lado, paciência passiva e descontentamento reprimido e, por outro, crueldade, servidão e corrupção”. Apesar de ser o maior exército do mundo à época, a organização e a condição da soldadesca russa eram menos precárias apenas que aquelas do Império Turco-Otomano.
A Rússia havia partido para a guerra com fragilidades também do ponto de vista estratégico. Em primeiro lugar, o czar errou ao acreditar que a Áustria seria sua aliada natural. Os austríacos também suspeitavam das pretensões expansionistas da Rússia e optaram por uma neutralidade armada. Em segundo lugar, Nicolau I duvidou que as rivalidades históricas entre britânicos e franceses pudessem ser deixadas de lado em nome de uma aliança contra a Rússia e a favor dos turcos. Em terceiro lugar, demonstrou demasiada confiança em sua diplomacia, na superioridade de suas forças armadas e na sagrada proteção que a Igreja Ortodoxa conferiria ao império. Por último, não contou com a resistência das forças turcas (Nicolau I repetia que o Império Turco-Otomano era o “homem doente da Europa”). No entanto, no primeiro ano da guerra, os turcos defenderam-se praticamente sozinhos das investidas russas na Valáquia e na Moldávia. Como sintetizou Marx, em julho de 1854: “Todos podem ver agora que ele [o czar] começou a guerra de maneira imprudente e inadequada”.
No final de julho de 1854, as forças turcas derrotaram os russos e retomaram o controle sobre os principados danubianos. O conflito, portanto, estaria terminado, não fossem as declarações de guerra dos britânicos e franceses contra a Rússia no final de março. Certamente, os seus objetivos não se limitavam à defesa territorial do Império Turco-Otomano. França e Inglaterra nutriam interesses expansionistas e econômicos em relação aos domínios turcos. A Grã-Bretanha interessava-se, sobretudo, pela abertura financeira e de mercados para as suas manufaturas. A França, por sua vez, almejava reconquistar o controle do Mediterrâneo e impingir uma revanche contra as forças russas. Ambas, finalmente, reagiam em nome das religiões cristãs ocidentais e em prevenção à propalada “ameaça russa” que agitava a imprensa ocidental.
A entrada efetiva dos dois maiores impérios europeus na Guerra Russo-Turca foi o que a transformou, de fato, na Guerra da Crimeia, pois as potências aliadas definiram como objetivo comum destruir a frota russa no mar Negro, estacionada em Sevastópol. Tratar-se-ia, a partir de então, de uma verdadeira guerra europeia, a maior até então em poder destrutivo. Em janeiro e fevereiro de 1854, o publicista russo Aleksándr Herzen já havia alertado sobre o perigo daquela nova guerra Russo-Turca se transformar numa efetiva guerra continental: “o imperador Nicolau soa o alarme ao iniciar uma guerra inútil, religiosa, fantástica, uma guerra que pode muito bem ultrapassar as margens do Mar Negro até as margens do Reno”.
Entre 1854 e 1855, o cerco dos aliados a Sevastópol foi o responsável pelo maior número de perdas durante a guerra, em ambos os lados do conflito. A cidade foi completamente destruída e, após a rendição e evacuação das tropas russas, no início de setembro de 1855, em torno de 750 mil militares e civis haviam sido mortos, quase dois terços deste total, russos. Apesar de ter havido crimes e atrocidades de ambas as partes, impressionavam os soldados aliados os milhares de corpos de soldados russos abandonados por suas tropas.
A partir de então, as conversações diplomáticas arrastaram-se até o início de 1856, quando, em 30 de março, foi assinado o Tratado de Paris. Este previa fortes punições à Rússia, os chamados “quatro pontos”: a renúncia dos seus direitos especiais sobre os principados danubianos e sobre a Sérvia; a liberação da navegação no Danúbio a todas as nações; a abertura da navegação comercial no mar Negro e o impedimento de que a Rússia estabelecesse ali nova frota militar; a renúncia da sua tutelagem sobre os povos cristãos em território turco que, a partir de então, seria realizada pelo conjunto dos impérios europeus.
Apesar de ter cedido quase nenhum território – apenas uma região da Bessarábia à Áustria – tratou-se de uma fragorosa derrota militar e moral para a Rússia, que se viu temporariamente isolada do novo Concerto da Europa. A Alexandre II, o novo czar, havia ficado claro que as causas da derrota russa iam além de questões militares: tratava-se do relativo atraso social, econômico e tecnológico-militar do império em relação aos britânico e francês. A partir de então, dar-se-ia impulso a uma nova grande reforma do Estado russo, com vistas à sua modernização, a qual previa a sua restruturação militar e econômica, e o fim da servidão. Feitas pelo alto, tais reformais não poderiam colocar em risco a aristocracia. Apesar disso, por força de tais reformas e de sucessivas rebeliões populares, a tricentenária dinastia Románov seria destituída do poder 60 anos depois, e a Rússia retornaria a gozar do mesmo poder – e temor – em relação às potências europeias apenas após 1945.
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Em janeiro de 1853, o jornal Gazeta Renana, editado por Marx, publicou um artigo crítico à monarquia russa. O czar Nicolau I intercedeu junto ao imperador prussiano, que suprimiu o jornal em 1º de abril. Em março, Marx afastou-se da sua redação e exilou-se na França. Já Herzen partiu com a sua família para uma viagem à Europa em 1847, de onde não mais retornaria à Rússia. Escapou de repetidas detenções, exílios internos e da constante ameaça czarista a fim de poder exercer, na Europa Ocidental, as suas atividades de publicista e militante. Em 1863, detido na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, outro publicista russo, Nikolai Tchernychévski, tentou publicar uma tradução da obra A Invasão da Crimeia, do inglês Alexander Kinglake. A publicação foi impedida pela censura, sendo permitida apenas no ano de 1890. Em nome desses três publicistas perseguidos, censurados e detidos pelo regime czarista, eu presto a minha solidariedade a centenas e milhares de jornalistas e demais trabalhadores(as) russos(as) que, corajosamente, se opõem à atual invasão russa à Ucrânia. Não raro, são ameaçados(as), detidos(as), processados(as), obrigados(as) a pagar pesadas multas, quando não são forçados(as) ao exílio. Estima-se que mais de uma centena de milhares de russos(as) já tenham deixado o seu país desde o último 24 de fevereiro.
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A Ucrânia também tem uma história própria e independente do Império Russo, da União Soviética e da atual Federação Russa. Em defesa de sua existência, de sua história e de sua soberania, e em solidariedade aos milhares de mortos(as) vitimados(as) pela atual invasão russa, e milhões de refugiados(as) obrigados(as) a deixarem o seu país, eu termino com as palavras apaixonadas e, no limite, ufanistas, de Herzen: “A Ucrânia era uma república cossaca e agrícola, organizada militarmente em bases completamente democráticas e comunistas. Sem centralização, sem governo forte, governando-se por costumes que não aceitavam nem a supremacia do czar de Moscou, nem a do rei da Polônia. Não há vestígios de aristocracia nesta república rudimentar; todo homem adulto era um cidadão ativo, todos os cargos eram eletivos, do decurião ao Hetman. Observe que esta república existiu do século XIII ao século XVIII, defendendo-se continuamente contra os moscovitas, os poloneses, os lituanos, os turcos e os tártaros da Crimeia”.
Fontes: A. Herzen, C. Ruud, I. Tarle, K. Marx, L. Tolstói, M. Malia, N. Tchernychévski e O. Figes
Margem Esquerda #39 | 2° semestre de 2022

A última edição da revista da Boitempo tem como tema central a guerra, eixo que atravessa não apenas as análises sobre o conflito na Ucrânia, como a reflexão sobre a extrema-direita brasileira, a radiografia da tensa dinâmica de forças na Amazônia hoje, e o debate marxista sobre a inteligência artificial e a crise do trabalho. Colaboram com este número Marly Vianna, David Harvey, João Quartim de Moraes, Paulo Arantes, Alex Callinicos, Tomasz Konicz, Marcos Barreira, Angelo Segrillo, Marcelo Ridenti, Douglas Barros e muitos outros…
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