sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Estádio do Pacaembu.

 

Pacaembu, a voracidade sem fim das privatizações urbanas

Depois de se apropriar de estádio e centro cultural erguidos com participação de Mario de Andrade, concessionária privada quer, sem ônus, a praça histórica que o circunda. Prefeitura pensa ceder. População pode impedir arranjo desastroso

Ao fundo, o estádio do Pacaembu. Em primeiro plano, parte da imensa praça que o rodeia. Empresa privada quer tirá-la da população para explorá-la comercialmente em proveito próprio

Nasci e fui criado na região de Santo Amaro, Jardim Primavera, na zona sul da cidade, onde tínhamos o nosso time de futebol de campo e de salão. Sonhávamos a cada campeonato chegar às fases finais, pois os jogos aconteceriam em um dos templos do futebol: o estádio do Pacaembu. E não apenas no futebol, mas no vôlei, basquete, natação, entre outros esportes, o Pacaembu era o cenário perfeito para receber os alunos das escolas públicas, não só da região sul, mas de toda a cidade de São Paulo. Disputar os jogos no Pacaembu era como se estivéssemos indo às Olimpíadas, tão magnífica que era a experiência.

O que se via naquela época era a oportunidade que nós adolescentes, jovens, alunos da periferia, tínhamos de praticar esportes em um espaço semelhante aos clubes particulares da cidade, os quais somente os mais ricos podiam frequentar.

O Pacaembu também era o nosso estádio preferido para ver os jogos do meu Palmeiras. Aliás, o Palmeiras é o time que mais levantou taças nesse estádio. Estive presente na final do campeonato brasileiro de 1994, contra o Corinthians, quando nos sagramos campeões mais uma vez.

Essa convivência com o Pacaembu me educou, reforçou em mim a importância dos espaços públicos. Foi dessa vivência em espaços públicos acessíveis à população que me dei conta da importância da luta pelo direito à cidade.

Não foi com surpresa, mas com muita revolta que eu soube que o então prefeito João Doria planejava privatizar todo o complexo esportivo do Pacaembu. O curioso é que entre suas promessas de campanha à Prefeitura, em 2016, o Pacaembu não estava na lista das privatizações que reunia, entre outros, o Sambódromo do Anhembi, o Autódromo de Interlagos e o Parque do Ibirapuera.

Provavelmente porque se tratava de algo muito impopular, que ele preferiu esconder dos seus possíveis eleitores. João Doria funciona assim: ele pede o voto das pessoas se apresentando como um baita gestor e, quando eleito, empenha-se em privatizar tudo o que deveria gerir. E desde o começo do seu mandato como prefeito de São Paulo, em janeiro de 2017, empenhou-se em privatizar tudo. Algo semelhante ao que faz agora como governador, inclusive querendo privatizar o complexo do ginásio do Ibirapuera.

O complexo do Pacaembu foi inaugurado em 27 de abril de 1940. A cidade crescia em ritmo vertiginoso, alcançando naquela década mais de 1 milhão e 300 mil habitantes (hoje somos mais de 12 milhões, segundo estimativa do IBGE). O então prefeito Fábio Prado criou em 1935 o Departamento de Cultura e Recreação, comandado pelo escritor Mário de Andrade. Esse seria o departamento responsável pelas obras que começariam no ano seguinte. O projeto, em estilo Art Déco, foi assinado pelos arquitetos Ricardo Severo e Arnaldo Dumont Villares.

Desde o início, o objetivo era construir algo que fosse além do futebol, oferecendo aos cidadãos um espaço de lazer com piscina, quadras poliesportivas, pista de atletismo e uma belíssima Concha Acústica para apresentações musicais. A concha seria demolida no final dos anos 1960 para dar lugar ao chamado “Tobogã”, descaracterizando profundamente o projeto original. O primeiro de uma série de crimes contra esse patrimônio arquitetônico de todos os paulistanos.

Desde que tomei posse como vereador, em janeiro de 2019, com o processo de privatização já em andamento desde 2017, iniciamos um movimento de mobilização que reuniria atletas, usuários e moradores do bairro, todos contra a concessão do estádio do Pacaembu. A população, afinal, não foi sequer consultada sobre a privatização. O deputado Carlos Giannazi, que agora luta contra a destruição do complexo do ginásio do Ibirapuera, também fez parte desse movimento.

A empresa vencedora desse novo capítulo da privataria tucana daria um jeito, qualquer que fosse, de lucrar, que é o objetivo principal de uma companhia privada. Neste processo, como regra, o interesse da população é colocado em segundo plano. Aos poucos, a empresa vencedora da concessão vai criando meios de viabilizar o seu investimento e isso se dá, principalmente, por meio da cobrança para a utilização do espaço que antes era da população.

.

Naquele ano, lançamos um abaixo-assinado e acionamos o Ministério Público denunciado o desvio de propósito da concessão. Como denunciamos na época: todo o processo teve como objetivo apenas beneficiar o setor privado, implicando enorme prejuízo ao patrimônio público, histórico e arquitetônico.

Em 16 de setembro de 2019, esse crime se consumou com a assinatura da concessão do Pacaembu pelo novo prefeito Bruno Covas (vice de Doria, que mentiu descaradamente dizendo que não iria abandonar o cargo para concorrer ao governo estadual, mas fez exatamente isso, ficando apenas 15 meses à frente da Prefeitura). A outorga de todo o complexo foi arrematada por R$ 79,2 milhões.

Agora, alegando prejuízo, o grupo de empresas que venceu processo exige a revisão do contrato de concessão. “O consórcio que assumiu a administração do estádio do Pacaembu, a Allegra Pacaembu, pediu alterações nos termos do contrato firmado com a Prefeitura de São Paulo sob a justificativa de compensar prejuízos causados pela pandemia”, afirma reportagem publicada em 26 de janeiro no G1.

“Entre os pedidos está a redução de 71% do valor de outorga a ser pago para a prefeitura. Outra solicitação foi e a extensão do prazo de contrato por mais 15 anos, além dos 35 já firmados, completando 50 anos”, diz o texto de César Menezes e Paulo Gomes. Se essa exigência indecente se consumar, a cidade perderá, ao menos, R$ 10 milhões. E nessa conta só entra o prejuízo com a outorga!

Tem mais: a mesma reportagem acrescenta que “a concessionária também solicitou a inclusão da possibilidade de exploração comercial da Praça Charles Miller, que fica em frente à fachada do estádio, na Zona Oeste da capital paulista. O local não é contemplado no contrato atual.” Ainda que o prejuízo do consórcio fosse real, é justo socializar as perdas e privatizar os lucros? E como ficarão os seus frequentadores ou feirantes, que dependem desse espaço há décadas para sobreviver?

Tamanha bandalheira, felizmente, motivou uma apuração do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). O pedido de informações do Tribunal para a Prefeitura foi publicado no Diário Oficial da última sexta-feira, 28. O conselheiro Domingos Dissei solicita que todos os pedidos de mudança nos termos do contrato sejam submetidos e analisados pelo TCM-SP.

O nosso mandato seguirá denunciando esse assunto na Câmara e tomando todas as medidas cabíveis para que o interesse público prevaleça e os moradores de São Paulo sejam tratados como cidadãos detentores de direitos e não como meros consumidores que só podem usufruir da cidade pagando pelo que já é nosso.

Nenhum comentário: