sábado, 28 de janeiro de 2023

Leandro Demori: O dia da memória.

 

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O dia da memória

A queda do céu

Estive duas vezes no complexo de Auschwitz. Na segunda levei meu pai. Na primeira, sozinho, fiquei imerso nos meus próprios pensamentos. Tirei algumas fotos que publico aqui. Todo mundo deveria visitar lugares como aquele para nunca esquecer do horror que podemos ser.

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A boneca acima é um dos tantos objetos de memória que o museu do campo expõe aos visitantes. Há mais: óculos, malas, próteses, cabelos. Tiraram tudo o que podiam das pessoas. Os nazistas tentaram tirar até mesmo suas almas.

Há também no campo latas usadas de Zyklon B, o pesticida usado nas câmaras de gás para exterminar os prisioneiros. Mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas em Auschwitz.

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O agente químico era uma patente da IG Farben, fábrica alemã que usava, também, os prisioneiros dos campos como escravos em suas indústrias. Desfrutava de sua saúde e de seu trabalho, os adoecia e, depois, os matava com seu próprio veneno industrial.

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A IG Farben é, hoje, as marcas AGFA, BASF, Hoechst AG (Conglomerado Sanofi-Aventis) e Bayer.

Em um dia 27 de janeiro como hoje, mas em 1945, as forças soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz. É inevitável comparar as imagens macabras dos libertos dos campos daquele tempo com os Ianomâmis resgatados no Brasil nos últimos dias. Todos vimos as fotos, não as publicarei aqui.

Havia muitos modos de morrer nos campos de extermínio. Havia muitos modos de morrer também nas aldeias massacradas pela gestão assassina do Brasil dos últimos anos. Em ambos os casos – na Europa e aqui – o terror foi um projeto. Em ambos os casos, um projeto civil e militar.

O projeto anti-indígena no Brasil teve muitas mãos. Não sei se chegaremos aos verdadeiros responsáveis pelo horror que nossos olhos não queriam ver. Em tempos como o nosso, assim como em meados do século passado, a justiça parece artigo raro.


Este é um dos meus livros favoritos.

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Comprei essa mesma edição quando morava na Itália, uma década atrás. Primo Levi, o autor, foi um dos libertos pelo Exército Vermelho em 27 de janeiro de 1945. Ele seguiu com os russos até chegar em casa, na Itália. O livro conta a história.

Primo Levi sofreu na carne os males do nazismo e as injúrias da ofensa da lógica do regime. Dizia ele, sobre essa lógica:

"É errado pensar que a Justiça humana a extinguirá. Ela é uma inesgotável fonte do mal: quebra o corpo e a alma dos sobreviventes, extingue-os e torna-os abjetos; levanta-se como infâmia sobre os opressores, perpetua-se como ódio e se prolifera de mil maneiras, contra a vontade de todos, como sede de vingança, como renúncia moral, como negação, como cansaço".

É inútil pensar que a justiça dos homens trará de volta as crianças mortas nas aldeias Ianomâmis, a memória do que um dia aquelas crianças foram, a esperança do que poderiam ter sido ou pureza dos mais velhos que viram seus filhos e parentes morrerem. A lógica da morte do projeto anti-indígena se perpetuará.

É preciso – no entanto e mesmo apesar disso – que os responsáveis paguem pelo que fizeram. Senhoras e senhores em seus cargos de poder, escondidos atrás de seus casacos de general ou de suas bíblias profanadas.


Davi Kopenawa Yanomami, no livro A Queda do Céu: "Antigamente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas."

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"Desde que nos encontraram, os brancos não param de nos perguntar: “Quem são vocês? De onde vêm? Como se chamam?”. Querem saber o que nosso nome, Yanomami, significa. Por que tamanha insistência? Alegam que é para pensar direito. Achamos que, ao contrário, isso é ruim para nós. Que resposta lhe daremos?"

E nós, que resposta lhe daremos?

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