quinta-feira, 14 de março de 2024

Retrato da tragédia partidária brasileira.

 

União Brasil, retrato da tragédia partidária brasileira

Por trás da disputa interna “incendiária” que consome a legenda, suas duas origens: uma sigla egressa da ditadura e outra do fisiologismo multipartidista. Como pano de fundo, um problema central no país: a degradação da democracia

Luciano Bivar, presidente do União Brasil (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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O que acontece hoje no União Brasil, um dos maiores partidos do Congresso Nacional, seria só mais um episódio pitoresco se não representasse, em sua essência, parte dos elementos que trouxeram o país até o cenário político atual. Desde o período da redemocratização, quando se deu um fim ao bipartidarismo representado por Arena e MDB, únicas legendas permitidas pelo regime militar desde a instituição do Ato Institucional n° 2, em 1965, o país tem tentado ajustar seu quadro partidário, com regras novas praticamente a cada dois anos. No entanto, a crise de representatividade permanece e se aprofunda.

Antes, para quem não acompanhou as últimas notícias, um rápido resumo sobre o União Brasil. O presidente da legenda, Luciano Bivar, é acusado pelo futuro ocupante do cargo, Antonio Rueda, de ter feito ameaças a ele por conta da disputa pelo comando do partido. Além disso, o dirigente levantou suspeitas sobre Bivar em relação a dois incêndios que destruíram casas pertencentes a Rueda e a tesoureira do partido, sua irmã Maria Emília Rueda, no litoral de Pernambuco, em 11 de março.

Bivar negou as acusações e, em um evento no Palácio do Planalto na terça-feira (12), fez outra acusação. “São ilações. Por exemplo, a mulher do presidente foi no meu apartamento e roubou meu cofre. Essas coisas são acusações. Eu cedi confiantemente o segredo e ela roubou todo o dinheiro. Tinha um valor significativo”, disse.

Em deliberação da Executiva, a legenda decidiu aceitar a denúncia contra Bivar e abriu um processo pelo seu afastamento e expulsão da sigla.

Caminhos tortuosos

O cerne da disputa envolve desde a organização para as eleições municipais, uma disputa com ACM Neto e seu grupo, a candidatura presidencial do governador de Goiás Ronaldo Caiado e a participação no governo Lula (a legenda tem três ministérios). O dissenso é fruto de feridas mal cicatrizadas na própria origem do União Brasil.

Em 8 de fevereiro de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou a fusão de dois partidos, o Democratas (DEM) e o Partido Social Liberal (PSL), com 81 cadeiras na Câmara, tornando-se o maior partido da Casa, além de ter um fundo partidário de R$ 800 milhões para as eleições daquele ano. A dois dias do prazo final da janela partidária, no entanto, esse número já havia diminuído para 52 deputados, à época a terceira maior bancada na Câmara, posição que ainda sustenta hoje, atrás do PL e do PT. A debandada foi principalmente de bolsonaristas, que migraram em especial para o PL.

De lá pra cá, o União Brasil ensaiou uma união com o Podemos na fracassada candidatura presidencial de Sergio Moro, projetou uma pré-candidatura de Luciano Bivar em que ninguém acreditava de fato e lançou a senadora Soraya Thronicke (MS), que terminou a disputa na quinta posição com 0,51% dos votos válidos. No segundo turno, liberou os diretórios estaduais foram liberados para apoiar tanto Lula quanto Bolsonaro.

Hoje, embora tenha três pastas no governo Lula, o partido não entrega o que o compromisso em tese deveria assegurar. Seu índice de adesão às orientações do governo na Casa é de 54%, segundo levantamento de O Globo divulgado em janeiro. MDB e PSD, que também participam do governo, têm um postura distinta: os emedebistas votaram com o governo em 69% das ocasiões e os do PSD, 72%. O índice do União é mais baixo inclusive quando comparado a partidos que têm um ministério cada, como o PP (56%) e o Republicanos (58%).

Mobilização e queda

O perfil aparentemente contraditório do União retrata o padrão dos partidos no Brasil e é um dos fatores de perda da confiança dos cidadãos no sistema. A constante troca de legendas por parte do políticos, a facilidade com que mudam de nomes e, recentemente, as fusões, confundem o eleitor. E sistema proporcional nas eleições legislativas, mal ou praticamente não explicado para quem vota, faz com que a pessoa possa dar seu voto em um parlamentar moderado que vai ajudar a eleger um extremista de direita, já que eles podem conviver sob a mesma sigla.

Mas nem sempre as legendas tiveram essa percepção tão negativa por parte da população. “Em específico, a composição de cinco partidos estabelecida na Reforma de 1979, com o surgimento do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido Democrático Social (PDS), do Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT), não apenas reacomodou a velha classe política limitada ao anterior desenho bipartidário, mas canalizou preferências eleitorais novas que se consolidariam durante o processo de redemocratização”, explica em artigo a professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Rachel Meneguello. “Em 1982, o ano de eleições diretas para os governos estaduais já no processo de abertura política e antes da implantação do governo civil, em 1985, em pesquisa realizada em seis capitais brasileiras, aproximadamente 60% dos entrevistados consideravam que os partidos políticos tinham uma atuação positiva (“prestavam um bom serviço” contra a alternativa de que eram instituições “inúteis”), e 71% se identificavam com algum dos cinco partidos à época.”

Meneguello destaca que a alta porcentagem de identificação partidária na ocasião “indicava o elevado grau de mobilização e envolvimento político no eleitorado dos grandes centros urbanos no período final da ditadura militar”. “Esse dado corrobora a natureza regulada da mobilização política naquele período, em que partidos e eleições delinearam os caminhos da distensão, mas também ressalta o reconhecimento dos partidos pelo eleitorado como canais de organização dos conflitos entre o governo e a oposição ao regime militar, definindo novas perspectiva de desenvolvimento partidário”, pontua.

Também como efeito da redemocratização, o Brasil possuía em meados dos anos 1980 uma legislação muito permissiva para a criação de partidos e, entre 1985 e 1988, foram registradas 27 legendas no TSE. A insatisfação com o governo Sarney, que havia chegado ao poder de forma indireta, ancorado no PMDB e no PFL (dissidência do PSD, ex-Arena, legenda de sustentação da ditadura) acabou refletindo na eleição presidencial do ano seguinte.

A “inflação” partidária permitiu que o então governador de Alagoas Fernando Collor saísse do PMDB para se filiar ao Partido da Juventude (PJ), que se transformaria depois no PRN. Uma aliança com outros partidos menores PSC, PST e PTR, permitiu com que o pré-candidato tivesse acesso a programas partidários na TV (que à época tinham tempos iguais para todos) e alavancasse sal candidatura. Já as grandes legendas, PMDB e PFL, amargaram resultados modestos com seus candidatos na corrida presidencial.

As restrições a criações de partidos e o acesso a fundos eleitorais, partidários e tempos de rádio e TV foram aumentando com o decorrer dos anos, mas o estrago em parte já havia sido feito, seja em relação às legendas, dominadas por elites partidárias que poderiam decidir os rumos ou mesmo a extinção e/ou fusão de acordo com interesses muitas vezes pouco republicanos, seja na forma como os cidadãos enxergavam os partidos e se identificavam com eles. Poucos resistiram
à transformação em conglomerados de interesses difusos e as siglas passaram a servir mais como veículos do que como condutoras da vida política nacional.

O PSL surge justamente neste contexto, em 1994, fundado pelo empresário Bivar, conseguindo o registro em 1998. Chegou a abrigar o movimento Livres entre 2015 e o início de 2018, cujos integrantes defendiam o liberalismo na economia e também no campo dos ditos costumes. Mais tarde, no mesmo ano, abrigaram a candidatura presidencial de Jair Bolsonaro, acolhendo diversos outros candidatos a diferentes cargos que professavam a mesma cartilha do então deputado federal.

Confiança institucional

Em entrevista concedida em outubro do ano passado, o pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) da Unicamp, Marcos Nobre, já havia alertado que o enxugamento do número de legendas partidárias havia proporcionado um rearranjo no cenário político, criando situações que ficam evidenciadas com o episódio da briga interna no União Brasil.

“A reforma eleitoral de 2017 produziu efeitos benéficos, como a redução do número de partidos efetivos. Por outro lado, desorganizou as legendas. Embora as cúpulas partidárias tenham se fortalecido com a proibição de financiamento empresarial e a criação dos fundos eleitorais, há desde então dificuldade de produzir disciplina em votações e decisões uniformes”, pondera. “A cláusula de barreira fez forças contrárias conviverem no mesmo partido, como o União Brasil, por exemplo. Soma-se a isso o fato de que há, a partir de 2018, uma divisão ideológica forte do país. Isso faz com que, dentro de um mesmo partido, haja gente votando com e contra o governo.”

Além de dificultar a negociação política, a fragilidade dos partidos empurra eleitores a um engajamento movido pelo personalismo. Legendas seduzem menos do que influencers e youtubers, que ostentam bandeiras e um ideário menos fluido que a maioria das siglas. O próprio aprendizado e fazer político se dá por ali ou por instituições como igrejas ou mesmo em grupos de Whatsapp. Meneguello chama a atenção para o fato de que “um dos mais importantes indicadores de avaliação do papel dos partidos para o funcionamento da democracia é a confiança institucional”, ou seja, não surpreende o fato de o Brasil ter baixas taxas observadas durante todo o período. “Os dados entre 1989 e 2020 mostram que, à exceção de apenas um ponto no tempo, o ano 2002, as porcentagens de confiança não seguiram muito além dos 30%, e mesmo assim, em 2002, pouco ultrapassou 40%. Também cabe salientar que o ano 2018, ano das eleições gerais que redefiniram a correlação entre forças partidárias e a composição das elites eleitas, a confiança nos partidos chegou à menor taxa de 12%.”

Lembrando que 2002 é o ano da primeira eleição de Lula e 2018, o da eleição de Bolsonaro, o que pode sugerir o impacto que a falta de confiança no sistema partidário tem em termos práticos. “Embora a desconfiança política seja observada inclusive nas democracias de longa data, nos regimes recentes ela está associada ao desengajamento e ao desinteresse que sustentam a ideia de que as democracias podem funcionar sem partidos”, aponta a professora. Na política, como diz uma antiga mas ainda válida regra, não existe vácuo.

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