quinta-feira, 28 de agosto de 2008

ELEIÇÕES AMERICANAS - A outra família Obama.

Milhares de africanos desejam que a vitória do candidato negro à presidência dos EUA lhes traga um sopro de esperança. El País visita a avó dele e outros parentes no Quênia.

Milhares de africanos desejam que a vitória do candidato negro à presidência dos EUA lhes traga um sopro de esperança. El País visita a avó dele e outros parentes no Quênia Juan Jesús Aznárez, do El País"Rezo para que Barack ganhe. Se eu tivesse dinheiro, lhe daria; quando for presidente ajudará a todos nós." Sarah Obama, 86 anos, a avó negra do candidato democrata à presidência dos EUA, é cristã, devota e pobre. A anciã não tem dinheiro nem estudos, mas muita confiança na vitória eleitoral de seu neto, a celebridade do Quênia, o novo estandarte africano. "Musawa [Como vai?]. Entre, entre." Sarah mora em uma casinha de tijolos e barro em Kogelo, a 500 km a noroeste de Nairóbi, perto do lago Vitória.O meio-dia é tórrido e luminoso na aldeia agrícola da região de Kisumo, combinando com os vermelhos, verdes e azuis do vestido da avó mais famosa do mundo. Um jovem mói milho em um armário perto dos sacos da despensa doméstica. "Nessa foto Barack está me ajudando a carregar um saco de grãos. É muito esperto e educado. Sabe escutar. Se ganhar, irei vê-lo, mesmo que fique pouco tempo." Fotografias da estirpe Obama estão penduradas nas paredes de uma sala humilde e limpa, mobiliada com assentos e mesas de madeira forradas de amarelo-limão. Vários jornais lembram a campanha eleitoral americana e a convenção democrata de Denver, que esta semana proclamará candidato presidencial Barack Obama, 47 anos, a grande esperança negra.Sarah é a avó de verdade, a da criança, porque a de sangue, Akumu, a mãe de Barack Hussein Obama, o pai do senador de Illinois, abandonou o lar e os maus-tratos de seu marido quando a prole era pequena. Pouco depois casou com um tanzaniano que a comprou de seus pais por seis vacas e a promessa de outras seis. "A senhora fala com seu neto por telefone?" "Não, porque ele não fala luo [dialeto da etnia luo, à qual pertence a família] e eu não falo inglês", admite Sarah. A octogenária vive o dia-a-dia, como a maioria de seus 35 milhões de compatriotas, que se erguem em aleluias quando lhes perguntamos sobre Obama. O fato de os brancos americanos, descendentes dos escravagistas, votarem em um negro acionou uma revolução mental na África, ainda mergulhada no atraso, nas doenças e no cerceamento tribal. A vida não é fácil no continente dos massais e do Serengueti.Os ancestrais do jornalista afro-americano Keith Richburg, ex-correspondente em Nairóbi do jornal "The Washington Post" (1991-1994), foram embarcados a ponta de chicote nos navios negreiros e escravizados nas plantações de algodão do Novo Mundo. Richburg só tem palavras de agradecimento para o tráfico que acorrentou seus parentes naquelas travessias oceânicas rumo à infâmia: isso lhe permitiu nascer nos EUA e não na África. "Graças a Deus sou americano!", escreveu em seu livro "Out of America. A black man confronts Africa" [Fora da América. Um negro confronta a África]. O escândalo foi enorme. Cansado de hipocrisia e mentira, farto de ver cadáveres, o jornalista reagiu iradamente a seus críticos: "Falem-me da África, de minhas raízes negras e de meus vínculos familiares com meus irmãos africanos, e mergulharei seus narizes nas imagens de carne putrefata". Os ancestrais de Barack Obama (nascido em Honolulu em 1961) não foram escravos, mas tiveram de prestar vassalagem à administração britânica racista no Quênia (1888-1963), que o candidato democrata à presidência dos EUA visitou pela primeira vez aos 26 anos para confrontar a África, como Richburg, e aproximar-se da figura paterna e do lado negro de sua identidade. Depois de ver o que viu, cabe pensar que o novo ídolo africano também se felicitou por ter nascido nos EUA. Em suas três viagens à África (em 1987, 1994 e 2006), o senador conheceu sua avó Sarah, seus parentes africanos e se aproximou da realidade dos países vítimas da instabilidade e da fome: o ponto de partida dos botes nas praias das Canárias e dos trabalhadores braçais apunhalados pelos alambrados de Ceuta e Melilla. Com 60% da população total africana, os países subsaarianos geram apenas 20% do PIB, 46% de sua população têm menos de 15 anos e só dois terços estão escolarizados. Os universitários que puderam emigraram para o estrangeiro, como Barack Hussein Obama, o pai do candidato democrata, que viveu nos EUA, mas regressou ao Quênia, onde morreu em um acidente de trânsito aos 46 anos, triste e fracassado, quase alcoólico. Outros tiveram melhor sorte, mas Gana, Moçambique, Quênia e Uganda perderam até a metade de seus diplomados em benefício dos países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). "A África precisa que Obama ganhe, precisa recuperar seu orgulho e auto-estima", diz Boniface Gakuo, 35 anos, professor e guia durante a visita pelo assentamento-favela de Kibera, em Nairóbi, que obriga a usar o cilindro de oxigênio para não cair fulminado pela pestilência. Obama, sua mulher, Michelle, descendente de escravos, e suas duas filhas o visitaram em 27 de agosto de 2006. Mais de um milhão de pessoas penam em suas ruas, sem água corrente nem esgoto, com rendas mensais de 30, 50 ou 70 euros. Vivem em ratoeiras distantes das mansões da plutocracia nacional e dos deputados da pátria, que recebem seus salários de 8 mil euros todo mês, além de benefícios e mordomias. As pessoas ganham a vida como podem, e a profissão de criminoso está em alta. Uma máfia habilitou alguns barracos como salas de pornografia para espectadores de 7 e 8 anos, crianças que pediam dinheiro a seus pais para ir ao cinema, segundo a polícia descobriu há poucos dias. "Todo mundo precisa de uma oportunidade para prosperar, para comer, para se vestir, para montar um negócio", Obama animou os habitantes do local. Mas os miseráveis quase não encontram oportunidades na África. O errático crescimento democrático e econômico de seus países, os avanços registrados em alguns direitos fundamentais quase não escondem as marcas das descolonizações a tiros, as quarteladas, as autocracias, os genocídios, a corrupção e a desesperança. Sobre as causas dessas pragas bíblicas, o senador leu muito antes de viajar a Nairóbi e ser recebido como um messias. Dois anos depois de sua última visita, os que o escutaram em Kibera o consideram magnânimo, portador de negócios fabulosos entre os EUA e o Quênia se chegar à Casa Branca. "É dos nossos e não poderá esquecer que vivemos comidos pelos ratos e a Aids. Ele viu isso com os próprios olhos", diz David, 24 anos. Estragada pela história e pelos próprios erros, a África precisa de uma vitória que levante seu ânimo, uma vitória que possa considerar própria. E o negro Barack Obama pode dá-la em novembro. Também a reclamam os afro-americanos de Minnesota, Washington ou Alabama, iludidos pelos ventos de mudança e o simbolismo dos novos comportamentos em colégios ou famílias. Adolescentes envergonhados pela fala africana de seus pais agora refletem sobre suas origens ao comprovar que o político negro não só não esconde suas raízes como também as abraçou sem complexos. A sensibilidade racial do ídolo lhe veio quando criança, enquanto lia na revista "Life" o anúncio de um creme branqueador da pele. Seu encontro com a etnia luo também foi precoce e impactante. A reviravolta ocorreu na biblioteca pública de Honolulu. "Os luo criavam cabras e viviam em choças de barro e se alimentavam de milho, batata e algo que se chamava 'mijo'", escreveu Obama em "Sonhos de Meu Pai", publicado em 1995. "Seu traje tradicional era um pareô de couro que se cruzava entre as pernas. Deixei o livro aberto em cima da mesa e saí sem sequer me despedir do bibliotecário."Saiu correndo para processar seu parentesco com o tribalismo ribeirinho do Nilo, assentado depois nas pradarias de Kisumo, em choças de barro e palha, junto dos bambus e do avestruz. "Eu me drogava [com álcool e maconha] porque queria afugentar as perguntas que me atormentavam. O que significa ser mestiço? Por que os brancos me consideravam um negro e os negros me olhavam com desconfiança?", perguntou-se em suas memórias. "Como poderia ser útil em uma sociedade que não parecia me aceitar? Jogávamos no terreno dos brancos com as regras dos brancos. Se o decano, o treinador, o professor quisesse cuspir em seu rosto, podia fazê-lo." A única opção era o enclausuramento no próprio rancor. "E a ironia final é que se você se negasse a aceitar a derrota e os enfrentasse, tinham um nome para você: paranóico, extremista."Uma bolsa de seu pai nos EUA determinou a epiderme café com leite do político que esta semana será proclamado candidato no estado do Colorado, muito longe de um continente entusiasmado com a possibilidade de que um dos seus governe a nação mais poderosa do planeta, mude a correlação de forças e volte para resgatar a África. "Os EUA farão o mesmo de sempre", antecipou Richard Dowden, diretor da Sociedade Real Africana. Talvez seja assim, mas enquanto isso, batizados, cervejadas, camisetas, chinelos, rótulos e títulos dão a vitória no Quênia ao "nosso leão". "Sua vitória seria um passo fundamental para a eliminação do racismo em um país que o pratica tanto quanto os EUA", segundo o analista Ali Mazrui. A emergência do fenômeno Obama no firmamento político americano causou na África uma catarse íntima, existencial, libertadora. O jornal "The Nation" afirmou que seu sucesso será a confirmação de que um negro pode ser o que quiser se trabalhar duro, for inteligente e tiver sorte. O colunista ugandense Timothy Kayegira não é tão otimista: o discurso de Obama dirigido ao lobby pró-Israel dos EUA deveria abrir os olhos dos que imaginam que o desejado compartilhará estritamente os interesses dos negros na África. "Preparem-se para que Obama os desiluda muito", escreveu.O acaso e a pobreza, não a escravidão, definiram o mapa do caminho do político mulato. O pai, nascido em Kogelo, ganhou uma das primeiras ajudas para completar estudos em universidades americanas. Enquanto assistia às aulas no Havaí, aos 23 anos, conheceu Ann Dunham, branca como leite, de 18 anos, nascida no Kansas, com a qual se casou em 1960. Pouco depois nasceu Barack, mas quando o menino tinha apenas 2 anos seu pai foi para Harvard fazer mestrado em economia. Depois voltou, sempre sozinho, ao Quênia, onde o esperavam sua primeira mulher, Kezia, grávida, e outro filho. Poucos sabiam disso. O menino de Honolulu só voltaria a ver o pai oito anos depois, durante a rápida volta aos EUA do progenitor para ver seu filho e a garota do Kansas, e também encantar com suas histórias sobre o Mau-Mau, os anciãos luo e as grandezas da África profunda. Durante a viagem iniciática de Obama em 1987, Sarah lhe falou muito sobre seu pai e seu avô, Onyango. "Veja, o homem de óculos nas fotos é seu pai", indica a avó. E seu marido, o avô? Seu avô foi um homem autoritário, cumpridor das tradições tribais, entre elas a poligamia e as agressões. "Pagou o dote de várias jovens, mas quando se mostravam preguiçosas ou quebravam algo as espancava sem remorso."O patriarca se opôs ao casamento de seu filho com uma mulher branca, com Ann, embora em alguns aspectos fosse admirador dos brancos, da organização britânica colonial. "O africano é um asno", dizia a Sarah. "Para fazer qualquer coisa é preciso que o espanquem." O avô foi cozinheiro, soldado do exército britânico e islamita. "Não podemos apagar essa ligação da vida do candidato. Seu pai também foi muçulmano até se converter ao ateísmo", explica o analista Otuma Ongalo, referindo-se aos supostos esforços do candidato para se afastar do Corão, freqüentemente associado ao terrorismo. "E embora não pratique o islamismo tem laços com o islã, como os tem com o Quênia e a África, mesmo que nunca tenha sido queniano ou africano."A anciã da dinastia diz que seu neto é cristão, mas aprova a liberdade de culto. A mulher atende amavelmente aos viajantes de boa fé interessados em suas emoções e nas raízes do candidato democrata. Desde sua adolescência, Obama já sabia que era tarde demais para reclamar a África como lar e como confissão, não importa o que dissesse seu pai. O velho foi "bastante idiota", segundo o comentário escutado durante um coquetel este mês em Nairóbi, de uma americana que o conheceu intimamente. Supostamente se referia às irresponsabilidades atribuídas a Barack pai, a sua vida turbulenta e rebelde, cheia de contratempos e frustrações. Barack Hussein estudou por correspondência, animado por duas freiras americanas. Aprovado nos exames, tramitados pela embaixada americana, foi aceito na Universidade do Havaí. "Ninguém sabia onde ficava o Havaí, mas não lhe importou. Deixou comigo sua mulher [Kezia], novamente grávida [de uma menina, Auma], e seu filho, e em menos de um mês havia partido", relatou Sarah na biografia do senador. Auma é sua irmã mais próxima, a que conheceu pessoalmente em Chicago há mais de 20 anos, pouco depois da morte do pai. "Foi como se nos conhecêssemos a vida toda." Auma, temperamental e direta, trabalhadora social no Quênia, não quer falar muito. Tem consciência de que suas palavras podem ser utilizadas para prejudicar politicamente seu irmão. "Tenho muito pouco tempo. Mande-me por e-mail que tipo de perguntas quer me fazer." As perguntas não lhe pareceram más, mas mencionou uma viagem repentina de dez dias para adiar a entrevista com o repórter de El País. "A família está até aqui com os jornalistas", diz um correspondente estrangeiro em Nairóbi. A família é numerosa, entre irmãos, tias, cunhados, primos e sobrinhos, e a casa natal, um santuário que as crianças mostram com o dedo antes que o visitante pergunte qual é. O serviço não é gratuito: "Give me a little money!" (Me dê um trocado).A figura do pai, pastor de cabras na juventude, obcecou Barack Obama, que queria saber tudo sobre o africano que lhe deu a vida, sobre um homem intelectualmente brilhante, generoso, mulherengo, caótico em seu mundo pessoal e familiar. Teve muitas mulheres, algumas em aventuras e outras sacramentadas, como Ann e Ruth, americanas. Ao todo teve seis filhos e uma filha, Auma, que será chamada a desempenhar funções importantes nas relações dos EUA com a África se seu irmão chegar à presidência.Inicialmente, Barack pai prosperou na empresa de petróleo Shell, protegida pelo governo. Impressionava ao volante de carros de luxo, impecável em seus ternos sob medida. Nesse período se casou com Ruth, deixou a companhia e entrou para o Ministério do Turismo. Suas aspirações políticas o mataram, porque as divulgou e se chocou com os funcionários mais incompetentes e perigosos da etnia governante, os kikuyo, rivais dos luo. O enfurecia a ignorância no comando dos ministérios ou das repartições. Era a primeira década pós-colonial, e pertencer a um ou outro povo determinava a vitória ou o fracasso. Mas o sectarismo não explicava tudo. Durante o ímpeto das independências africanas, as burguesias nacionais que arrebataram o poder aos governos coloniais eram burguesias subdesenvolvidas, sem poder econômico, absolutamente afastadas da produção e do trabalho, segundo escreveu o ensaísta Frantz Fanon. Para essas burguesias "estúpidas e cínicas", nacionalizar equivalia a transferir à direção autóctone os privilégios herdados do poder colonial. Os enormes lucros das exportações não foram reinvestidos, mas entregues a bancos estrangeiros. Boa parte pagou gastos suntuosos, os carros e as mansões dos pais da independência.Um deles, Jomo Keniatta, um kikuyo, o primeiro presidente (1964-1978) do Quênia livre, afastou Barack Hussein Obama do governo e do manancial do dinheiro público, com o estigma de conflituoso. Ninguém lhe deu trabalho, nem no governo nem nos consórcios estrangeiros, alertados. A ruína não impediu que o economista de Harvard continuasse fazendo presentes que não podia se permitir. Vendeu o carro, vendeu o que pôde, entregou-se à bebida e acabou deprimido, suscetível e violento. "Só a mim ele confessou como era infeliz", contou a avó Sarah a seu neto Barack. "Já lhe disse que rezo por ele?"A decepção do pai era profunda. "Eu costumava lhe dizer que era cabeçudo demais quando lidava com o pessoal do governo. Me falava de princípios, e eu respondia que seus princípios eram uma carga pesada demais para seus filhos." O pai os perdia, mas pouco podia fazer. Conseguiu um cargo no Banco Africano de Desenvolvimento, em Adis Abeba, mas quando preparava a viagem para ocupá-lo o governo do Quênia retirou seu passaporte. Um amigo compassivo o colocou no Departamento de Águas de Nairóbi, com um salário de terceira. Desorientado, enfurecido, chegava tarde em casa, bêbado, e exigia a gritos que sua mulher, Ruth, preparasse o jantar. Durante o encontro de Chicago, Auma contou ao irmão detalhes da progressiva deterioração de seu pai. Sonhava em recuperar Barack e sua mãe, a garota do Kansas, abandonada em Honolulu. As relações com Auma também não foram carinhosas. A jovem conseguiu uma bolsa de estudos na Alemanha e foi embora sem se despedir do pai. As reflexões de Barack Obama sobre seu pai são tolerantes e amargas, às vezes irônicas, sempre respeitosas. "Você não trabalha duro o bastante! Tem de ajudar os outros em sua luta. Desperte, homem negro!", lhe dizia o velho. Depois de escutar Auma e sua avó, o que poderia pensar? Foi uma vítima do destino? Um bêbado amargurado? Um marido agressivo? Um burocrata derrotado e solitário? Fosse o que fosse, era seu pai. "Temos de voltar para casa", pediu-lhe Auma. Seu irmão não duvidou. Barack Obama voltou à África há 20 anos, para Kogelo, a casinha de acácias e mangueiras onde o esperava sua avó. Chorou até secar as lágrimas junto ao túmulo do pai, e então percebeu que o círculo se fechava. Compreendeu, segundo sua própria confissão, que sua vida na América, a sensação de abandono que sentia quando jovem, as frustrações e esperanças estavam ligadas ao terreno africano com os restos de seus ancestrais.Duas décadas depois, junto à casa da avó, três jovens que se dizem seus primos comunicam ao jornalista que todo o povoado, todo o Quênia, toda a África, e as pessoas de progresso, os 300 mil quenianos estabelecidos nos EUA, esperam sua vitória como as chuvas de maio. "Mas veja como são as coisas: estiveram aqui pedindo entrevistas a Sarah jornalistas que apóiam McCain. Que pouca vergonha!" Por umas e outras razões, a maioria dos africanos aplaude o senador de Illinois, incluindo o muçulmano Salim, de 22 anos, garçom, convencido de que a atual aliança política entre os EUA e o Quênia "destruirá nosso país". Igualmente convencido de que Obama toma "alguma pílula ou injeção" para branquear o rosto, Salim quer que ele ganhe porque, "mesmo que se dê bem com os judeus, pelo menos tirará as tropas do Iraque e nós muçulmanos seremos menos perseguidos em todo o mundo". As investigações policiais para capturar os seguidores da Al Qaeda que há dez anos destruíram a embaixada dos EUA em Nairóbi, deixando 226 mortos e mais de mil feridos, foram intensas. A comunidade muçulmana se sentiu maltratada, sob permanente e injusta suspeita. O secretário do Conselho de Imãs do Quênia, Mohamed Kalifa, confia em uma mudança de enfoque de Obama e no fim das "políticas de confronto de Bush". Todos esperam algo do compatriota de raça em Chicago; todos sonham com transformações profundas em suas vidas se a Casa Branca hospedar, finalmente, um presidente negro. Organizar um debate público sobre quais podem ser suas intenções é fácil: uma cerveja ou duas no centro de Nairóbi ou em seus arredores. A coalizão de forças, a admiração por Obama e o fermento vegetal soltam as línguas e a imaginação dos freqüentadores de um bar próximo ao mercado central:"A primeira coisa que ele fará será dar passaportes a todos os quenianos que precisarmos", diz Benson. "E mais vistos. Mas que também mande um pouco de dinheiro para a viagem. A viagem é cara", replica Biko."Eu me conformo com que ele prenda todos os funcionários corruptos de nosso país. Então sim, teríamos mais dinheiro. Mas creio que quem vai se beneficiar mais são seus parentes", arremata Alfred."Eu vou escrever pedindo-lhe uma bolsa de estudos e ficarei vivendo na América. Acho que hoje os brancos não são tão racistas", avalia Amos."Obama vai ganhar porque há muitos negros na América e porque uma nova geração de brancos é a favor da mudança", sentencia Mike.
A eventual posse presidencial de Obama adquire dimensões épicas, fantásticas, com a ingestão de cerveja. Todos lembram dele simples, magnético, magnífico, convincente durante sua visita ao Quênia em 2006, acompanhado de multidões que o aclamavam e com ele dividiam seus projetos. Obama e sua mulher, Michelle, fizeram o teste da Aids em um país com 1,5 milhão de mortos pela doença e outros 2 milhões infectados. O senador deu 13 mil euros de seu bolso para o combate à epidemia e convocou ao otimismo e à probidade no cargo, uma virtude escassa nos governos do continente. Cameron Doudu, colunista da revista "New Africa", afirma que o neto de Sarah conseguiu libertar o pensamento dos negros, submetidos à dominação branca e resignados "a desempenhar um papel secundário em relação aos brancos no trabalho, no colégio, na vida política ou nas relações sociais". Barack é o homem a se imitar, a força inspiradora. E mesmo que Doudu não descarte que pode ser um mau presidente, sua força mental, sua coerência e determinação já fizeram história. "Minha filha não poderá mais me dizer que não prospera porque é negra", lhe escreveu uma mãe. O primeiro-ministro do Quênia, Raila Odinga, da etnia luo, prosperou e se tornou cobiçado quando alguém sugeriu seu parentesco com o político americano. "O êxito de Barack nos ajudará a romper as cadeias dos preconceitos raciais nas eleições dos líderes", disse Odinga, interlocutor freqüente de Obama durante sua última viagem ao Quênia, antes que começassem os choques este ano entre etnias, com mais de 1.500 mortos e 400 mil desalojados. Odinga denunciou que as eleições de 27 de dezembro foram uma fraude e o sangue correu. Oficialmente foram ganhas pelo presidente Mwai Kibaki, um kikuyo. Um governo de coalizão e a multiplicação de ministérios para os novos parceiros encerraram a crise. Os governos do Quênia e de outros países contam com Obama para contrabalançar a pressão dos grupos que controlam bastante a política externa dos EUA com os que quase não se interessam pela África. Se ganhar, lhe pedirão que comande as preocupações e expectativas africanas: que amplie as facilidades comerciais e migratórias e os empréstimos, ou intervenha na polêmica sobre a presença militar americana na região para combater o terrorismo."Devido à história do personalismo na África, os africanos pensam que os presidentes são oniscientes e onipresentes", indica o analista Makau Mutua. "Mas a presidência americana é um cargo muito limitado." A lista de reivindicações negras é muito mais ampla e difícil de rejeitar em alguns casos, pois os EUA calculam que logo receberão de suas explorações na África 25% do petróleo de que precisam. O abastecimento obriga a uma excelente relação com os proprietários dos poços. À espera dos acontecimentos e de que as eleições de 4 de novembro referendem os prognósticos africanos, a maioria adora Barack Obama, como nos anos 1960 os irlandeses idolatraram o presidente assassinado John F. Kennedy. Um grupo de adoradores quenianos foi além e constituiu uma frente contra as "manipulações" do rival, John McCain. "Com tantas ferramentas informativas, confrontar as mentiras não é muito fácil", segundo o porta-voz do grupo de apoio, Peter Mbae. A partir de amanhã, o Quênia se reunirá à frente da televisão e do rádio para escutar as palavras do campeão ungido pela fortuna e brindar por seus ancestrais africanos. "Deus o escolheu para que nós, os negros, possamos prosperar um pouco", acredita Alice, 45 anos, vendedora de feijão em um mercado de Kisumo. Ela quer acreditar que a vitória de Obama e seus planos para o Quênia a farão ganhar pelo menos 150 euros por mês. "Não é muito, é?" Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Fonte: Blog Aposentado Invocado.

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