quarta-feira, 28 de outubro de 2009

URUGUAI - Triste vitória para a "Frente Ampla", amarga derrota para o povo uruguaio.

Sergio Labayen

Adital

A noite do passado domingo passará à história como uma das mais tristes para a esquerda uruguaia. Que a ‘Frente Amplio’ (FA) não alcançasse a maioria absoluta estava entre as possibilidades; porém, ninguém poderia imaginar que a luta pelos direitos humanos levaria tamanho golpe. Apenas 42,7% votaram pela anulação da Lei de caducidade, o que desenha um cenário que não ajuda na corrida final de Mujica rumo à presidência.

Até às 20 horas tudo era otimismo na sede do comando eleitoral da Frente Amplio. Os primeiros dados colocavam a coalizão no limite da maioria absoluta e se considerava a lei de caducidade como já anulada. No entanto, passada essa hora, alguns dirigentes começaram a indicar que algo ia mal. Às portas do hotel, em uma grande esplanada apinhada de gente, bandeiras e furor, as lágrimas começaram a aparecer de repente, quando as rádios divulgaram o dado de uma provável derrota do plebiscito pela derrogação da impunidade.

A posterior conferência de imprensa de Mujica e de Astori veio a agregar um novo golpe aos que confiavam reeditar a maioria absoluta. O candidato sublinhou uma ideia: a sociedade exige a Frente Amplio "um esforço maior", um mês mais de batalha política com "um ponto de partida muito otimista". "Estou encantado com esse resultado porque sou homem de luta e nunca ninguém me deu nada", disse Mujica; porém, o clima não era de vitória.

A partir daí, as pesquisas de boca de urna foram divulgando sucessivos golpes aos milhares de frenteamplistas que aguardavam na rua, sem abrir as garrafas: a coalizão não conseguia maioria em nenhuma das quatro câmaras; brancos e colorados os superavam em votos; o plebiscito pelo voto exterior apenas alcançava os 35% dos apoios...

"Vamos adiante!"

Os líderes de Frente Amplio apressaram-se a sair ao balcão para tentar levantar o ânimo das pessoas. Mas, tanto suas caras quanto as caras dos seguidores falavam por si; porém, todos conchavavam em uma "vamos adiante" coletivo que voltou a levantar as bandeiras e os ânimos, colocando o foco na pequena porcentagem que os separa da maioria no segundo turno.

Simbolicamente, Mujica e Astori envolveram-se em importantes bandeiras uruguaias e incidiram em que a partir de agora não se trata de uma contenda entre partidos, mas entre dois modelos de país. Assim, os dirigentes de FA incidiu em seu discurso mais centrista e conciliador, reiterando sua proposta de acordo com a oposição em quatro áreas estratégicas para o país (educação, segurança, energia e meio ambiente).

A umas centenas de metros, na sede do Partido Nacional (PN), respirava-se um ambiente bem distinto. Os brancos reduziram seu número de apoios, algo já esperado; porém, a evidência de um segundo turno desatou a festa entre suas bases, sobretudo quando Pedro Bordaberry, do Partido Colorado (PC) adiantou que apoiará a Lacalle. Ambos partidos coordenarão "ações imediatas" esta semana, em uma tentativa de capitalizar a derrota psicológica de FA e de tornar crível uma alternativa a Pepe Mujica. No momento, as maiores ovações na manifestação de Lacalle aconteceram quando o telão de sua sede divulgava imagens do painel que exibia um militante: "Não queremos um presidente assassino".

Com detalhes desse tipo, na noite do domingo, respirava-se um ambiente estranho nas ruas de Montevidéu. Conforme passavam as horas, as duas metades do país mostravam-se não comumente enfrentadas em um país tão politicamente correto. Pessoas gritavam nos carros, nas calçadas, enquanto agitavam bandeiras e acusavam-se mutuamente: "Mujica assassino!", gritavam uns. "Ladrões!", replicavam outros. Essas expressões de enfrentamento serão anedóticas e a classe política saberá reconduzi-las para o clássico "savoir faire" oriental; porém, denotam que vem por aí um choque de trens entre os dois Uruguais possíveis após o dia 29 de novembro. São duas alternativas de país não tão distintas no fundo; porém, sim, muito antagônicas nas formas, até o ponto de que chegam a repelir-se em uma sociedade que não suturou completamente as feridas da ditadura.

Golpe à memória

Foi duro o golpe recebido pelo movimento popular que havia posto todos seus esforços na campanha pela anulação da Lei de caducidade. No local da Federação de estudantes respirava-se a desolação e não faltavam as críticas ao oficialismo, por não ter-se esforçado mais na derrogação da lei. Os sentimentos eram tão contraditórios que alguns seguidores de FA mostravam seu entusiasmo pela vitória eleitoral, enquanto outros choravam e pediam respeito -ou um certo ‘luto’- diante da derrota do plebiscito.

Todos os dados conhecidos nessa noite correspondiam a sondagens de boca de urna, que costumam afinar tanto os resultados finais que suas projeções são consideradas seguras.

Assim, os uruguaios foram dormir pensando que os votos pelo SIM haviam rondado os 47%; porém, na manhã da segunda-feira, 24, agregou-se mais um toque de crueldade à derrota da papeleta rosada. Meio dia, o ministro da Corte Eleitoral informou os dados oficiais da votação e anunciou para surpresa de muitos que a Lei de Caducidade havia sido anulada. As mensagens de texto começaram a circular e o panorama que abria era bem distinto ao da noite anterior. No entanto, tratava-se de um tremendo erro, já que os dados correspondiam à capital e foram desmentidos em apenas meia hora. O resultado real havia sido bem distinto; agora, mal para a defesa dos direitos humanos: apenas 42,7% de votos pelo fim da impunidade.

"Me dá vergonha"

Algumas reações estão sendo contundentes: "Me dá vergonha viver nesse país desmemoriado", se lê em um mapa do Uruguai que começa a circular na Internet. O fato é que, 20 anos depois do primeiro referendo pela derrogação da lei, agora se conseguiu menos apoios do que naquela época, quando a ameaça militar já não parece ser um problema, com muitíssimos daqueles votantes que morreram e foram substituídos por novas gerações, após cinco anos de governo de FA, que pressupõem uma mudança cultural e ideológica no país. "o que aconteceu?", ressoa pelas esquinas do país.

A notícia correu rapidamente pelos países vizinhos onde também existem ativos movimentos pelos direitos humanos. De fato, a anulação da Lei de Caducidade era importante não somente pela necessidade de julgar aos repressores uruguaios, mas também como uma medida preventiva frente às futuras tentações ditatoriais dos caudilhos militares de turno em todo o continente. E o certo é que os promotores do golpe de Estado de Honduras, ou os que tentam desestabilizar os processos na Venezuela e na Bolívia, receberam ontem uma mensagem que podem interpretar em chave de mais impunidade para seus feitos. Porque se uma sociedade tão legalista como a uruguaia manifesta-se tão passiva na defesa de sua democracia, se é o mesmo que os juízes possam investigar ou não os crimes cometidos durante a ditadura, que reação pode-se esperar dos impulsionadores do Plano Condor? Se arrependerão das matanças e dos atropelos cometidos na América Latina? Que consequências terá este ‘cheque em branco’ que o golpismo acaba de receber?

A ressaca dos plebiscitos

A derrota da papeleta rosada ainda deve ser digerida e seus efeitos são todavia insuspeitos; porém, em princípio não colabora na carreira de Pepe Mujica para a presidência. Muitos militantes sociais mostram-se decepcionados com a vacilação de FA frente à Lei da caducidade, primeiro porque poderiam ter derrogado a Lei e não o fizeram, de forma que o movimento popular teve que forçar a realização do plebiscito. E agora, na campanha porque o apoio formal de FA soa com músicas distintas em cada uma de suas correntes internas e mais ou menos forte segundo a deriva política geral.

Na realidade, parece lógico que uma vitória do SIM pudesse ser vista por Mujica como uma tremenda batata quente sobre seu mandato: Como moderar o trabalho de governo se ele, um refém da ditadura, deve "meter na cadeia" a seus carcereiros? Como conseguirá os pactos de Estado que quer assinar com a oposição se se reavivam as velhas tensões entre tupamaros e "milicos"? Assim, as contradições eram de calado em qualquer das hipóteses; porém, se o golpe que indica o escasso apoio social a esse plebiscito poderia reabrir velhas feridas na esquerda. No momento, o candidato da Assembleia Popular anunciou que votará nulo no segundo turno, uma opção que também se escuta entre alguns militantes de bairros.

A derrota do segundo plebiscito -o voto por correio dos imigrantes- foi maior: 35% de apoio, significando derrota para a FA. Estima-se que 2,5% de seus apoios provêm do exterior, principalmente de Buenos Aires, e muitos pensarão duas vezes na hora de viajar de novo para votar no segundo turno, ainda mais quando o país acaba de dar as costas à possibilidade de que se integrem com normalidade nos processos eleitorais.

Resultados com 100% contabilizado

Segundo os resultados divulgados ontem, a FA alcançou 47,49% dos votos; o Partido Nacional, 28,54%; o Partido Colorado, 16,67%; o Partido Independente, 2,44% e o Assembleia popular, 0,67%. Quanto á composição das Câmaras, no Senado há empate técnico que se resolverá após os resultados do segundo turno. Na Câmara dos Deputados, um novo empate para 49 deputados entre a FA e o restante dos partidos, com um assento todavia provisório, já que existe um total de 32.000 votos observados (nos quais detectou-se algum tipo de irregularidade) que serão os que definam se a FA tem ou não a maioria parlamentar.

Definitivamente, Pepe Mujica continua sendo o favorito para alcançar a presidência; porém, hoje isso é mais difícil do que ontem. O único dado comparativo, de 10 anos atrás, nos diz que brancos e colorados uniram 100% de seus votos e derrotaram a FA no segundo turno. Porém, é certo que a sociedade uruguaia mudou muito desde esse tempo. Mas, mudou até que ponto??

* Rebelión

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