sábado, 29 de outubro de 2011

ANOS DE CHUMBO - A Argentina e nós.

Terra Magazine

Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)


A presidente da República combina com o PCdoB, Lula e o PT, despacha Orlando Silva do ministério do Esporte, encaixa o deputado Aldo Rebelo no lugar e pronto: bola pra frente, que a Copa do Mundo de 2014 vem aí e nada parece ser mais importante que isso agora, nem mesmo a honra e a credibilidade do País.

Reclame quem quiser, mas diante deste faz-de-conta na base do muda qualquer coisa para deixar tudo como está, mesmo com a "faxina" da presidente Dilma Rousseff, é recomendável não gastar tanta vela nem levar demasiadamente a sério a geleia geral e as arengas de poder destes dias no Planalto Central. Depois da queda do sexto ministro, começam as apostas sobre onde explodirá o novo escândalo federal no Brasil e quem será a bola da vez.

Haja paciência e complacência! A trama, que não se resolve, começa a ficar repetitiva, sem graça, desgastante e a cheirar mal por aqui. Enquanto isso, se acumula o lixo debaixo dos tapetes para abrir espaços às novas denúncias, aos escândalos quentinhos da hora e, finalmente, a exemplo do verificado no Esporte, os novos "acordos da governabilidade".

"Vida que segue", escutei tantas vezes o grande João Saldanha repetir na redação do Jornal do Brasil, no Rio, ou na sucursal do JB, na Bahia. Depois lia tudo com enorme prazer em sua coluna de texto primoroso, na qual ele misturava futebol, política e mazelas brasileiras. Tudo embalado com suprema maestria no texto repleto de informações, boas histórias e o toque de coragem e dignidade de um dos maiores jornalistas que conheci e tive a graça de conviver profissionalmente.

Sem um Saldanha por perto para ajudar a iluminar o cenário embaralhado por estas bandas, o melhor talvez seja observar com mais atenção - a exemplo do que tem feito a imprensa mundial nas últimas semanas - os fatos e os ventos que sopram da Cordilheira dos Andes e movimentam as águas do Rio da Prata.

Em Buenos Aires, olhos, ouvidos e lentes da mídia internacional ainda captam fatos e imagens capazes de ilustrar as reportagens e análises sobre a reeleição domingo passado da presidente Cristina Fernández de Kirchner em primeiro turno - depois de aplicar histórica surra eleitoral em seis concorrentes diretos. Além de mais quatro anos de mando na Casa Rosada, a reconquista da maioria que o governo justicialista havia perdido no Congresso. Ou seja: a faca e o queijo na mão.

Como se não bastasse, eis que a Argentina virou palco na madrugada da quarta-feira, 27, de um acontecimento transcendente. Destes com dimensão e força capazes de emocionar e levantar um país. Além de renovar as esperanças de um povo em sua longa e decidida luta por justiça e pela punição exemplar para crimes e criminosos hediondos que imaginavam ficar impunes e sob proteção do estado, de cujo poder ditatorial se utilizaram, insana e covardemente, para delinquir.

O ex-oficial da Armada argentina Alfredo Astiz foi finalmente condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar no país vizinho, no período entre 1976 e 1983. Este foi um dos maiores processos judiciais de direitos humanos na Argentina, onde as estimativas são de que tenham morrido 30 mil pessoas, vítimas de um dos mais violentos e sanguinários regimes na história do continente latino-americano.

Conhecido como "Anjo Loiro da Morte" (alcunha angariada em razão de seu aspecto físico quase angelical), Astiz foi considerado culpado de tortura, assassínio e sequestros. Entre as suas inúmeras vítimas estavam duas freiras francesas e fundadores do grupo de direitos humanos Mães da Praça de Maio.

Astiz comandava então Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), um dos maiores e mais terríveis centros de torturas e assassinatos do regime, com corpos atirados ao mar. Esta foi também a primeira vez que 16 elementos deste centro de torturas compareceram perante a justiça. Doze deles, incluindo Astiz, foram condenados pelo Tribunal Federal.

"Esta é uma decisão que honra a Argentina", proclamou o chanceler francês Alain Juppé ao saudar a sentença que condenou por delitos de lesa humanidade a 16 dos 18 torturadores julgados na "causa ESMA" - entre eles os assassinos das freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet. Este fato de destaque mundial evidencia o compromisso do país "na luta contra a impunidade e os crimes cometidos pela ditadura militar", assinalou Juppé.

Para Victoria Donda, filha de desaparecidos, eleita deputada pela Frente Ampla Progressista (FAP), "a sentença de quarta-feira é um triunfo coletivo da Argentina". O julgamento, e em especial as condenações impostas aos torturadores, trazem "a paz que só a verdadeira justiça pode trazer a uma pessoa e um povo que lutaram por ela".

Sábias palavras. Salve a Argentina, a sua Justiça e seu povo. Que este notável exemplo de coragem e tenacidade frutifique além das barrancas do Rio Prata e que a brisa de paz e justiça que sopra estes dias na Cordilheira chegue até nós.


Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site-blog Bahia em Pauta

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