quinta-feira, 26 de março de 2020

POLÍTICA - Renuncie, senhor Bolsonaro.

Renuncie, senhor Bolsonaro

por Lucia Helena Issa

Amanhece no Rio de Janeiro e o sol, alheio às mortes e a toda a dor humana que invade nossos corações, volta a brilhar, quase como uma metáfora nos céus da cidade que me adotou há alguns anos, depois que que voltei da Itália.
Penso nos mais de 50 mil infectados e nos mais de sete mil mortos da linda Itália em cujo solo eu vivi e fui imensamente feliz por seis anos.
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Penso na dor vivida pela Cidade Eterna, para onde eu embarcaria hoje, por amor ao engenheiro Luigi il Grande, e pela literatura, se uma pandemia assustadora não tivesse despedaçado os nossos sonhos.
Penso hoje no seu último discurso, senhor Bolsonaro, e penso na distopia que estamos vivenciando.
Decidi escrever-lhe, como sempre faço em momentos de extrema alegria ou de extrema dor, pois percebo que a única pessoa a quem eu gostaria de pedir algo hoje é o senhor.
Escrevo- lhe para pedir-lhe, com toda a humildade e serenidade, que renuncie, senhor Bolsonaro.
Em nome do Deus em que nós cremos, em nome de nossos filhos, de nossas mães e avós, renuncie, senhor Bolsonaro.
A sua renúncia seria um ato de imensa nobreza nesse momento, senhor Bolsonaro.
Pelas milhares de vidas humanas que ainda podemos salvar, pela aurora que sempre renasce depois das mais longas noites e das mais longas pestes, renuncie, senhor Bolsonaro.
O Brasil se tornou refém de dois vírus mortais.
Desde as eleições ou mesmo antes delas, o Brasil tornou-se refém de um ódio medieval e de um sectarismo sem precedentes, um terreno fértil para os conflitos que eu testemunhei pessoalmente na Síria e em Israel, onde vigora um extremismo religioso que já matou milhares de crianças e jovens palestinos.
Temos sido reféns de um outro vírus letal, além do novo coronavírus, o vírus da ignorância e do ódio aos pesquisadores científicos, o ódio às universidades, o ódio ao conhecimento humano, ao legado de gigantes como Galileu e Isaac Newton, um ódio insano alimentado diariamente pelo guru da morte, Olavo de Carvalho, e por tantas pessoas que hoje não mais reconheço.
Renuncie, senhor Bolsonaro, pelo amor que temos aos nossos filhos, já que somente essa atitude poderia reconstruir algumas pontes e derrubar os muros do ódio.
Renuncie, senhor Bolsonaro, para que possamos redescobrir a resiliência e a identidade que nos une como brasileiros, para que paremos de retroalimentar o ódio que nos dilacera e diminui a nossa imunidade.
Renuncie, senhor Bolsonaro, para que, depois do luto coletivo que nos caberá viver, a aurora de um novo dia possa finalmente chegar.
Renuncie, senhor Bolsonaro, para que possamos vislumbrar essa aurora que renascerá, eu tenho certeza, depois de uma das mais longas noites atravessadas pela humanidade.
Renuncie, senhor Bolsonaro, para que depois do luto, possamos testemunhar, como aconteceu na linda Itália depois da Peste Negra medieval, o Renascimento.
O Renascimento que um dia nos deu Michelangelo e sua Pietá, nos deu a genialidade de Leonardo da Vinci, as descobertas de Galileu, as cores de Rafael e de Boticelli, a poesia de Dante, a Capela Sistina, a Catedral de San Lorenzo em Gênova e o Duomo de Santa Maria del Fiore, em Florença, que me fez chorar na primeira vez em que o vi.
Renuncie, senhor Bolsonaro, para que, depois dessa longa noite de inverno que nos toca viver, possamos todos ver a primavera que vive dentro de nós e que renascerá no Brasil.
Lucia Helena Issa é jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização internacional. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro “Quando amanhece na Sicília”. Pós-graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio e está terminando um livro sobre mulheres palestinas que lutam pela paz.

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