É difícil de aceitar, mas a incerteza veio para ficar
Não saber o que vai acontecer amanhã, do ponto de vista profissional, material ou emocional, não é novo. Mas na actualidade intensificou-se a impotência, porque estamos a lidar directamente com o arquétipo de todos os medos – a morte.
Estamos imersos na incerteza. Quando é que o isolamento social vai terminar? Para quando uma vacina? O pico já foi atingido? As decisões políticas são apropriadas? Devemos abdicar da liberdade em nome da segurança? Como gerir os riscos de infecção em ligação com os da desprotecção socioeconómica? Até sobre a ciência nos interrogamos, porque também tem dúvidas, lida com modelos e hipóteses, e isto não é criticá-la, mas defendê-la da pressão da certeza. Com tantas perguntas, e estas são apenas as mais usuais, é natural que o mercado das convicções tenha crescido. Quer dizer, sempre esteve em alta. Agora é apenas mais revelador.
No ecossistema comunicacional só há certezas. Dizer “não sei” é proibido. Cada um utiliza ferramentas para demonstrar inequivocamente, sem reservas, recorrendo a factos e só a factos, a cálculos infalíveis, a estatísticas incontestáveis, que a sua visão é a única defensável. Toda a gente parece ter sido atingida pelo vírus da certeza absoluta. O que diria por estes dias o sociólogo Zygmunt Bauman, que passou a vida a tentar compreender os aspectos sociais que nos conduziram para um tempo de incertezas?
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Não saber o que vai acontecer amanhã, do ponto de vista profissional, material ou emocional, não é novo. Para uns mais do que para outros. Mas para a maioria a existência na estagnação económica, na desigualdade e na precariedade é conhecida. Na actualidade intensificou-se a impotência, porque estamos a lidar directamente com o arquétipo de todos os medos – a morte.
Dizia Bauman que os mais privilegiados, na tentativa de não serem importunados no seu conforto, se fechavam em casa com sofisticados sistemas de segurança, dirigiam carros blindados, evitavam espaços públicos e o contacto com estranhos que lhes parecessem ameaçadores. Mas nem isso os aliviava dos temores.
Imagine-se agora quando a ameaça latente é um vírus invisível que pode estar escondido no abraço do filho ou no aperto de mão a um amigo. A ansiedade e a impotência são continuadamente alimentadas. Não surpreendem comportamentos de negação, pedindo sofregamente o regresso à normalidade, e até outros que desejem ser contaminados, como se só isso pudesse pôr fim à sua angústia.
Bauman proclamava que a esperança de determos um maior controle sobre o mundo social e natural se tinha esvaído nos tempos modernos. Aceitar essa vulnerabilidade e incompletude não é fácil. Daí que em alturas como esta abundem as teorias conspirativas ou as efabulações distópicas. Não é possível a total eliminação da indefinição, mas dentro desses limites, existe muito que podemos fazer, para vivermos em sociedades mais justas e igualitárias, onde as incertezas possam ser atenuadas ou administradas.
Numa altura em que se pedem respostas urgentes, médicas, logísticas ou políticas, e decisões têm de ser tomadas, parece que nos encontramos num limbo. Uns com uma sensação de alguma serenidade, porque o isolamento social parece funcionar. E outros percebendo que a par da ansiedade sanitária existe a económica. E ainda nem começamos a perceber o vírus. As perguntas são mais do que as respostas, tenham elas carácter científico ou político. A realidade desagrega-se e arrasta-se, sem um fim à vista.
E o mais incrível é o consenso sobre aquilo que está para vir. Uma catástrofe, dizem todos, como se fosse inevitável e nada pudesse ser feito. Dá-se por garantido que o sistema socioeconómico que nos rege não vai amenizar a inseguranças, mas ao mesmo tempo sabemos que existem recursos suficientes que o permitiram fazer acontecer. Se assim é, então discuta-se um sistema que não consegue contornar a lógica do lucro, não servindo à maioria. Mas não. Aqui estamos à espera de um retorno gradual a uma nova normalidade, sabendo que o vírus não se vai evaporar.
Para a mudança ser possível, talvez devêssemos assumir, por mais difícil que seja, que vamos permanecer num mundo viral ameaçado por epidemias e desordens ambientais, mesmo depois de uma eventual vacina para o vírus ser uma realidade. É preciso uma noção realista, nem muito optimista, nem catastrofista, do caminho a seguir. A incerteza veio para ficar. Abraçar posições absolutas é um absurdo, quando já se percebeu que a informação que vamos tendo é incompleta. Ter essa consciência é talvez a forma mais lúcida de lidar com a situação.
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