terça-feira, 29 de junho de 2021

 

desdemocratização no Brasil

Em crise, elites brasileiras tramaram pesadelo ultraliberal. Caminho foi instrumentalizar as instituições: Congresso foi reduzido a mero gestor de verbas – e Judiciário e Banco Central são os novos pivôs da recolonização econômica

Painel de Flávio Tavares, artista plástico paraibano

O receituário neoliberal que domina a condição governamental na condução da economia brasileira se tornou possível através do processo de desdemocratização. Contudo, a sua especificidade decorre do fato de a atual destruição transcorrer justamente no interior das instituições da democracia, diferentemente do passado experimentado, por exemplo, nos oito anos do Estado Novo (1937-1945) e nos 21 anos da ditadura civil-militar (1964-1985).

Historicamente, como se sabe, o casamento do capitalismo com a democracia não foi um acontecimento trivial. Até a Revolução de 1930, por exemplo, o capitalismo nascente operava praticamente apartado da democracia, sendo a política subordinada aos interesses econômicos, distantes do poder que poderia emanar do povo.

O fervor antidemocrático da lei de ferro das oligarquias agraristas e plutocratas se expressava pelo fato de não haver mais de 5% da população que participava formalmente dos pleitos eleitorais da República Velha (1889-1930). Sem voto secreto e justiça eleitoral, votavam e eram votados, em geral, fundamentalmente homens proprietários e detentores dos maiores rendimentos.

Numa população iletrada e concentrada no campo, a política era assunto e ação tão somente de ricos, poderosos e privilegiados, pois obedientes ao servir econômico dominante da posição primário-exportadora brasileira na Divisão Internacional do Trabalho. Demandas originárias do povo, como as da classe trabalhadora ainda em formação, quando conseguiam alcançar o parlamento, eram respondidas como casos de polícia pelo liberalismo vigente na época.

A desigualdade que resultava do monopólio do poder exercido por uma minoria ruralista governante em relação à maioria governada somente começou a ser modificada a partir da fase de modernização capitalista nas décadas de 1930 a 1980. Com o ciclo de modernização e urbanização nacional, quando o país conseguiu se reposicionar na Divisão Internacional do Trabalho como produtor e exportador de manufatura, a economia passou a se subordinar à política.

Mesmo assim, o matrimônio da democracia com o capitalismo no Brasil registrou significativas particularidades. Ademais de instável, a sua intensidade foi contida a poucos momentos históricos, sendo a massificação do voto gradual e restrita aos alfabetizados até 1985.

Com o ingresso na globalização, a partir de 1990, a incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia no Brasil não tardou a se manifestar. Para que o receituário neoliberal fosse introduzido, a Constituição Cidadã de 1988 teve regulação apequenada, seguindo os limites dos interesses econômicos que buscavam se desenquadrar da esfera pública das decisões políticas.

No presidencialismo de coalizão perseguido durante o ciclo político da Nova República (1985-2016), os cargos das áreas econômicas não estiveram, em geral, disponíveis às negociações explícitas da democracia política. A vitória neoliberal forçou a democracia a operar cada vez mais em baixa intensidade, procedimental, minimalista e elitista, compatível com o inchamento do setor de serviços em face à destruição acelerada da sociedade urbana e industrial.

Nos governos liderados pelo PT (2003-2016), as contestações às tentativas de subordinação da economia à política passaram a ser mais intensas, capazes de levar ao divórcio com a democracia exigido para o retorno do receituário do neoliberalismo desde 2016. O sequestro da democracia imposto pelos interesses da hipertrofia financeira e do neoextrativismo agrarista em conexão com interesses externos permitiu o aprofundamento da lógica econômica neoliberal de privatizar o poder político.

Assim a instrumentalização antidemocrática foi operada inédita e contraditoriamente por dentro das instituições da democracia. As causas desse processo são múltiplas, porém associadas às práticas governamentais e aos estilos das políticas institucionais do modo neoliberal de gerenciamento do capitalismo em declínio no Brasil.

Em síntese, trata-se do processo interno de desdemocratização, com a secundarização da política ao mero formalismo democrático crescentemente revelado pelo neoliberalismo econômico e fascismo social. Enquanto a soberania popular desaparecia da cena política, consolidava-se a soberania do econômico expressa pelo totalitarismo do mercado.

Ao longo da trajetória dos últimos seis anos de decrescimento econômico, foi-se formando uma massa sobrante de sujeitos sociais destruídos e destituídos de direitos, expostos à contínua violência da ameaça à própria existência. O esfacelamento do corpo social tem tido recorrente autorização pública através da neocolonização econômica da esfera política a engolir o breve ensaio nacional do Estado de bem-estar social pela racionalidade neoliberal.

A fachada sem conteúdo democrático se consome pela difusão da corrupção institucional, da pressão vil dos interesses econômicos e dos mecanismos autocráticos dos poderes da República, muitas vezes validados pelas práticas despolitizadas do crescente populismo de legitimação. As mudanças institucionais de subordinação da política à economia parecem ser inegáveis.

De um lado, a ampliação dos poderes não expostos ao crivo eleitoral, como os órgãos de controle (sistema “U”: MPU, TCU, CGU, AGU e outros), o poder judiciário e a independência do Banco Central. De outro, as regras de controle restritivo do Estado no poder executivo e o apequenamento do poder legislativo através da função de mero gestor de parte dos recursos públicos fundamentais para a própria reeleição de seus membros.

A política e suas instituições continuam sendo desacreditadas. Enquanto os ricos, poderosos e privilegiados permanecem imunes à tributação, a lógica privatista avança, dominando os gastos públicos e desfazendo o setor produtivo estatal, fundamental para a hipertrofia financeira e o neoextrativismo exportador.

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