Os 25 anos de MPF da mineirinha de Guaranésia
Seu segundo feito foi ter inaugurado a justiça de transição no Brasil, ao lado do colega Marlon Weichert. Sem ser politizada, pouco sabendo do período ditatorial, caiu em suas mãos o caso da vala de Perus.
Conheci a moça 11 ou 12 anos atrás em um boteco onde, aos sábados, ia tocar e espantar a solidão. Ela chegou sozinha, dançou com todo mundo, me deixando ensimesmado. Se conhece todo mundo, como nunca a vi por lá? Quando terminei a apresentação, o cantor agradeceu, mencionou meu nome e ela se aproximou da minha mesa.
- Você toca direitinho, pena que fala mal do Ministério Público.
E a Lava Jato nem havia começado.
Não nos falamos mais e, no dia seguinte, empreendi uma busca frenética para saber quem era ela. No boteco, ninguém a conhecia. Tinha chegado sozinha. Procurei nos sites do Ministério Público. Uma procuradora, minha amiga, matou a charada: se gostava de dançar, devia ser a Eugênia Gonzaga.
Foi assim que a conheci. Telefonei, marcamos nos encontrar, confundi as datas, julguei que era no fim de semana seguinte, mas era no outro. Admito que o engano ocorreu por um certo excesso de ansiedade.
Depois foram algumas semanas de jantares e conversas boas. Contou-me que tinha se separado há um ano e foi a primeira vez que pensou em sair sozinha para dançar. Combinou com as amigas, que desistiram quando souberam que era em um boteco. Como já tinha contratado uma babá para ficar com os filhos, decidiu aproveitar a noite.
De jantar em jantar, de boteco em boteco, fomos nos conhecendo melhor. Ela falava pouco da sua vida profissional, e muito da sua cidade, Guaranésia. Aliás, na traseira do seu carro tinha uma etiqueta “Guaranésia, orgulho de sua gente”. Nem preciso falar do meu encantamento. Meu primeiro teste de caráter das pessoas sempre foi sobre a maneira como encaravam sua origem.
Foram necessários vários encontros para começar a formar ideia sobre seu trabalho, porque as informações saiam em conta-gotas. Mas eram feitos grandiosos. Havia sido uma das principais responsáveis pelo maior programa de educação inclusiva da história, montado pelo Ministro da Educação Fernando Haddad, e beneficiando 800 mil crianças com necessidades especiais. E foi Haddad quem me contou.
Seu segundo filho, Vinicius, nasceu com síndrome de Down. Ainda no hospital, ela foi procurada e amparada por um grupo de mães que se apoiavam mutuamente. Uma amiga, procuradora veterana, passou-lhe a senha: toda criança tem direito à educação; crianças com necessidades especiais têm os mesmos direitos; se o Estado não tem condições de recebê-las, tem obrigação de se preparar.
A primeira vez que expôs essa tese, em um seminário na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, despertou a ira das associações de APAES (Associação de País e Amigos dos Excepcionais). Não das APAES sérias, como a de São Paulo, mas das federações que politizaram o tema e garantiam recursos e votos para suas lideranças. Foi alvo de 3 mil denúncias das APAES, enfrentou seminários por todo o país, até constatar que o único caminho seria a construção de políticas públicas de inclusão.
Procurou, primeiro, o Ministro da Educação Paulo Renato, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Ele entendeu o tema, exonerou a responsável pela Secretaria de Educação Especial, mas já estava em final de mandato.
Entrou o novo governo, ela tentou sensibilizar o novo Ministro, Cristóvão Buarque, em vão. Mas ao menos tomou uma atitude relevante: nomeou Cláudia Dutra Secretária de Educação Especial. Entrou Tarso Genro e ela se deu conta da vitalidade administrativa de seu Secretário Executivo, Fernando Haddad. Assumindo o Ministério, Haddad deu início à sua política de inclusão.
Seu segundo feito foi ter inaugurado a justiça de transição no Brasil, ao lado do colega Marlon Weichert. Sem ser politizada, pouco sabendo do período ditatorial, caiu em suas mãos o caso da vala de Perus. Abraçou o tema com base nos princípios que aprendeu, desde que ingressou no MPF: a defesa dos direitos fundamentais, a solidariedade com os vulneráveis, a punição a quem comete crimes hediondos.
O Supremo Tribunal Federal (STF), através de Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, havia convalidado uma interpretação vergonhosa da Lei da Anistia, estendendo-a aos crimes da ditadura. Eugenia provocou Marlon para que buscassem saídas. E decidiram por ações cíveis contra os torturadores.
Foi assim que foram processados os legistas que ocultaram os crimes, como Badan Palhares, torturadores, como Brilhante Ustra, e autoridades, como Paulo Maluf.
Na comemoração dos 25 anos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a então Procuradora Geral Raquel Dodge salientou os dois maiores feitos da entidade: educação inclusiva e justiça de transição.
Depois, como presidente da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, cumpriu seu trabalho como uma missão, com solidariedade absoluta com os familiares. Aí, já acompanhei de perto.
No entanto, antes disso, a moça que saía comigo falava pouco de seus feitos. Certa vez, indaguei se ela tinha noção da quantidade de pessoas que beneficiou com suas batalhas. Explicou que o ex-marido não era muito ligado no tema, nem a família de Guaranésia. Por isso, não tinha muito com quem comentar.
De lá para cá, foram anos de convivência, de muita discussão, especialmente nos primeiros anos da Lava Jato, de imensa admiração, culminando com um casamento que nos aproximou definitivamente.
Há cinco anos, sua turma de concurso comemorou 20 anos de MPF. Terminaram em sua casa, onde garanti o fundo sonoro – com um conjunto de violão, cavaquinho e cantor. Nem ousei abrir o bico.
Esta semana, completou-se 25 anos da posse no MPF. A pandemia adiou uma comemoração mais efetiva. Além disso, a tragédia da Lava Jato destruiu o ambiente corporativo, o sentido de missão, de construção de um país mais justo. Durante alguns anos, o MPF tornou-se uma escada para a ambição pessoal de yuppies sem vocação pública.
Agora, haverá o início dolorido da reconstrução. Mas tenho certeza de que uma das referências será a mineirinha de Guaranésia, com sua garra, generosidade e sentido de missão que a levaram a inaugurar a resistência contra Bolsonaro, quando ousou atacar o pai do presidente da OAB,
De minha parte, levarei meu conjunto e garantiremos o fundo musical. E a acompanharei durante o encontro com olhos de admiração e paixão.
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