quarta-feira, 23 de novembro de 2022

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Quarta-feira, 23 de novembro de 2022Contragolpe | Falta piso e teto para a pobreza

O badalado dilema entre responsabilidades fiscal e social é cada vez mais obsoleto no Brasil real.
O ministro da Economia Paulo Guedes e sua equipe têm orgulho de ostentar o título de primeiro governo a reduzir gastos públicos desde 1997, mesmo tendo enfrentado a calamidade pública da pandemia de covid-19. Não há nada que desminta o autoelogio, como mostram os gastos do Governo Central (que inclui Tesouro, Banco Central e Previdência Social), em relação ao PIB. Em 2019, a gestão Guedes teve despesas equivalentes a 19% do produto interno bruto, número que saltou para 26,1% em 2020 com o auxílio emergencial distribuído na pandemia e caiu para 18,6% no ano passado. Este ano, deve fechar em 19%, menor do que quando a gestão Bolsonaro estava começando. É um dado robusto para mercado nenhum botar defeito. Some-se, ainda, a contabilidade criativa do orçamento secreto que irrigou o Congresso, e temos um lustrado índice econômico-financeiro na foto. O problema é o preço que se pagou para garantir essas contas públicas tão austeras num país carente como o Brasil. Longe de se defender que um governo gaste mais do que arrecada, mas é inegável que a qualidade dos cortes na gestão Guedes atingiu o público que mais precisa dos benefícios sociais do estado, como o próprio orçamento de 2023 mostrou — e como a equipe de transição de Lula tem alardeado. O Brasil atingiu em 2021 o pior índice de pobreza desde o início da série histórica da FGV Social, que trabalha com microdados da PNAD Contínua do IBGE desde 2012. Foram 62,9 milhões de brasileiros vivendo com renda per capita de até R$ 497 mensais. Desses, 15,5 milhões viviam com R$ 172 mensais.  Num momento em que as responsabilidades fiscal e social estão na mesa de discussões, o tamanho da pobreza no Brasil torna-se o indicador decisivo, especialmente quando isso vai definir o que parece ser um novo teto de gastos, a trava que a gestão de Michel Temer inaugurou em 2017 para pôr em ordem as contas públicas depois dos anos de Dilma Rousseff no poder.   A ideia “brilhante” do teto só não considera que a pobreza no Brasil é um estado permanente, muito suscetível a estímulos ou à falta deles, como lembra o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. “O Brasil tem um problema de desigualdade, como enfatiza a esquerda, e de crescimento, como outros economistas frisam. Mas precisamos de uma solução que contemple essas duas dimensões, pois é um indicador que flutua muito”, disse Neri. Uma política malfeita pode criar uma montanha russa nos dados de pobreza, alertou o economista. Em 2020, quando o governo Bolsonaro injetou centenas de bilhões de reais no auxílio emergencial, por exemplo, a pobreza despencou: foi de 65,4 milhões em março daquele ano para 42 milhões em agosto, segundo a FGV Social. O dado é sempre realçado pelo time de Paulo Guedes, como se essa redução tivesse se mantido ao longo do tempo. Em março de 2021, no entanto, o país já atingia outra vez a marca de 71,9 milhões de pessoas na pobreza, um efeito direto da interrupção do auxílio emergencial no início do ano. Àquela altura, o time de Guedes acreditava que a pandemia já estaria controlada, por isso não planejou a extensão do benefício. O erro de cálculo custou milhares de vidas, agravado pelo negacionismo do governo sobre o vírus, e um acelerado repique para baixo dos indicadores sociais. Foi essa insensibilidade do modelo ultraliberal bolsonarista que ajudou a firmar a percepção de que o teto de gastos, até então um consenso, tornou-se um caminho para desumanizar o país. Se é para cortar verbas de programas sociais, a justificativa é o teto. Se é para liberar recursos de última hora para o orçamento secreto, tudo bem, como mostrou a jornalista Adriana Fernandes numa análise publicada no Estadão em 31 de outubro. Nesse caso, pode-se aplicar a tese de que o “teto foi mal feito”, como alegou Paulo Guedes na semana passada. Hoje, os economistas da transição se debruçam para chegar a um novo consenso, que já se desenhava mesmo antes mesmo desse grupo se unir. Pérsio Arida, por exemplo, um dos pais do Plano Real – e que seria, como André Lara Resende, um dos mais fora da caixa para os padrões petistas na equipe econômica transitória – já havia feito parte de um time de economistas que escreveu, em agosto deste ano, o documento “Contribuições para um governo democrático e progressista”, entregue a todas as campanhas presidenciais — com exceção da de Jair Bolsonaro. Ali, já se defendia um “programa especial de gastos” para um primeiro momento do novo governo, visando cobrir os buracos sociais que o bolsonarismo está deixando. Falta de reajuste na merenda escolar, de remédios da farmácia popular, de recursos para habitação social… O próprio ex-presidente Lula escreveu uma carta às vésperas do segundo turno garantindo que seguiria a cartilha do seu primeiro governo, quando o mercado chegou a estender tapete vermelho para sua gestão fiscal responsável. Apesar das chuvas e trovoadas, com direito a troca de cartas públicas entre grupos de economistas que se bicam por puxar fios diferentes neste debate, o mais importante é saber que a discussão já passou para outro nível – e não desperdiçar esse capital intelectual, depois de anos de um debate xinfrim na economia. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. O que importa é estar de acordo que não é possível viver num país miserável, onde os gastos podem ter teto, mas a pobreza não. Se há um cobertor que não cubra os dois lados, que se troque a manta. Foi essa a ideia triunfante que ganhou esta eleição. O resto é distração para preencher o noticiário no fla-flu político da vez.
Carla Jimenez
Colunista

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