Ângela Carrato: A mídia brasileira, como em 1964, segue apoiando os golpes; na volta de Bolsonaro, passa pano nos males que ele causou ao país e seu povo
Tempo de leitura: 9 minSem autocrítica ou pedido de desculpas, mídia brasileira segue apoiando golpes
Por Ângela Carrato*
O que tem a ver o golpe militar, que completa 59 anos, o retorno de Jair Bolsonaro ao país, a mídia corporativa brasileira e o jornal britânico The Guardian?
Aparentemente não há qualquer fato que ligue a mídia brasileira fortíssima no quesito golpismo a um dos considerados melhores jornais do mundo.
As razões de fundo que moveram os golpistas de 1964 e as que movem Bolsonaro são as mesmas.
Já a fundação do The Guardian, no longínquo 1821, e seu comportamento em relação aos concorrentes da época, acabam de ser consideradas tão negativas, que a empresa The Scott Trust Limited, sua proprietária, pediu publicamente, na quarta-feira (28/3), desculpas aos leitores e a todos que se sentirem atingidos.
The Guardian, que sempre se definiu como liberal, foi criado por John Eduard Taylor, graças ao dinheiro do tráfico de escravos africanos.
Vultosas quantias, proveniente desse tráfico, revelaram-se decisivas para possibilitar que a publicação conseguisse, em tempo recorde, derrubar os seis concorrentes que existiam à época em Manchester e se transformar na mais importante da cidade.
Tinha início a trajetória desse jornal. E é seu passado comprometedor o que o aproxima da mídia corporativa brasileira, com significativa diferença a seu favor.
The Guardian pediu desculpas pelos seus atos e propõe reparações, enquanto a mídia brasileira continua escondendo o seu passado e segue firme na defesa de golpes.
Vamos aos fatos.
Em 1964, em 2016 e mesmo agora, sob o argumento de “combate ao comunismo e à corrupção” e defesa de lemas como “Deus, Pátria, Família e Liberdade” os governos progressistas de João Goulart, Dilma Rousseff, os mandatos anteriores de Luiz Inácio Lula da Silva e o terceiro mandato de Lula foram colocados na mira pela classe dominante, com o apoio dos interesses imperialistas, Estados Unidos à frente.
João Goulart pretendia, com suas reformas de base, promover uma série de mudanças, no campo, na educação, nas áreas urbanas, na taxação dos bancos e nas remessas de lucros para o exterior, além de encampar refinarias de petróleo estrangeiras que atuavam no país em detrimento da Petrobras.
Essas reformas eram consideradas fundamentais para trazer a economia brasileira para o século XX e possibilitar não só o desenvolvimento econômico como melhoria significativa na condição de vida da população.
Na época, a Petrobras tinha apenas 10 anos e já vivia sob pesada artilharia da mídia de então.
Uma das principais razões para o suicídio de Getúlio Vargas, como se sabe, foram as pressões internas e externas contra ele por ter instituído o monopólio estatal do petróleo e criado a Petrobras.
A Petrobras e o pré-sal, recém descoberto, estão igualmente no centro do golpe, travestido de impeachment, que derrubou Dilma Rousseff em 2016.
Tanto a queda dela, quanto a perseguição e prisão, sem provas, de Lula, por 580 dias possuem relação direta com a atuação da Operação Lava Jato e do então juiz Sérgio Moro e do seu fiel escudeiro, o procurador federal Deltan Dallagnol.
Isso já está mais do que provado, como está provada a participação de agências de inteligência dos Estados Unidos na prisão de Lula.
Os processos contra Dilma foram extintos e o Supremo Tribunal Federal anulou todas as condenações de Lula pela existência de vícios nos processos.
Apesar disso, a mídia corporativa brasileira, conglomerado Globo à frente, que foi parceira da Lava Jato nas denúncias e na prisão de Lula, continua omitindo esses fatos do seu “respeitável público”.
Pior ainda: possivelmente nem passa pela cabeça dos dirigentes destes veículos que teriam obrigação de vir a público pedir desculpas pelo mal que causaram aos diretamente atingidos e à maioria da população brasileira.
É tremenda, portanto, a responsabilidade da mídia corporativa brasileira na destruição da democracia e da economia brasileira tanto nos anos da ditadura militar quanto no tempo em que Michel Temer e Bolsonaro estiveram no poder.
Para ter ideia de como essa mídia funciona, enquanto o ilegítimo Temer, com apenas 15% de apoio popular, era tratado com pompa e circunstância, Dilma havia sido alvo de todo tipo de ataques machistas e misóginos. Quem se lembra das capas da revista Veja insinuando que ela poderia estar mentalmente desequilibrada?
Quem se lembra das horas e mais horas que o Jornal Nacional dedicou a criminalizar Lula por supostamente ter recebido um tríplex e um sítio como propina, sem nunca apresentar quaisquer provas e sem, jamais, dar-lhe o devido direito de resposta?
Quem se lembra das manchetes da Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo, que, durante anos a fio, martelaram na cabeça dos leitores que o “PT e suas lideranças são corruptas” ou “têm ligações com comunistas”?
Depois de apoiar abertamente Bolsonaro ao longo de quatro anos, de ter evitado relacionar o 8 de janeiro com o golpismo e o discurso de ódio permanentemente estimulados por ele, essa mídia, na maior cara de pau, tratou o retorno do ex-presidente ao Brasil, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Algo como gênero: Bolsonaro foi ali e está de volta.
A observação das manchetes em 30 de março deixa isso patente.
O UOL, portal de notícias da Folha de S. Paulo, que se apresenta como o maior da América Latina, trouxe como destaque: “Bolsonaro chega ao Brasil após passar 89 dias nos Estados Unidos”.
A chamada do G1, portal de notícias do grupo Globo, foi exatamente igual: Bolsonaro chega ao Brasil após passar três meses nos Estados Unidos.
A Folha de S. Paulo, no alto da página, destacou: “No embarque, Bolsonaro diz que vai depor ‘sem problemas’”, com foto dele em trajes esportivos e carregando uma mochila.
O Globo adotou o mesmo padrão. Em chamada no meio da página, informou que “Bolsonaro retorna ao país, e PF marca depoimento sobre joias”.
Quase igual fez O Estado de S. Paulo, ao noticiar que “Na Véspera da volta de Bolsonaro, PF marca depoimento sobre joias saudita”.
Coincidências? Ao não mencionar que as joias/presentes caríssimos, que ultrapassam o valor de R$ 50 milhões, estão mais para propina do que qualquer outra coisa, a mídia corporativa tenta preservar Bolsonaro.
A título de comparação, só o colar de brilhantes destinado à ex-primeira-dama Michele, vale muitas vezes mais do que o tríplex que, durante anos, foi mentirosamente atribuído a Lula como propina.
Com tamanhas omissões e passadas de pano para Bolsonaro, a mídia corporativa brasileira tenta preservá-lo como alguém funcional na luta que trava contra governos progressistas.
Lula é, de novo, a bola da vez.
Não se pode perder de vista que essa mídia foi a responsável direta por estimular, em 2018, o crescimento da candidatura do ex-capitão à presidência da República, com o objetivo de neutralizar a de Lula.
O plano era possibilitar o surgimento de um nome de “terceira via” capaz de vencer as eleições. Como esse nome não surgiu, o jeito foi prender Lula.
Em 2022, tática semelhante foi repetida, mas Lula conseguiu enfrentar o jogo sujo de Bolsonaro e da mídia e se elegeu.
Longe de se dar por vencida, essa mídia quer agora inviabilizar o terceiro governo Lula.
Neste sentido, Bolsonaro pode lhe ser muito útil, pouco ligando que tenha destruído a democracia, a economia brasileira ou que precise acertar contas com a Justiça.
Mas onde é que entra o bicentenário diário britânico, você deve estar se perguntando.
Considerado raro exemplo de coerência editorial, The Guardian deveria servir como referência para a tosca e entreguista mídia corporativa brasileira nos quesitos respeito ao leitor e assumir erros cometidos.
Na terça-feira (28/3), além do The Guardian publicar o pedido de desculpas pela ligação de seu fundador com traficantes de escravos, a publicação abriu suas entranhas.
Detalhou a consistente pesquisa acadêmica que mostrou que a história cor de rosa atribuída ao fundador John Eduard Taylor e ao grupo de seis pessoas que participaram da criação do jornal, na cidade de Manchester, não passou de mentira.
Nunca houve, naquele começo, sérios e éticos comerciantes! The Guardian foi fundado e derrotou os seus seis concorrentes, com o dinheiro sujo proveniente do tráfico de escravos. Desse dinheiro se beneficiou também boa parte dos empresários do ramo têxtil, através do qual a Inglaterra firmou seu poderio sobre o mundo.
Profundamente envergonhada, a direção do The Guardian anunciou, na mesma notícia, que vai reparar os prejuízos à história, ampliar a contratação de jornalistas negros e destinar recursos para bolsas de estudos de mestrado e doutorado para que essas e investigações afins sejam aprofundadas.
Nada foi publicado sobre isso na mídia corporativa brasileira, porque, obviamente, seus velhos e novos “barões” nunca admitiram que pudessem ter que prestar contas a quem quer que seja.
Se acham acima do bem e do mal.
O fundador dos Diários e Emissoras Associados, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, por exemplo, golpista de primeira hora, jamais pediu desculpas pelas campanhas difamatórias e de ódio que moveu contra Getúlio Vargas e João Goulart.
Logo ele cujo “império” começou graças ao dinheiro que lhe foi “emprestado” por um notório lobista a serviço da empresa canadense Light.
Foi com esse dinheiro que Chatô, como era chamado, adquiriu O Jornal, veículo que deu origem ao que viria a ser o primeiro grande conglomerado de mídia no Brasil.
Em 1924, quando esta compra aconteceu, o Rio de Janeiro, então capital da República, enfrentava crônicos problemas com a falta de energia elétrica. O governo já havia externado a necessidade de se criar uma empresa para enfrentar o problema.
É quando entra em cena Chateaubriand e o seu jornal e tem início o combate a toda proposta de se criar uma empresa nacional para fazer face à situação.
É desnecessário dizer que O Jornal se colocava como defensor em tempo integral da Light.
Enquanto viveu – Chateaubriand faleceu em 1968, aos 75 anos – ele foi a principal pena entreguista na mídia brasileira.
Comparável a ele, na época, talvez apenas Carlos Lacerda. Mas se Lacerda era um tribuno imbatível, Chateaubriand, mesmo quando já bastante doente, tinha a seu favor 36 jornais, 18 revistas, 36 rádios e 18 emissoras de televisão a serviço dos seus interesses.
Chateaubriand morreu em meio à disputa que travava com Roberto Marinho, que veio a sucedê-lo como segundo magnata da mídia brasileira.
Chateaubriand e Marinho haviam conspirado contra João Goulart e apoiado o golpe militar de 1964.
Marinho, numa jogada ilegal, conseguiu que o grupo de mídia estadunidense Time-Life, um gigante na época, apoiasse com milhares de dólares e equipe técnica, trabalhos essenciais para a implantação da sua TV Globo, o Canal 4 do Rio de Janeiro.
Como era a TV Tupi de Chateaubriand que liderava a audiência na época, ele, por intermédio de auxiliares, a começar pelo senador João Calmon, colocou a boca no trombone e denunciou a ilegalidade cometida por Marinho. Ilegalidade que, para Chateaubriand se traduzia apenas em concorrência desleal aos seus negócios, pois há evidências de que sempre quis os dólares da Time-Life.
CPI presidida, em meados dos anos 1960 pelo então deputado federal Saturnino Braga, chegou à conclusão de que a TV Globo tinha efetivamente contado com capital e mão de obra estrangeira.
Eram fartas as provas de que Marinho havia cometido ilegalidade e isso seria suficiente para que perdesse a concessão do canal. A Constituição em vigor proibia presença de capital estrangeiro na mídia brasileira e vedava estrangeiros em sua gestão.
Os militares que estavam no poder com a derrubada de João Goulart preferiram enterrar o assunto. A TV Globo se transformou em porta-voz dos militares, passou a contar com todo tipo de benesse da parte deles e se tornou a maior emissora do país.
Roberto Marinho morreu sem 2003, sem admitir qualquer responsabilidade sobre os 21 anos de ditadura e, menos ainda, esboçar qualquer pedido de desculpas pelos males que causou ao Brasil e ao povo brasileiro.
Quatorze anos depois, seus filhos pareciam dispostos a acertar contas com o passado.
Em editorial publicado no jornal O Globo em 31 de agosto de 2013 e lido à noite por Willian Bonner no Jornal Nacional, eles reconheciam, que “à luz da história” havia sido um erro e pediam desculpas ao povo brasileiro por ter apoiado o golpe de 1964.
No mesmo editorial, O Globo lembrava que “à época concordou com a intervenção militar ao lado de outros grandes jornais como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e Correio da Manhã”, acrescentando que fizeram “o mesmo que parcela importante da população”, que havia ido às ruas em manifestações e passeatas “contra o temor de outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart”.
O editorial de O Globo, em 2 de abril de 1964, dia seguinte à tomada do poder pelos militares, tinha como título “Ressurge a democracia”.
Nem esse pedido de desculpas meia boca foi suficiente para evitar que o golpismo voltasse a falar mais alto em 2016, quando, junto com a revista Veja, o conglomerado Globo liderou a campanha pelo impeachment de Dilma.
Tal como Chateaubriand, a família Marinho, com suas notórias ligações com os interesses estadunidenses, sempre criticou a Petrobras e se mostrou contrária às empresas estatais brasileiras.
Fato que explica o apoio que deu a Temer e a Bolsonaro seja na entrega do pré-sal para as petroleiras internacionais, seja no desmonte da Petrobras e na privatização, na calada da noite, da Eletrobras.
Os requintes golpistas da mídia corporativa brasileira são tamanhos, que a Folha de S. Paulo, que, nos “anos de chumbo”, emprestou carros para agentes da ditadura transportar presos políticos torturados sem despertar atenção, nem se preocupa mais em dissimular o apoio à extrema-direita.
A entrevista que publicou na véspera do retorno de Bolsonaro ao Brasil, com um dos principais articuladores da extrema-direita mundial, Steve Bannon, não deixa dúvidas.
Ex-assessor de Donald Trump e mentor da família Bolsonaro, além suspeito de estar por trás da invasão do Capitólio e dos atos terroristas de 8 de janeiro, Bannon afirmou que os processos contra Bolsonaro não têm importância e que eles só o fortalecerão.
Para quem conhece como funciona a extrema-direita, Bannon, nesta entrevista, acionou o famoso “apito de cachorro”, fundamental para deixar os bolsonaristas motivados e alertas.
Não por acaso, tuites da Folha replicaram trechos da entrevista para todos os cantos do país.
O curioso nisso tudo é que a mídia corporativa brasileira ainda insiste em tentar convencer o público que manipulações, mentiras, discurso de ódio e estimulo a golpes existem apenas nas redes sociais.
Não pediram perdão. Mas também não há perdão possível para quem sempre agiu e continua agindo contra o Brasil e o povo brasileiro.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.