terça-feira, 30 de abril de 2024

O ruidoso despertar das ruas árabes.

 

O ruidoso despertar das ruas árabes

Crescem as manifestações populares contra Tel-Aviv e o Ocidente. Washington as ignora e aposta na normalização. Mas desta vez pode ser diferente. País perde espaço para China e Rússia e passa a ouvir “não” dos próprios governantes locais

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Por Marc Lynch, no Foreign Affairs | Tradução de Glauco Faria

Desde o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro, o Oriente Médio tem sido sacudido por protestos em massa. Os egípcios se manifestaram em solidariedade aos palestinos, correndo grande risco pessoal, e iraquianos, marroquinos, tunisianos e iemenitas saíram às ruas em grande número. Enquanto isso, os jordanianos romperam com limites de longa data ao marchar em direção à embaixada israelense, e a Arábia Saudita se recusou a retomar as negociações de normalização das relações com Israel, em parte devido à profunda fúria de seu povo quanto às operações israelenses na Faixa de Gaza.

Para Washington, a avaliação é de que nada dessa mobilização é realmente importante. Os líderes árabes, afinal de contas, estão entre os mais experientes praticantes de realpolitik do mundo e têm um histórico de ignorar as preferências de seu povo. Os protestos, embora grandes, têm sido controláveis. O ex-presidente egípcio Hosni Mubarak e outros líderes há muito tempo incentivam os protestos sobre o tratamento dado aos palestinos, permitindo que seu povo desabafasse e direcionasse sua raiva para um inimigo estrangeiro, em vez de contra a corrupção e a incompetência internas. Com o tempo, ou pelo menos é o que diz o argumento, os combates em Gaza terminarão, os manifestantes furiosos voltarão para casa e seus líderes continuarão a lutar por interesses próprios, uma atividade na qual eles são excelentes.

Os formuladores de políticas externas dos EUA também têm um longo histórico de desconsiderar a opinião pública no Oriente Médio – a chamada rua árabe. Afinal, se os líderes autocráticos estão dando as ordens, então não é necessário dar importância ao que os ativistas furiosos gritam ou ao que os cidadãos comuns dizem aos pesquisadores ou à mídia. Como não há democracias no Oriente Médio, não é necessário dar importância ao que pensam as pessoas fora dos palácios. E, apesar de toda a sua conversa sobre democracia e direitos humanos, Washington sempre se sentiu mais confortável lidando com autocratas pragmáticos do que com multidões que considera irracionais e extremistas. Raramente faz uma pausa para considerar como isso pode contribuir para seu histórico desanimador de fracassos políticos.

A disposição dos Estados Unidos de ignorar as preocupações populares é reforçada pela lembrança de 2003, quando a opinião pública árabe foi totalmente contra a invasão do Iraque liderada pelos EUA, mas a maioria dos líderes da região cooperou com a invasão e nenhum tomou medidas para se opor a ela. Apesar de décadas de frequentes protestos em massa contra as ações israelenses em Gaza e na Cisjordânia, a Jordânia e o Egito mantiveram tratados de paz com Israel, e o Egito até participou ativamente do cerco a Gaza. Na verdade, a complacência dos EUA aumentou à medida que as esperadas erupções de raiva popular – por exemplo, a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém ou o bombardeio do Iêmen – não se concretizaram. A convicção de Washington foi brevemente abalada pelas revoltas árabes de 2011, mas voltou com força total quando as autocracias reafirmaram o controle nos anos seguintes.

Isso parece ser o que os Estados Unidos e a maioria dos analistas de políticas esperam desta vez também. Quando os bombardeios finalmente terminarem, as multidões voltarão para suas casas e encontrarão outros motivos para se irritar, e a política regional poderá voltar ao normal. Mas essas suposições refletem um mal-entendido fundamental sobre como a opinião pública é importante no Oriente Médio, bem como uma leitura profundamente equivocada do que realmente mudou desde as revoltas de 2011.

Conversa fiada

O termo “rua árabe” é usado pelos formuladores de políticas para reduzir a opinião pública regional às reclamações de uma multidão irracional, hostil e emotiva que pode ser apaziguada ou reprimida, mas que não tem preferências ou ideias políticas coerentes. A expressão tem raízes profundas no domínio colonial britânico e francês e foi adotada pelos Estados Unidos quando eles entraram na Guerra Fria e passaram a acreditar que a educação e o capitalismo são capazes de transformar o Oriente Médio à imagem do Ocidente. Essas ideias sustentaram a política de Washington de cooperar com ditadores árabes que conseguiam controlar seu povo. Isso convinha aos líderes árabes, que podiam desviar a pressão ocidental sobre questões como Israel ou democratização, apontando para a ameaça de revoltas populares e para os bichos-papões islâmicos que aguardavam para tomar o lugar deles.

Antes de 2011, o ponto alto do conceito de rua árabe ocorreu durante a chamada guerra fria árabe da década de 1950, quando líderes populistas pan-árabes obtiveram grande sucesso na mobilização das massas contra os aliados conservadores do Ocidente em nome da unidade árabe e do apoio aos palestinos. A visão de milhares de manifestantes furiosos respondendo aos discursos radiofônicos do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, saindo pelas ruas de países como a Jordânia, impressionou os formuladores de políticas ocidentais. Washington, em particular, concluiu que a rua árabe era perigosa, criando aberturas para os soviéticos. Não deveria se discutir a respeito destes povos, mas sim controlá-los pela força. Muito tempo depois do fim da Guerra Fria, essa percepção perdurou, embora se baseie em um mal-entendido básico da política árabe e continue a orientar a política dos EUA para o Oriente Médio, bem como muitas análises políticas da região. Sempre foi mais fácil descartar o apoio árabe aos territórios palestinos como algo enraizado em um antissemitismo atávico – ou ignorar a fúria pública contra as políticas dos EUA como algo cinicamente estimulado por políticos – do que levar a sério os motivos da raiva dos árabes e encontrar maneiras de lidar com suas preocupações.

Essa ideia da rua árabe mudou um pouco na década de 1990 e na década seguinte. A televisão por satélite, especialmente a Al Jazeera, cristalizou-se nessas décadas e moldou uma opinião pública pan-árabe. O surgimento de pesquisas sistemáticas e científicas de opinião pública na década de 1990 proporcionou nuances consideráveis sobre variações nacionais, mudanças de atitudes em resposta a eventos e avaliações sofisticadas das condições políticas. O surgimento das mídias sociais permitiu que uma grande variedade de vozes árabes rompesse o controle da mídia e destruísse estereótipos por meio de sua análise não mediada e envolvimento interativo. Após o 11 de setembro, Washington se esforçou muito em uma guerra de ideias, criada para combater ideais extremistas e islâmicos em toda a região, uma abordagem que, embora equivocada, exigiu um investimento significativo em pesquisas de opinião e atenção cuidadosa à mídia árabe e às mídias sociais emergentes. Mas, então, as revoltas de 2011 abalaram a complacência geral sobre a estabilidade dos autocratas da região, mostrando que as vozes do povo precisavam ser ouvidas e levadas em consideração.

Os autocratas tremem, mas sobrevivem

A memória das revoltas de 2011 ainda paira sobre todos os cálculos de estabilidade do regime no Oriente Médio atual. Os resultados desses eventos revolucionários trouxeram lições variadas. A rápida disseminação dos protestos que ameaçavam o regime da Tunísia por praticamente toda a região mostrou que a suposta estabilidade das autocracias árabes era, em grande parte, um mito. Por um breve momento, deixou de fazer sentido para Washington ignorar as sutilezas da opinião pública árabe ou aceitar as garantias de governantes árabes cansados. As revoltas não foram simplesmente a erupção de uma rua árabe insensata. Em vez disso, os jovens revolucionários que capturaram o espírito da época articularam críticas ponderadas e incisivas aos autocratas que desafiavam, e até mesmo os islamitas em seu meio falavam a linguagem da liberdade e da democracia. Inicialmente, os governos ocidentais correram para se envolver com esses jovens líderes impressionantes e tentaram apoiar seus esforços para promover transições democráticas e sistemas políticos mais abertos.

Mas essas lições foram rapidamente esquecidas quando os regimes árabes recuperaram o controle por meio de golpes militares, engenharia política e ampla repressão. Os autocratas de toda a região ajudaram outros autocratas a restaurar seu poder, e o Ocidente simplesmente ficou de braços cruzados. Os Estados Unidos, por exemplo, não agiram quando a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e outros estados do Golfo apoiaram a repressão violenta aos protestos do Bahrein em 2011 e deram apoio financeiro e político ao golpe militar egípcio de 2013. A restauração autocrática que se seguiu trouxe um nível de repressão que foi muito além do que existia antes de 2011, com regimes em toda a região esmagando e silenciando a sociedade civil, temendo qualquer ressurgimento da oposição. A vigilância digital ajudou essas medidas repressivas, dando aos regimes uma compreensão sem precedentes das opiniões de seus cidadãos e do potencial de surgimento de movimentos de oposição.

A restauração autocrática resultou rapidamente no retorno de um modelo antigo de política externa ocidental baseado na cooperação com elites autocráticas e na ignorância das opiniões do público árabe. Em nenhum outro lugar isso pode ser visto com mais clareza do que na política dos EUA em relação ao conflito israelense-palestino. De 1991 até recentemente, Washington conduziu um processo de paz, em parte porque os líderes dos EUA acreditavam que oferecer uma solução justa para os palestinos era essencial para legitimar a primazia dos EUA. O governo do presidente Donald Trump, no entanto, simplesmente ignorou a opinião pública palestina e árabe ao intermediar os Acordos de Abraão, que normalizaram as relações entre Israel e Bahrein e os Emirados Árabes Unidos, sem resolver o conflito israelense-palestino. Os acordos também incluíram o Sudão e o Marrocos, depois que Washington concordou em reconhecer sua soberania sobre o Saara Ocidental.

O presidente dos EUA, Joe Biden, apesar da promissora retórica de campanha, em vez disso, abraçou de todo o coração a abordagem de Trump para o Oriente Médio, pressionando pela normalização árabe-israelense e ignorando a democracia e os direitos humanos. Após sua posse em 2021, Biden abandonou suas promessas de colocar os direitos humanos em primeiro lugar e tornar a Arábia Saudita um pária pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi e sua guerra no Iêmen. Em vez disso, ele se esforçou com um desespero indecoroso para concluir as políticas de Trump de normalizar as relações com Israel sem resolver a questão palestina e evitar os ganhos chineses na região ao garantir um acordo com a Arábia Saudita. Não é por acaso que o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro coincidiu com a pressão total do governo Biden por um acordo de normalização saudita em meio a provocações sem precedentes dos colonos israelenses na Cisjordânia. Havia muitos sinais de descontentamento árabe com a normalização e inúmeros avisos de uma explosão iminente em Gaza, mas Washington os ignorou como apenas mais um exemplo de deferência equivocada a uma rua árabe que acreditava que seus aliados autocráticos poderiam controlar. Estava errado.

Isso ocorre porque a opinião pública é importante no Oriente Médio. A política é importante, mesmo em autocracias e, no Oriente Médio, as forças políticas se movem perfeitamente entre o doméstico e o regional. Os líderes bem-sucedidos precisam aprender a dominar as duas dimensões do jogo. Parte da garantia de sua sobrevivência é saber como responder aos protestos, e a resposta depende da questão em pauta. Os diplomatas ocidentais dão ouvidos aos governantes árabes que não sacrificariam nem mesmo interesses menores em prol de um bem maior se pudessem se safar. É claro que o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, faria um acordo com Israel se achasse que isso serviria aos interesses de seu governo e que poderia absorver a ira do público sem muitos riscos. Mas esse é um grande “se”. O príncipe Mohammed e outros líderes árabes se preocupam com o que pode levá-los a serem derrubados. Na maioria das vezes, eles se preocupam mais com uma coisa sobre todas as outras: permanecer no poder. Isso significa não apenas evitar protestos em massa que obviamente ameaçam o regime, mas também estar atento às possíveis fontes de descontentamento e reagir conforme necessário para evitá-las. Com quase todos os países árabes fora do Golfo sofrendo problemas econômicos extremos e, consequentemente, exercendo a máxima repressão, os regimes precisam ser ainda mais cuidadosos ao reagir a questões como o conflito israelense-palestino.

Enquanto isso, os líderes árabes também estão concentrados no jogo político regional e competem ferozmente para se posicionarem como os defensores mais eficazes de suas identidades e interesses compartilhados. É por isso que, muitas vezes, eles disfarçam até mesmo as ações mais cínicas e egoístas como se estivessem servindo aos interesses dos palestinos ou defendendo a honra árabe. As ações recentes dos Emirados Árabes Unidos, como quando o país tentou justificar os Acordos de Abraão alegando ter impedido a anexação planejada do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu à Cisjordânia, são um exemplo disso. Os líderes árabes se preocupam com o que lhes dá vantagem ou os ameaça no jogo intensamente competitivo da política regional – seja contra outros concorrentes árabes por influência ou contra outras potências, inclusive a Turquia e o Irã. A dimensão regional da concorrência tornou-se ainda mais intensa na última década, pois as revoltas árabes destacaram como os acontecimentos políticos em toda a região podem colocar em risco a sobrevivência de qualquer regime doméstico. Em especial, o Catar competiu fortemente com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos nas transições políticas e guerras civis na Síria, na Tunísia e em outros lugares, buscando moldar a opinião pública, mas também respondendo a ela.

A reação

Hoje, é óbvio que os Estados Unidos erraram ao supor que poderiam ignorar a opinião pública árabe sobre o tratamento dado aos palestinos. Os árabes não perderam, de fato, o interesse na questão. E os regimes árabes não estabeleceram, de fato, um controle mortal sobre a mobilização pública. Quase todos os regimes agora têm seus públicos extraordinariamente mobilizados pelo que consideram ser a campanha genocida de Israel contra Gaza e um novo programa de deslocamento e ocupação. O nível resultante de mobilização e indignação pública excede a fúria de 2003 com a invasão do Iraque pelos EUA e está claramente influenciando o comportamento dos regimes da região. De fato, o grau e o poder da mobilização popular podem ser vistos não apenas na mídia e nas multidões nas ruas, mas também nas críticas atípicas a Israel e aos Estados Unidos feitas por regimes que precisam não errar para sobreviver. Até mesmo o Egito, um parceiro próximo dos EUA, ameaçou congelar os Acordos de Camp David se Israel invadir Rafah ou expulsar os habitantes de Gaza para o Sinai.

A mídia árabe, que havia sido muito fragmentada e polarizada politicamente durante as guerras políticas intra-regionais da década anterior, se uniu quase inteiramente em defesa de Gaza. A Al Jazeera está de volta, revivendo seus dias de glória por meio de uma cobertura ininterrupta dos horrores de lá, mesmo que seus jornalistas tenham sido mortos em ação pelas forças israelenses. A mídia social também está de volta – não o cadáver do Twitter ou os lamentavelmente censurados Facebook e Instagram, mas sim aplicativos mais novos como TikTok, WhatsApp e Telegram. As imagens e os vídeos que estão surgindo de Gaza superam a interpretação oferecida por Israel e pelos Estados Unidos e contornam facilmente a cobertura suave dos meios de comunicação ocidentais. As pessoas veem a devastação. Todos os dias elas se deparam com cenas de tragédias inacreditáveis. E elas conhecem as vítimas diretamente. Elas não precisam da mídia para entender as mensagens de WhatsApp de habitantes de Gaza aterrorizados ou para ver os vídeos horríveis que circulam amplamente no Telegram.

Ativistas e intelectuais árabes têm desenvolvido argumentos poderosos em relação à natureza do domínio de Israel sobre os territórios palestinos e esses argumentos estão entrando no discurso ocidental de novas maneiras. O caso que a África do Sul levou à Corte Internacional de Justiça, alegando um genocídio israelense em Gaza, introduziu muitos desses argumentos em circulação no Sul Global e nas organizações internacionais. Isso foi feito com referência não apenas às declarações dos líderes israelenses, mas também às estruturas conceituais sobre ocupação e colonialismo desenvolvidos por intelectuais árabes e palestinos. A guerra de ideias que os Estados Unidos procuraram travar no mundo muçulmano após o 11 de Setembro, alegando trazer liberdade e democracia para uma região atrasada, inverteu o curso, com os Estados Unidos na defensiva por causa de sua hipocrisia ao exigir a condenação da guerra da Rússia contra a Ucrânia e, ao mesmo tempo, apoiar a guerra de Israel contra Gaza.

Uma região à deriva

Tudo isso está acontecendo em uma era caracterizada, mesmo antes da guerra entre Israel e Hamas, pelo declínio da primazia dos Estados Unidos e pela crescente autonomia das potências regionais. Os principais Estados árabes têm buscado cada vez mais demonstrar sua independência em relação aos Estados Unidos, construindo relações estratégicas com a China e a Rússia e buscando suas próprias agendas em assuntos regionais. A disposição dos regimes árabes de desafiar as preferências dos Estados Unidos foi uma marca registrada da década anterior, quando os Estados do Golfo ignoraram as políticas americanas em relação à transição democrática no Egito, inundaram a Síria com armas, apesar da cautela de Washington, e fizeram lobby contra o acordo nuclear com o Irã. Essa disposição de desrespeitar os desejos dos Estados Unidos tornou-se ainda mais evidente após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Nos últimos dois anos, a maioria dos regimes do Oriente Médio se recusou a votar com Washington contra a Rússia, e a Arábia Saudita se recusou a seguir a liderança dos Estados Unidos em relação ao preço do petróleo.

O apoio irrestrito de Washington a Israel em sua devastação de Gaza, no entanto, trouxe à tona a hostilidade de longa data em relação à política dos EUA e desencadeou uma crise de legitimidade que ameaça todo o edifício da primazia histórica estadunidense na região. É difícil classificar como exagero o grau em que os árabes culpam os Estados Unidos por essa guerra. Eles podem ver que somente as vendas de armas dos EUA e os vetos das Nações Unidas permitem que Israel continue sua guerra. Eles estão cientes de que os Estados Unidos defendem Israel por ações que são as mesmas pelas quais os Estados Unidos condenaram a Rússia e a Síria. A extensão dessa raiva popular pode ser vista no desligamento de um grande número de jovens trabalhadores de organizações não governamentais e ativistas de projetos e redes apoiados pelos EUA, construídos ao longo de décadas de diplomacia pública, um desenvolvimento citado por Annelle Sheline em sua renúncia ao cargo de oficial de relações exteriores do Departamento de Estado em março.

A Casa Branca ainda está agindo como se nada disso fosse realmente importante. Os regimes árabes sobreviverão, a raiva diminuirá ou será redirecionada para outras questões e, em alguns meses, Washington poderá voltar à importante questão da normalização israelense-saudita. É assim que as coisas têm funcionado tradicionalmente. Mas desta vez pode ser diferente. O fiasco de Gaza, em um momento de mudança do poder global e de alteração dos cálculos dos líderes regionais, mostra o quão pouco Washington aprendeu com seu longo histórico de fracassos políticos. A natureza e o grau da raiva popular, o declínio da primazia dos EUA e o colapso de sua legitimidade e a priorização dos regimes árabes em sua sobrevivência doméstica, bem como a concorrência regional, sugerem que a nova ordem regional estará muito mais atenta à opinião pública do que a antiga. Se Washington continuar a ignorar a opinião pública, estará condenando seu planejamento para depois do fim da guerra em Gaza.

Ameaça ao pluralismo da informação na Europa.

 

Concentração da propriedade ameaça pluralismo da informação na Europa

30 de abril 2024 - 12:09

Relatório da ONG Civil Liberties Union for Europe sobre a liberdade de imprensa europeia diz que se mantêm muitas das tendências identificadas no ano passado e que põem em risco a liberdade de informar.

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capa do relatório

Relatório da Liberdade de Imprensa 2024, elaborado pela ONG berlinense Civil Liberties Union for Europe, faz o retrato da situação em 19 países da União Europeia, com as principais tendências e desenvolvimentos no marco legislativo e regulatório europeu e nacional. Portugal e Espanha não constam do grupo de países analisados, composto pela Bélgica, Bulgária, Croácia, República Checa, Estónia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Países Baixos, Polónia, Roménia, Eslováquia, Eslovénia e Suécia.

Ente as principais conclusões deste relatório está a da manutenção das tendências gerais observadas no ano anterior quanto à "forte concentração da propriedade dos meios de comunicação social, regras de transparência insuficientes em matéria de propriedade, ameaças à independência e às finanças dos meios de comunicação social de serviço público, casos generalizados de ameaças, intimidação e violência contra jornalistas e restrições à liberdade de expressão e ao acesso à informação".

Do ano de 2023 destacam dois eventos políticos importantes e com consequências para o panorama mediático: as eleições na Polónia, onde logo após a vitória, o novo primeiro-ministro Donald Tusk tomou medidas para a despartidarização do serviço público de informação; e na Eslováquia, onde o regresso ao poder de Robert Fico "coincidiu com uma queda de 10% da confiança da população nos media em comparação com 2022". A diretiva europeia anti-SLAPP, que visa proteger jornalistas dos processos judiciais transfronteiriços com o objetivo de silenciá-los e intimidá-los é considerada "um grande ponto de partida para a implementação de leis nacionais" no mesmo sentido, prossegue este relatório.

Uma das maiores preocupações é com a tendência pra a concentração da propriedade dos media e com a falta de meios e eficácia das entidades que regulam o setor. Croácia, França, Países Baixos, Eslovénia, Hungria, Polónia e Eslováquia são países onde a maior parte dos meios de comunicação estão nas mãos de meia dúzia de empresários. Também na Hungria, mas igualmente na Grécia e Roménia, a despesa pública com publicidade oficial e dirigida sobretudo aos media pró-governamentais, acrescenta a ONG, preocupada ainda com a crescente influência governamental sobre o serviço público de informação em Itália e na Croácia.

No capítulo das ameaças diretas aos jornalistas, Hungria e Eslováquia surgem referidas por os autores das ameaças e abusos serem políticos. E há notícia de ataques físicos no ano passado a jornalistas em França, Croácia, Alemanha, Grécia e Itália.

Os ataques à liberdade de expressão foram registados por organizações da sociedade civil na Bulgária, Croácia, Estónia, Hungria, Irlanda, Italia e Grécia, num ano que viu aumenta a profusão do discurso de ódio nas redes sociais. Aqui, a Civil Liberties Union for Europe destaca as ações dos governos alemão, irlandês e esloveno para o combater. Também a desinformação online é considerada um problema grave na República Checa, Grécia e Itália e a nova legislação para a combater é apontada como contraprodutiva na Lituânia e já serviu para acusar um jornalista na Grécia, acrescenta este relatório.

Entre as recomendações deixadas pelo relatório às instituições da União Europeia estão o acompanhamento por parte da comissão das medidas dos estados membro para assegurar a independência do serviço público de informação e leis mais eficazes para impedir a vigilância das fontes através de spyware. Propõe ainda que Bruxelas dê orientações para a criação de uma base de dados dos proprietários dos media com identificação dos beneficiários últimos das sociedades criadas e as suas ligações políticas a nível nacional e europeu e outra base de dados, desta vez para registar a despesa pública com publicidade e assim ser acessível a toda a gente quanto se gasta e quem recebe essas verbas. ais transparência nos apoios à comunicação social e mais monitorização da concentração dos media, bem como da transposição da diretiva anti-SLAPP são outras das propostas deste relatório.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Estudantes americanos em apoio a Gaza.

 


Portugal: Uma revolução por cumprir.......

 

50 anos do 25 de Abril, uma Revolução por cumprir

PORMIGUEL MARTINS

29 de abril 2024 - 10:28
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O 25 de Abril abriu as portas da transformação e inspirou todo um povo a que se libertasse do fascismo. Hoje, temos de continuar o processo iniciado em 1974, defendendo a liberdade, sabendo que a construção de um outro mundo, de iguais, é possível.

Assinalamos hoje os 50 anos do 25 de Abril. Uma Revolução popular, que uniu militares, liderados pelos Capitães de Abril, ao povo trabalhador, pondo fim à tenebrosa ditadura fascista que amordaçou e amarrou o país durante 48 anos. Naquele que é o dia mais importante (e bonito) da História do nosso país, Portugal libertava-se do fascismo que censurou, prendeu, violentou e matou o seu povo.  Há 50 anos, a força popular, a liberdade e a igualdade triunfavam sobre o fascismo, a opressão, o silêncio e o terror.

O 25 de Abril não marcou apenas o fim de um período sombrio da história do nosso país. Foi também o início de um período, embora muito curto, em que se procurava alcançar um conjunto de conquistas que dessem ao povo português liberdades e direitos em toda a sua plenitude. Estas conquistas são as verdadeiras filhas de Abril: a educação, a saúde, o trabalho, a habitação, a paz e todos os direitos, entre tantos outros. A partir da Revolução, o povo português ambicionou um outro mundo, livre da opressão e da exploração, e onde a riqueza fosse distribuída por igual entre todos os portugueses.

Para raiva e tristeza dos que se sentem incomodados pela Revolução, que vão da direita ao centro-esquerda, e que desde 1974 estão na linha da frente do ataque às suas conquistas, Abril assume e continuará a assumir um papel fundamental na nossa História coletiva, enquanto povo e país. Ao contrário do que os “lesados” de Abril tentam propagar, não foi noutra data que o povo se libertou.

Infelizmente, em novembro de 1975, mataram os cravos com bombas, interrompendo o projeto de transformação do país que Abril trazia, pondo fim ao sonho criado pela Revolução. 50 anos depois, continuam a afirmar que, sob o pretexto da democracia (que qualquer boca afirmava defender, inclusive saudosistas e colaborantes do regime fascista), criaram uma data que marca o início do ataque às conquistas de Abril, e que apenas serviu para salvaguardar os interesses das forças reacionárias, da direita à extrema-direita, e dos seus aliados.

Hoje, vivemos num país quase em crise permanente, em que as conquistas iniciadas por Abril são um alvo constante dos lesados da Revolução. Em nome de metas financeiras, os mecanismos do Estado Social e dos serviços públicos são desmantelados pelos partidos do chamado “arco da governação” através da descapitalização do Serviço Nacional de Saúde, da Escola pública ou da Segurança Social. Ao mesmo tempo, o povo tem os seus rendimentos cortados, os preços da habitação, da luz e da água aumentam, os seus direitos são atacados e as suas condições laborais pioram.

Oportunisticamente, os herdeiros da ditadura fascista apregoam discursos de ódio, enganando o povo com falsas soluções, enquanto culpam setores da sociedade, mais desfavorecidos, pela falta de condições e qualidade de vida dignas - e, ao mesmo tempo, atacam Abril e as suas conquistas com toda a força.

Hoje, novembro está a ser cumprido com todo o fulgor. Os lucros de uns poucos valem mais do que a vida das pessoas, ao contrário do sonhado por Abril. Perante os ataques ao legado da Revolução, não há espaço para recuos ou hesitações. O 25 de Abril abriu as portas da transformação e inspirou todo um povo a que se libertasse do fascismo. Hoje, temos de continuar o processo iniciado em 1974, defendendo a liberdade, sabendo que a construção de um outro mundo, de iguais, é possível. É tempo de nos libertarmos de novembro e cumprir Abril!

25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!

Artigo publicado no jornal Barcelos Popular a 25 de abril de 2024

Miguel Martins
Sobre o/a autor(a)

MIGUEL MARTINS

Sociólogo. Mestrando em Geografia na Universidade do Minho. Deputado municipal do Bloco de Esquerda em Barcelos

Os liberais adoraram Mussolini...

 FASCISMO

Os liberais adoraram Mussolini e a sua austeridade

29 de abril 2024 - 11:15

Apenas uma mão cheia de neofascistas celebraram este domingo Mussolini no aniversário da sua morte. Mas quando foi eleito primeiro-ministro, choveram elogios liberais por causa do seu plano de austeridade e da repressão do movimento dos trabalhadores.

POR

CLARA E. MATTEI | JACOBINA

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Recortes de jornal celebram Mussolini
Recortes de jornal britânicos celebram Mussolini. Foto de Alisdare Hickson/Flickr.

Quando falamos de conceitos como “totalitarismo” e “corporativismo”, muitas vezes assume-se que o fascismo está muito longe da sociedade liberal que a precedeu e em que ainda hoje vivemos. Mas, se prestarmos mais atenção às políticas económicas do fascismo italiano, especialmente durante a década de 1920, podemos ver como algumas combinações típicas tanto do século passado quanto do nosso foram experimentadas já nos primeiros anos do domínio de Benito Mussolini. Um caso em questão é a associação entre a austeridade e a tecnocracia. Por “tecnocracia”, refiro-me ao fenómeno pelo qual certas políticas que são comuns hoje (tais como cortes nos gastos sociais, impostos regressivos, deflação monetária, privatizações e reduções salariais) são decididas por especialistas económicos que aconselham os governos ou mesmo assumem diretamente as próprias rédeas, como em vários casos recentes na Itália.

Como explico em A Ordem do Capital: Como os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho para o fascismo, Mussolini foi um dos maiores campeões da austeridade na sua forma moderna. Isto deu-se em grande parte porque ele se rodeou dos economistas de referência da época, assim como dos campeões do paradigma emergente da “economia pura” – ainda hoje a base da economia neoclássica dominante.

Pouco mais de um mês após a marcha fascista italiana em Roma, em outubro de 1922, os votos parlamentares do Partido Nacional Fascista, do Partido Liberal e do Partido Popular (os popolari, um partido católico e antecessor da Democracia Cristã) introduziram o chamado “período de plenos poderes”. Ao fazer isso, concederam uma autoridade sem precedentes ao Ministro da Economia de Mussolini, o economista Alberto de Stefani, e aos seus colegas e assessores técnicos, em particular Maffeo Pantaleoni e Umberto Ricci.

Mussolini ofereceu a esses economistas uma grande oportunidade: moldar a sociedade sobre o conceito ideal dos seus modelos. Das páginas da revista The Economist, Luigi Einaudi – celebrado como campeão do antifascismo liberal e, em 1948, o primeiro presidente da república democrática do pós-guerra da Itália – acolheu com entusiasmo a viragem autoritária. “Nunca um poder tão absoluto foi confiado por um Parlamento ao Executivo… A renúncia do Parlamento a todos os seus poderes por um período tão longo foi recebida com alegria pela opinião pública. Os italianos estavam cansados de discursos e de fracos dirigentes”, escreveu em 2 de dezembro de 1922. No dia 28 de outubro, na véspera da marcha de Roma, ele tinha declarado: “A Itália precisa de um homem capaz de dizer não a todos os pedidos de novas verbas”.

As esperanças do Einaudi e dos seus colegas foram cumpridas. O regime de Mussolini implantou reformas ousadas promovendo a austeridade fiscal, monetária e industrial. Estas mudanças funcionaram em uníssono para impor duras dificuldades e sacrifícios à classe trabalhadora e garantir a retomada da ordem capitalista. Esta ordem tinha sido amplamente contestada no biennio rosso (dois anos vermelhos) através numerosas revoltas populares e experiências sofisticadas de organização económica pós-capitalista.

Entre as reformas que conseguiram calar qualquer tentativa de mudança social, podemos mencionar a redução drástica dos gastos com a Segurança Social, os despedimentos de funcionários públicos (mais de 65 mil só em 1923), e o aumento dos impostos sobre o consumo (na época, regressivo porque era pago principalmente pelos pobres). Estes somaram-se à eliminação do imposto sobre as heranças que foi acompanhado por um aumento das taxas de juros (de 3 para 7% a partir de 1925), com uma onda de privatizações que intelectuais como o economista Germà Bel denominaram “a primeira privatização em grande escala numa economia capitalista”.

Além disso, o Estado fascista implementou leis laborais coercivas, que reduziram drasticamente os salários e proibiram os sindicatos. A derrota final das aspirações dos trabalhadores veio com a Carta do Trabalho de 1927, que fechou qualquer caminho para a luta de classes. A Carta codificava o espírito do corporativismo, cujo objetivo, nas palavras de Mussolini, era proteger a propriedade privada e “reunir dentro do Estado soberano o dualismo das forças do capital e do trabalho”, que eram vistas como “não mais necessariamente opostas, mas como elementos que deveriam e poderiam aspirar a um objetivo comum, o maior interesse da produção”.

O Ministro da Economia De Stefani elogiou a Carta como uma “revolução institucional”, enquanto o economista liberal Einaudi justificou a sua definição “corporativista” de salários como a única maneira de mimetizar os resultados ótimos do mercado competitivo no modelo neoclássico. A hipocrisia aqui é dura: os economistas, tão inflexíveis na proteção do mercado livre contra o Estado, tiveram poucos problemas com a intervenção repressiva do Estado no mercado de trabalho. Na Itália, houve uma queda ininterrupta nos salários reais que durou todo o período entre guerras, uma tendência única entre os países industrializados.

Entusiasmo internacional

Milícias fascistas assaltam uma sede sindical em Roma.

Fascismo e Grande Capital

21 de janeiro 2024

Enquanto isso, a crescente taxa de exploração garantiu um aumento nas taxas de lucro. Em 1924, o jornal London Times comentou o sucesso da austeridade fascista: “o desenvolvimento dos últimos dois anos tem visto a absorção de uma maior proporção dos lucros pelo capital, e isto, ao estimular o empreendimento empresarial, certamente tem sido vantajoso para o país como um todo”. Esta é a narrativa típica capaz de promover e ganhar aceitação nas doutrinas de austeridade atuais: o consentimento das pessoas comuns aos sacrifícios é construído sobre uma retórica do bem comum.

Em suma, num momento em que a maioria dos cidadãos italianos exigia grandes mudanças sociais, a austeridade precisava do fascismo – um governo forte, de cima para baixo, que pudesse impor as uma vontade nacionalista coercitivamente e com impunidade política – para o seu sucesso imediato. E o fascismo, em troca, exigia austeridade para solidificar seu governo. Foi o atrativo da austeridade que levou as instituições liberais internacionais e nacionais a apoiar o governo de Mussolini mesmo depois da Leggi Fascistissime [literalmente: “a leis mais fascistas”] de 1925-6 que instalou Mussolini como o ditador oficial da nação.

O jornal The Economist, por exemplo, em 4 de novembro de 1922, simpatizava com o objetivo de Mussolini de impor uma “redução drástica das despesas públicas” em nome da “necessidade gritante de obter financiamento sadio na Europa”, e comemorava em março de 1924: “O Signor Mussolini restabeleceu a ordem e eliminou os principais fatores de perturbação”. Em particular, quando os salários atingiram os seus limites, as greves multiplicaram-se. Estes foram os fatores de “perturbação”, e de acordo com eles “nenhum governo foi forte o suficiente para tentar uma solução”. Em junho de 1924, o jornal Times, que considerava o fascismo um governo “contrário ao desperdício”, elogiou-o como uma solução para as ambições dos “camponeses bolcheviques” em “Novara, Montara e Alessandria” e “a estupidez brutal destas pessoas”, seduzidas por “experiências da chamada gestão coletiva”.

A embaixada britânica e a imprensa liberal internacional continuaram a alegrar-se com os triunfos de Mussolini. O Duce tinha conseguido unir a ordem política e económica – a própria essência da austeridade. Como mostram os arquivos históricos, no final de 1923, o embaixador britânico em Itália garantiu aos observadores nos seu país que “o capital estrangeiro tinha superado a timidez do passado e estava novamente a vir para a Itália com confiança”. O diplomata enfatizou muitas vezes o contraste entre a incapacidade da democracia parlamentar italiana após a Primeira Guerra Mundial – considerada instável e corrupta – e a gestão económica “eficiente” do Ministro De Stefani:

Há dezoito meses, qualquer observador instruído da vida nacional estava obrigado a concluir que a Itália era um país em decadência… Agora é geralmente admitido que a situação mudou, mesmo para aqueles que não gostam do fascismo e condenam os seus métodos. Um progresso notável em direção à estabilização das finanças do Estado… as greves [diminuíram] em 90% e os dias de trabalho perdidos [diminuíram] em mais de 97% e um aumento da poupança nacional de 4.000 [milhões de liras] em relação ao ano anterior; de facto, excedem pela primeira vez o nível pré-guerra em quase 2.000 milhões de liras.

Os celebrados sucessos da austeridade em Itália – avaliados em termos de paz industrial, altos lucros e mais negócios para a Grã-Bretanha – também tiveram uma face repressiva que foi muito além da institucionalização de um Executivo forte e da evasão do Parlamento. A própria embaixada relatou inúmeras ações brutais: o constante ataque aos opositores políticos; a queima de sedes e câmaras de trabalho socialistas; a demissão de inúmeros presidentes de Câmara socialistas; a prisão de comunistas; e muitos assassinatos políticos amplamente conhecidos, dos quais o mais importante foi o assassinato do parlamentar socialista Giacomo Matteotti.

Mas a mensagem era clara: qualquer preocupação com os abusos políticos do fascismo desapareceu face aos sucessos da sua austeridade. Até mesmo o campeão do liberalismo e governador do Banco da Inglaterra Montagu Norman, após expressar desconfiança de um Estado como o fascista sob o qual “qualquer coisa no caminho da divergência” tinha sido “eliminada” e no qual “a oposição em qualquer forma [desapareceu]”, acrescentou: “este momento é adequado e pode proporcionar, uma administração mais bem adaptada para a Itália”. Da mesma forma, Winston Churchill, na época chefe do Tesouro Britânico, afirmou: “Diferentes nações têm maneiras diferentes de fazer a mesma coisa… Se eu fosse italiano, estou certo de que estaria com vocês do começo até o fim na vossa luta vitoriosa contra o leninismo”.

Tanto Norman como Winston Churchill afirmaram tanto em privado quanto publicamente que soluções liberais inconcebíveis nos seu próprio país poderiam ser aplicadas a um povo “diferente” e menos democrático como Itália, com “dois pesos e duas medidas” que os leitores contemporâneos poderiam muito bem reconhecer.

De facto, mesmo quando os observadores liberais levantaram dúvidas, estas não eram de preocupação com a democracia mas sim com o que aconteceria sem Mussolini. Em junho de 1928, Einaudi escreveu no The Economist que temia um vácuo de representação política mas ainda mais um colapso da ordem capitalista. Ele falava dos “questionamentos sérios” na mente dos ingleses:

Quando, novamente, no curso inevitável da natureza, a mão forte do grande Duce for retirada do leme do barco, a Itália terá outro homem do seu calibre? Pode uma era qualquer produzir dois Mussolinis? Se não, o que acontecerá? Sob um controle mais fraco e menos sábio, não teremos um futuro caótico? E com que consequências, não apenas para a Itália, mas para a Europa?

O mundo político internacional ficou tão apaixonado pela austeridade de Mussolini que recompensou o regime com os recursos financeiros necessários para solidificar ainda mais a liderança política e económica do país, em particular, liquidando a dívida de guerra e estabilizando a lira, como nos mostra o clássico de Gian Giacomo Migone Os Estados Unidos e a Itália fascista.

O apoio ideológico e material que o establishment liberal italiano deu ao regime de Mussolini sem dúvida não foi uma exceção. Na verdade, a mistura de autoritarismo, especialização técnica em economia com austeridade inaugurada pelo fascismo “liberal” (economicamente liberal) teve muitas reproduções: a partir do uso dos “Chicago Boys” pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile até ao apoio dos “Berkeley Boys” à ditadura de Suharto na Indonésia (1967-1998), como também a experiência dramática – recentemente de volta aos holofotes – da dissolução da URSS.

Como observa Giulia Albanese, ainda falta uma “história global” da Marcha em Roma. Mas certamente vale a pena redescobrir o seu legado em termos da difusão de uma prática autoritária de austeridade – também à luz do antifascismo daqueles liberais que na década de 1920 tinham preferido a ordem económica em vez da democracia e das necessidades de redistribuição de riqueza.


Clara E. Mattei é professora assistente no departamento de economia da New School for Social Research e autora do livro "The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism".

Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobina. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.FASCISMO

Os liberais adoraram Mussolini e a sua austeridade

29 de abril 2024 - 11:15

Apenas uma mão cheia de neofascistas celebraram este domingo Mussolini no aniversário da sua morte. Mas quando foi eleito primeiro-ministro, choveram elogios liberais por causa do seu plano de austeridade e da repressão do movimento dos trabalhadores.

POR

CLARA E. MATTEI | JACOBINA

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Recortes de jornal celebram Mussolini
Recortes de jornal britânicos celebram Mussolini. Foto de Alisdare Hickson/Flickr.

Quando falamos de conceitos como “totalitarismo” e “corporativismo”, muitas vezes assume-se que o fascismo está muito longe da sociedade liberal que a precedeu e em que ainda hoje vivemos. Mas, se prestarmos mais atenção às políticas económicas do fascismo italiano, especialmente durante a década de 1920, podemos ver como algumas combinações típicas tanto do século passado quanto do nosso foram experimentadas já nos primeiros anos do domínio de Benito Mussolini. Um caso em questão é a associação entre a austeridade e a tecnocracia. Por “tecnocracia”, refiro-me ao fenómeno pelo qual certas políticas que são comuns hoje (tais como cortes nos gastos sociais, impostos regressivos, deflação monetária, privatizações e reduções salariais) são decididas por especialistas económicos que aconselham os governos ou mesmo assumem diretamente as próprias rédeas, como em vários casos recentes na Itália.

Como explico em A Ordem do Capital: Como os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho para o fascismo, Mussolini foi um dos maiores campeões da austeridade na sua forma moderna. Isto deu-se em grande parte porque ele se rodeou dos economistas de referência da época, assim como dos campeões do paradigma emergente da “economia pura” – ainda hoje a base da economia neoclássica dominante.

Pouco mais de um mês após a marcha fascista italiana em Roma, em outubro de 1922, os votos parlamentares do Partido Nacional Fascista, do Partido Liberal e do Partido Popular (os popolari, um partido católico e antecessor da Democracia Cristã) introduziram o chamado “período de plenos poderes”. Ao fazer isso, concederam uma autoridade sem precedentes ao Ministro da Economia de Mussolini, o economista Alberto de Stefani, e aos seus colegas e assessores técnicos, em particular Maffeo Pantaleoni e Umberto Ricci.

Mussolini ofereceu a esses economistas uma grande oportunidade: moldar a sociedade sobre o conceito ideal dos seus modelos. Das páginas da revista The Economist, Luigi Einaudi – celebrado como campeão do antifascismo liberal e, em 1948, o primeiro presidente da república democrática do pós-guerra da Itália – acolheu com entusiasmo a viragem autoritária. “Nunca um poder tão absoluto foi confiado por um Parlamento ao Executivo… A renúncia do Parlamento a todos os seus poderes por um período tão longo foi recebida com alegria pela opinião pública. Os italianos estavam cansados de discursos e de fracos dirigentes”, escreveu em 2 de dezembro de 1922. No dia 28 de outubro, na véspera da marcha de Roma, ele tinha declarado: “A Itália precisa de um homem capaz de dizer não a todos os pedidos de novas verbas”.

As esperanças do Einaudi e dos seus colegas foram cumpridas. O regime de Mussolini implantou reformas ousadas promovendo a austeridade fiscal, monetária e industrial. Estas mudanças funcionaram em uníssono para impor duras dificuldades e sacrifícios à classe trabalhadora e garantir a retomada da ordem capitalista. Esta ordem tinha sido amplamente contestada no biennio rosso (dois anos vermelhos) através numerosas revoltas populares e experiências sofisticadas de organização económica pós-capitalista.

Entre as reformas que conseguiram calar qualquer tentativa de mudança social, podemos mencionar a redução drástica dos gastos com a Segurança Social, os despedimentos de funcionários públicos (mais de 65 mil só em 1923), e o aumento dos impostos sobre o consumo (na época, regressivo porque era pago principalmente pelos pobres). Estes somaram-se à eliminação do imposto sobre as heranças que foi acompanhado por um aumento das taxas de juros (de 3 para 7% a partir de 1925), com uma onda de privatizações que intelectuais como o economista Germà Bel denominaram “a primeira privatização em grande escala numa economia capitalista”.

Além disso, o Estado fascista implementou leis laborais coercivas, que reduziram drasticamente os salários e proibiram os sindicatos. A derrota final das aspirações dos trabalhadores veio com a Carta do Trabalho de 1927, que fechou qualquer caminho para a luta de classes. A Carta codificava o espírito do corporativismo, cujo objetivo, nas palavras de Mussolini, era proteger a propriedade privada e “reunir dentro do Estado soberano o dualismo das forças do capital e do trabalho”, que eram vistas como “não mais necessariamente opostas, mas como elementos que deveriam e poderiam aspirar a um objetivo comum, o maior interesse da produção”.

O Ministro da Economia De Stefani elogiou a Carta como uma “revolução institucional”, enquanto o economista liberal Einaudi justificou a sua definição “corporativista” de salários como a única maneira de mimetizar os resultados ótimos do mercado competitivo no modelo neoclássico. A hipocrisia aqui é dura: os economistas, tão inflexíveis na proteção do mercado livre contra o Estado, tiveram poucos problemas com a intervenção repressiva do Estado no mercado de trabalho. Na Itália, houve uma queda ininterrupta nos salários reais que durou todo o período entre guerras, uma tendência única entre os países industrializados.

Entusiasmo internacional

Milícias fascistas assaltam uma sede sindical em Roma.

Fascismo e Grande Capital

21 de janeiro 2024

Enquanto isso, a crescente taxa de exploração garantiu um aumento nas taxas de lucro. Em 1924, o jornal London Times comentou o sucesso da austeridade fascista: “o desenvolvimento dos últimos dois anos tem visto a absorção de uma maior proporção dos lucros pelo capital, e isto, ao estimular o empreendimento empresarial, certamente tem sido vantajoso para o país como um todo”. Esta é a narrativa típica capaz de promover e ganhar aceitação nas doutrinas de austeridade atuais: o consentimento das pessoas comuns aos sacrifícios é construído sobre uma retórica do bem comum.

Em suma, num momento em que a maioria dos cidadãos italianos exigia grandes mudanças sociais, a austeridade precisava do fascismo – um governo forte, de cima para baixo, que pudesse impor as uma vontade nacionalista coercitivamente e com impunidade política – para o seu sucesso imediato. E o fascismo, em troca, exigia austeridade para solidificar seu governo. Foi o atrativo da austeridade que levou as instituições liberais internacionais e nacionais a apoiar o governo de Mussolini mesmo depois da Leggi Fascistissime [literalmente: “a leis mais fascistas”] de 1925-6 que instalou Mussolini como o ditador oficial da nação.

O jornal The Economist, por exemplo, em 4 de novembro de 1922, simpatizava com o objetivo de Mussolini de impor uma “redução drástica das despesas públicas” em nome da “necessidade gritante de obter financiamento sadio na Europa”, e comemorava em março de 1924: “O Signor Mussolini restabeleceu a ordem e eliminou os principais fatores de perturbação”. Em particular, quando os salários atingiram os seus limites, as greves multiplicaram-se. Estes foram os fatores de “perturbação”, e de acordo com eles “nenhum governo foi forte o suficiente para tentar uma solução”. Em junho de 1924, o jornal Times, que considerava o fascismo um governo “contrário ao desperdício”, elogiou-o como uma solução para as ambições dos “camponeses bolcheviques” em “Novara, Montara e Alessandria” e “a estupidez brutal destas pessoas”, seduzidas por “experiências da chamada gestão coletiva”.

A embaixada britânica e a imprensa liberal internacional continuaram a alegrar-se com os triunfos de Mussolini. O Duce tinha conseguido unir a ordem política e económica – a própria essência da austeridade. Como mostram os arquivos históricos, no final de 1923, o embaixador britânico em Itália garantiu aos observadores nos seu país que “o capital estrangeiro tinha superado a timidez do passado e estava novamente a vir para a Itália com confiança”. O diplomata enfatizou muitas vezes o contraste entre a incapacidade da democracia parlamentar italiana após a Primeira Guerra Mundial – considerada instável e corrupta – e a gestão económica “eficiente” do Ministro De Stefani:

Há dezoito meses, qualquer observador instruído da vida nacional estava obrigado a concluir que a Itália era um país em decadência… Agora é geralmente admitido que a situação mudou, mesmo para aqueles que não gostam do fascismo e condenam os seus métodos. Um progresso notável em direção à estabilização das finanças do Estado… as greves [diminuíram] em 90% e os dias de trabalho perdidos [diminuíram] em mais de 97% e um aumento da poupança nacional de 4.000 [milhões de liras] em relação ao ano anterior; de facto, excedem pela primeira vez o nível pré-guerra em quase 2.000 milhões de liras.

Os celebrados sucessos da austeridade em Itália – avaliados em termos de paz industrial, altos lucros e mais negócios para a Grã-Bretanha – também tiveram uma face repressiva que foi muito além da institucionalização de um Executivo forte e da evasão do Parlamento. A própria embaixada relatou inúmeras ações brutais: o constante ataque aos opositores políticos; a queima de sedes e câmaras de trabalho socialistas; a demissão de inúmeros presidentes de Câmara socialistas; a prisão de comunistas; e muitos assassinatos políticos amplamente conhecidos, dos quais o mais importante foi o assassinato do parlamentar socialista Giacomo Matteotti.

Mas a mensagem era clara: qualquer preocupação com os abusos políticos do fascismo desapareceu face aos sucessos da sua austeridade. Até mesmo o campeão do liberalismo e governador do Banco da Inglaterra Montagu Norman, após expressar desconfiança de um Estado como o fascista sob o qual “qualquer coisa no caminho da divergência” tinha sido “eliminada” e no qual “a oposição em qualquer forma [desapareceu]”, acrescentou: “este momento é adequado e pode proporcionar, uma administração mais bem adaptada para a Itália”. Da mesma forma, Winston Churchill, na época chefe do Tesouro Britânico, afirmou: “Diferentes nações têm maneiras diferentes de fazer a mesma coisa… Se eu fosse italiano, estou certo de que estaria com vocês do começo até o fim na vossa luta vitoriosa contra o leninismo”.

Tanto Norman como Winston Churchill afirmaram tanto em privado quanto publicamente que soluções liberais inconcebíveis nos seu próprio país poderiam ser aplicadas a um povo “diferente” e menos democrático como Itália, com “dois pesos e duas medidas” que os leitores contemporâneos poderiam muito bem reconhecer.

De facto, mesmo quando os observadores liberais levantaram dúvidas, estas não eram de preocupação com a democracia mas sim com o que aconteceria sem Mussolini. Em junho de 1928, Einaudi escreveu no The Economist que temia um vácuo de representação política mas ainda mais um colapso da ordem capitalista. Ele falava dos “questionamentos sérios” na mente dos ingleses:

Quando, novamente, no curso inevitável da natureza, a mão forte do grande Duce for retirada do leme do barco, a Itália terá outro homem do seu calibre? Pode uma era qualquer produzir dois Mussolinis? Se não, o que acontecerá? Sob um controle mais fraco e menos sábio, não teremos um futuro caótico? E com que consequências, não apenas para a Itália, mas para a Europa?

O mundo político internacional ficou tão apaixonado pela austeridade de Mussolini que recompensou o regime com os recursos financeiros necessários para solidificar ainda mais a liderança política e económica do país, em particular, liquidando a dívida de guerra e estabilizando a lira, como nos mostra o clássico de Gian Giacomo Migone Os Estados Unidos e a Itália fascista.

O apoio ideológico e material que o establishment liberal italiano deu ao regime de Mussolini sem dúvida não foi uma exceção. Na verdade, a mistura de autoritarismo, especialização técnica em economia com austeridade inaugurada pelo fascismo “liberal” (economicamente liberal) teve muitas reproduções: a partir do uso dos “Chicago Boys” pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile até ao apoio dos “Berkeley Boys” à ditadura de Suharto na Indonésia (1967-1998), como também a experiência dramática – recentemente de volta aos holofotes – da dissolução da URSS.

Como observa Giulia Albanese, ainda falta uma “história global” da Marcha em Roma. Mas certamente vale a pena redescobrir o seu legado em termos da difusão de uma prática autoritária de austeridade – também à luz do antifascismo daqueles liberais que na década de 1920 tinham preferido a ordem económica em vez da democracia e das necessidades de redistribuição de riqueza.


Clara E. Mattei é professora assistente no departamento de economia da New School for Social Research e autora do livro "The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism".

Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobina. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.