sexta-feira, 1 de maio de 2009

IRAQUE - Nunca deixo de pensar em Faluja.

Durante o período mais violento da guerra do Iraque, os jornalistas dos meios de comunicação ocidentais aceitaram fazer a cobertura dos acontecimentos integrados no exército dos EUA…
Laith Musthtaq é um dos dois únicos jornalistas que trabalharam em condições de total liberdade durante a «batalha de Faluja em Abril de 2004. Cinco anos depois relata os acontecimentos que viu e filmou.

Stephanie Doetzer - 20.04.09

O que viram nas vossas televisões só reflecte 10% da realidade. Além disso, s estavam a ver as imagens em casa podiam mudar de canal. Mas nós estávamos lá dentro. Cheirávamos, sentíamos, víamos e tocávamos tudo. Podíamos tocar nos corpos, mas não podíamos mudar de canal. Nós éramos o canal.

Quando penso em Faluja sinto o seu cheiro. O cheiro endoidecia-me. Num corpo morto há uma espécie de líquido, um líquido amarelo. O cheiro é verdadeiramente insuportável. Cola-se ao nariz. Não conseguimos comer.

Não podemos tirar as imagens da cabeça porque todos os dias vemos o mesmo: explosões, mortes, explosões, mortes, mortes, mortes.

Depois de trabalhar sentámo-nos e demo-nos conta que trazíamos restos de carne humana agarrada aos sapatos. Mas não há tempo para perguntar porquê.

Recordo que em Abril de 2004 estava no escritório de Bagdad e o meu chefe disse: «temos informação que os estadounidenses vão atacar Faluja. Precisamos de uma equipa que entre imediatamente em Faluja, quem pode ir?» Respondi: eu posso ir». Não duvidei nem por um momento.

Filmar era «um dever».

Sabia que o preço que teria que pagar seria alto. Talvez com a vida. Mas se tenho medo de morrer então não posso trabalhar com uma câmara em nenhum lugar perigoso. Sei que morrerei um dia, amanhã, para o mês que vem, no próximo ano ou dentro de dez anos. Não sei.

Mas a questão é se morrerei na cama ou a fazer qualquer coisa de bom.

Faluja era o meu dever. Tinha que apresentar a verdade fora do Iraque. Por verdade entendo o que realmente acontecia nas ruas. Não uma mensagem política, apenas o que podia ver com os meus próprios olhos. Havia pessoas que falavam de Faluja e diziam «não se passa nada» ou «as pessoas estão bem» e «tudo está estável».

Seria óptimo se tudo estivesse estável. Ter-me-ia encantado que não acontecesse nada. Mas a realidade era muito diferente.

Um dia, creio que a 9 de Abril de 2004, alguém disse por um altifalante colocado na principal mesquita de Faluja: Os estadounidenses abriram uma porta e as mulheres e crianças poderão sair».

Todas as mulheres e crianças de Faluja trataram de encontrar um carro para abandonar a cidade, mas quando estavam nas ruas, as forças estadonidenses abriram fogo.

Há uma foto que não posso esquecer: vi uma mulher com três filhos na rua e tirei-lhe uma foto, a ela e às três crianças. Disse-me: «Não temos nenhum homem aqui, há alguém que nos possa ajudar»? Muitos homens de Faluja trabalhavam em Bagdad e quando fecharam a cidade não puderam voltar para as suas mulheres e filhos. Assim que alguns homens a ajudaram decidi filmar a cena e depois sentei-me a fumar.

Dez minutos depois chegou uma ambulância. Corri atrás da ambulância e quando abriram a porta, vi a mesma mulher e os três filhos, mas estavam destroçados.

Ainda me lembro que os enfermeiros não podiam pegar-lhe porque estava em pedaços, as pessoas afastavam-se quando viam e desviavam o olhar. Então um enfermeiro gritou: Eh!, parece a tua mãe. Na língua iraquiana isto significa: «Podia ser a tua mãe, assim trata-a como tratarias a tua mãe». Todas as pessoas se aproximaram para ajudar a transportar os restos da mulher, já que a ambulância era necessária para outras pessoas.

Passámos o dia em frente do hospital principal, mas teríamos necessitado de 12 câmaras para filmar tudo o que ali aconteceu.

Havia cinco ou seis ambulâncias que iam e vinha com pessoas feridas ou mortas. Quando filmava dentro do hospital havia muitas pessoas fora, quando filmava à porta havia muita gente dentro do hospital.

Os restantes membros da equipa da Al Jazeera e eu sentiamo-nos paralisados. Era demasiado para nós. Estávamos apenas duas câmaras e dois repórteres, não era suficiente.

Os jornalistas, os directores em Doha e Bagdad, as pessoas de Faluja, todos, não deixavam de nos chamar para que filmássemos o que acontecia, e as ambulâncias não deixavam de ir e vir.

Ouvi pessoas que gritavam dentro do hospital porque já não havia medicamentos. Tiveram que cortar pernas absolutamente a sangue frio.

A certa altura já não podia mexer-me. Sentei-me na rua e comecei a fumar. Não podia mexer-me. Via o que acontecia à minha volta, mas não conseguia mexer-me. Já não tinha forças.

Ruas abarrotadas de cadáveres

Então recordei-me dos heróis de Faluja de que ninguém fala, como este velho. Tinha uma furgoneta de caixa aberta e todos os dias conduzia pelas ruas à procura de quem lhe dissesse que nesta ou naquela rua havia um cadáver, mas que ninguém se podia aproximar porque estava lá um franco-atirador. Ele dirigia-se para lá, parava a furgoneta e rastejava até ao corpo e levava-o de rastos até à furgoneta. Num dia trouxe cinco cadáveres. Alguns estavam mortos há mais de uma semana, mas ninguém se tinha atrevido a tirá-los dali. Outros já os cães os tinha começado a comer.

Quando estava em Fajula eu sabia que nenhum dos movimentos da câmara que fazia eram por mim, mas pelas pessoas que estavam lá dentro. E para as pessoas que estavam fora, porque tinham o direito de saber o que tinha acontecido. É como se fosse um SOS.

Os estadounidenses diziam que as nossas imagens provocavam o ódio contra eles. Mas o que eu fiz foi só mostrar o que, no terreno, fazia o seu exército. Não os odeio. Não desejo vingança, só gostaria que se tivessem dado conta do que estavam a fazer. Às vezes desejava que a minha mente fosse como um computador e que se pudesse reformatar. Ou que pudesse ir a um hospital e apagar partes da minha memória.

Houve momentos em Faluja que, ao manejar a câmara ao lado de um cadáver sentia que eu não tinha coração devido à dose de guerra que tinha visto. Era como uma sobredose. Não só para mim, mas também para a minha família que estava em Bagdad. O mês que passei em Faluja a minha mãe passava o tempo todo a ver televisão, porque sabia que estava ali o seu filho e sabia que aquelas eram imagens que o seu filho tinha gravado. Por vezes passavam dois dias sem nos falarmos.

Um dia ouviu a notícia que os estadounidenses estavam a tentar chegar ao centro da cidade. Não aguentou mais, foi às instalações da Al Jazeera em Bagdad e gritou: Devolvam-me o meu filho! Senti-me envergonhado, mas a minha mãe, por fim, é uma mãe.

Mais ou menos por esses dias recebemos uma chamada do director-geral da Al Jazeera. Queria falar com cada um dos membros da equipa, com o chofer, comigo, com cada um de nós. Disse: «Muito obrigado, valorizamos enormemente tudo o que estão a fazer». E depois acrescentou: «se querem abandonar Faluja, enviaremos alguém para que os tire daí.» Todos recusámos. Todos queríamos ficar. Porque não íamos ser melhores que as mulheres e as crianças de Faluja? Ninguém lhes tinha feito uma chamada a perguntar se queriam sair.

Numa declaração escrita entrega na Al Jazzera, o tenente-coronel Curtis L Hill, director de relações públicas da força multinacional no oeste do Iraque, negou que as forças estadounidenses tivessem disparado contra «civis desarmados». «As forças da coligação estavam ali para capturar os terroristas responsáveis pela morte de quatro contratados estadounidenses. Não tinha disparado contra civis desarmados que tentavam abandonar a cidade», afirmou.

Quando lhe perguntaram se se tinha decretado um cessar-fogo em 9 de Abril, disse que as tropas tinham «parado antes, apesar de, creio, ter sido a 11 de Abril»


* Laith Mushtaq é natural de Bagdad e começou a trabalhar do canal árabe Al Jazeera em 2003.
Fonte:O Diário.info.

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