sábado, 27 de março de 2010

EL SALVADOR - 30 anos de impunidade do homicídio de Dom Romero.

27/3/2010
O homicídio de Romero: 30 anos de impunidade. Entrevista com José Maria Tojeira

Era de manhã cedo. A porta da capela do hospital Divina Providência estava escancarada, por causa do calor. Dom Oscar Arnulfo Romero estava celebrando a missa, quando um assassino dos esquadrões da morte, encostado do lado de fora em um carro, o matava com um único tiro no peito, durante a elevação.

No dia anterior, o arcebispo de San Salvador havia centrado aquela que foi a sua última homilia na observância do quinto mandamento, "não matar", intimando os soldados do Exército a não disparar sobre seu próprio povo.

As exéquias de Dom Romero, na praça da catedral, converteram-se em uma carnificina de gente pobre, atingidas pelos atiradores localizados nos telhados dos edifícios ao redor da praça. Era o início de uma guerra civil que se prolongou por 12 anos, com um balanço de 75 mil vítimas.

O assassinato de Dom Romero ficou impune, o seu assassino, sem nome. Mas ficou óbvio a todos, desde logo, o seu mandante: o major Roberto D'Aubuisson (que morreu alguns anos mais tarde com um câncer na língua), fundador do partido da direita, Arena, que governou o El Salvador por duas décadas, até a afirmação do ex-grupo guerrilheiro Frente Farabundo Martí nas eleições de um ano atrás.

Uma das palavras de ordem de D'Aubuisson era "seja patriota, mate um padre". E, com efeito, foi grande o tributo de sangue da Igreja salvadorenha entre sacerdotes, freiras e ministros da palavra assassinados. Até a cruel matança dos seis jesuítas da Universidade Centro-Americana (UCA) de novembro de 1989.

A 30 anos daquele 24 de março de 1980, encontramos o atual reitor da UCA, padre José Maria Tojeira.

A reportagem é de Gianni Beretta, publicada no jornal Il Manifesto, 25-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Padre, o sacrifício de Dom Romero e de quem o seguiu foi talvez em vão?

Os sacrifícios nunca são inúteis. É verdade que raramente produzem benefícios imediatamente. No El Salvador, persistem as causas que geraram o conflito: uma grande pobreza, diferenças sociais enormes e crescentes e muita violência. Porém, se antes quem pensava diferentemente do setor dominante era sistematicamente perseguido, hoje há mais liberdade de pensamento, capacidade crítica e garantias políticas. Enquanto o legado de Dom Romero pela justiça social e a convivência pacífica continua intacto.

Até que ponto foi feito justiça a esses crimes?

Na realidade, ainda estamos muito longe. A anistia decretada, naquele tempo, pelo governo da Arena foi uma medida vergonhosa, porque sentenciava a inexistência de qualquer crime de lesa humanidade. E as pressões de órgãos jurídicos internacionais não serviram de nada.

O que fazer então, além do perdão em nome do Estado, pedido por Mauricio Funes, presidente de um governo que surgiu a partir do recente sucesso eleitoral do ex-grupo guerrilheiro?

O esquema seguido até aqui foi o do apagar e esquecer. Mas o nosso propósito não é de mandar ninguém para a prisão (e seriam muitos), ainda mais que as prisões deste país transbordam de detentos. Nós estamos nos esforçando por uma lei de reconciliação que, em primeiro lugar, garanta a busca da verdade. Deve-se prever, depois, uma reparação moral e material às vítimas, principalmente nas áreas rurais, que são as mais pobres. E tudo isso deve passar pela restituição da dignidade das vítimas. Enfim, um percurso semelhante ao que foi realizado na África do Sul, onde as responsabilidades dos crimes foram reconhecidas na presença das vítimas ou de seus familiares e de quem foi seu autor, excluindo porém qualquer pena carcerária. É isso que nós chamamos de "justiça restaurativa".

Incluindo os assassinos de Dom Romero e dos seis jesuítas?

Nesses dois casos, o povo salvadorenho já deu há muito tempo o seu veredito, restituindo plena dignidade ao seu sacrifício. O problema é o infinito número de pessoas que permaneceram vítimas da repressão e nunca foram reconhecidas como tais. Um exemplo é o massacre de El Mozote, em que foram mortas mais de mil pessoas, incluindo 131 crianças, menores de seis anos, fechados na igreja enquanto matavam seus pais. E que, por sua vez, foram trucidados porque não sabiam como se desfazer deles.

Trinta anos depois da morte de Dom Romero, em que estágio está o seu processo de beatificação?

Não sei bem em que ponto está. O que posso afirmar é que avança com uma lentidão vergonhosa.

Recém eleito Papa, Ratzinger colocou publicamente na mira os escritos do teólogo da libertação Jon Sobrino, único dos jesuítas que se salvou da matança da UCA, simplesmente porque não estava dormindo ali...

Tratou-se só de uma advertência sobre dois pontos doutrinários: um que se refere à humanidade e à divindade de Cristo em uma única pessoa, em que Sobrino destacava o humano sem negar o divino. E o outro sobre o nascimento da Igreja, fruto mais da ação dos pobres do que do Espírito Santo. Em todo caso, o padre Sobrino nunca foi convocado a Roma a respeito. E continua prestando o seu serviço aqui na UCA.

Voltemos ao novo governo de Mauricio Funes e do ex-grupo guerrilheiro que vai completar um ano.

Funes tornou-se presidente em plena crise financeira internacional que determinou no El Salvador a queda de 12% das remessas familiares [primeira fonte de renda do país] dos nossos emigrados aos EUA. Grande parte das "maquilas" [zonas francas industriais] fecharam, criando dezenas de milhares de novos desempregados. Com o resultado de que a pobreza cresceu 10% em dois anos, ou seja, 600 mil pobres além dos que já havia.

Além disso, a Arena deixou os cofres do Estado vazios e com um forte endividamento.

As margens do novo governo não são, portanto, grandes para melhorar as coisas, mesmo com os seus programas sociais. Acredito que o passo mais significativo de Funes foi a nomeação de alguns magistrados decentes (no sentido da sua independência) à Corte Suprema de Justiça, até ontem completamente entregue à Arena.

O último relatório das Nações Unidas define a América Central, incluindo o El Salvador, como a região mais violenta do mundo.

As razões são muitas. E uma delas é a pobreza que, no El Salvador, segundo o mesmo relatório, chega a 80% da população. Mas a causa fundamental são as enormes diferenças sociais. A violência não é gerada só pela miséria em si, mas também por uma elevada pobreza que convive com a opulência. A isso, deve-se acrescentar o modelo de consumo pelo qual se você não consome não é ninguém. Aqui ao lado da UCA tem uma grande propaganda que diz: "Você é onde você vive". Existem zonas rurais extremamente pobres, onde a violência não existe. Enquanto ela é máxima nas concentrações urbanas.

Por isso o fenômeno das "maras", gangues de jovens que atacam na capital e fora dela.

É um fenômeno grave, mesmo que o relatório das Nações Unidas o insira como terceiro fator da violência, depois do narcotráfico e da criminalidade comum. Nesse sentido, para dar passos reais, as transformações sociais devem ser acompanhadas simultaneamente pela consolidação das instituições, no sentido de um sistema judiciário que funcione, principalmente, e de uma ação eficaz e preventiva das forças de polícia.

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