sábado, 24 de agosto de 2013

SÍRIA - Expulsão dos "cães selvagens"

O Egipto de Sisi expulsa os cães selvagens

– As matilhas de mercenários que assolam a Síria já não têm abrigo no Egipto

por M. K. Bhadrakumar [*]
A serpente do Qatar.Yves Jego, prefeito de Montereau-Fault-Yonne, no subúrbio ao sul de Paris, anunciou 2ª-feira que os proprietários de cães em sua cidade serão doravante filmados por câmeras de vigilância. Os que não tenham noção do dever cívico e não recolham das calçadas o cocô dos seus animaizinhos receberão multa de 35 euros (US$46).

O sr. Jego comparou esses proprietários irresponsáveis a traficantes de drogas, que ameaçam a segurança pública. Pode-se aplicar a analogia à Síria.

De fato, no instante em que o prefeito Jego falava à Agência France-Presse, a mesma AFP distribuía notícias sobre uma reunião discreta, marcada para meados da próxima semana, bem distante dos holofotes da divulgação internacional, numa cidade localizada a 468,7 km ao norte de Paris: Haia.

Há fiapos de esperança de que um acto de limpeza em relação à Síria não possa ser descartado.

Cidade bizantina de cães selvagens 

Segundo a AFP, a reunião prevista de altos funcionários de EUA e Rússia em Haia foi concebida na reunião do dia 9/8 em Washington dentro do formato "2+2" dos ministros de Defesa e Relações Exteriores dos dois países.

Wendy Sherman subsecretária de Estado dos EUA para assuntos políticos chefia a equipe norte-americana, que inclui – interessante! – o embaixador dos EUA à Síria Robert Ford , que o presidente Barack Obama acaba de renomear seu próximo enviado especial ao Cairo. E Lakhdar Brahimi, enviado da ONU-Liga Árabe à Síria, também participará.

O objetivo declarado da reunião de Haia é discutir preparativos para a sempre adiada conferência internacional para a paz na Síria, apelidada "Genebra-2", que visa a aproximar o regime sírio, aliados e a oposição.

Moscou ainda não divulgou o nível da representação que enviará à reunião de Haia. Os russos estarão ansiosos por dar a impressão de que a reunião é rotina nas relações com Washington, apesar do bruaá sobre o alertador Edward Snowden, ex-CIA, e o subsequente cancelamento, por Obama, de reunião "bilateral" com Vladimir Putin prevista para o mês que vem.

A presença de Ford na reunião de Haia pode parecer desconcertante, se se pensa em sua controversa folha-corrida como diplomata no Iraque e na Síria, por onde deixou montanhas de cocô de cachorro espalhadas pela calçada. Mas Moscou não deixará de considerar – ideia sempre aproveitável –, que esse tipo de gente pode ser bem aproveitada no serviço de limpeza de vias públicas, dado que sabem, melhor que qualquer outro agente, de onde provém toda a imundície.

E há movimento muito evidente, que está crescendo, a favor de conversações de paz para a Síria. Por um lado, os cães da guerra na Síria começam a ver-se cada vez mais apertados entre sete varas. O general Abdel Fattel al-Sisi, homem-forte do Egito, odeia cachorros; já ordenou que toda a matilha dos cães de guerra sírios desapareça totalmente da cidade do Cairo.

Está pronto para seguir as pegadas do Sr. Jego e fazer instalar câmeras de vigilância pelas margens do Nilo. A melhor parte da história é que, sendo ele homem pobre, a nova empreitada de expulsar cachorros se autofinanciará... agora que recebeu generosa contribuição financeira que lhe veio dos mesmos xeiques riquíssimos aos quais pertenciam, até há pouco tempo, os mesmos cães de guerra sírios.

Aqueles xeiques estão cada dia mais preocupados: se o vento carregar o fedor das calçadas sírias para o Egito, diretamente para os salões dos palácios deles, e empestear as suas belas paisagens desérticas, nem todos os perfumes de toda a Arábia bastarão para encobrir a fedentina.

Um Sisi já fortalecido pretende agora extrair do retiro o ex-ditador Hosni Mubarak, homem no qual os xeiques confiam implicitamente e cujas legendárias competências na gestão de cocô de cachorro são legião.

Seja como for, a matilha síria rapidamente identificou em Sisi sinais de incômodo; e os cães de guerra sírios fugiram do Cairo para Istanbul, aproveitando-se, a seu favor, de um momento em que as autoridades turcas e egípcias, pelo menos por hora, não se conversam.

Mas Istambul tampouco será por muito tempo paraíso seguro para eles, porque, antiga cidade bizantina, ali também há cães selvagens. A matilha síria é uma variedade relativamente delicada, sobretudo na comparação com os cães do Curdistão e da Mesopotâmia mais profunda,que são mastins sedentos de sangue e alguns deles, ao que se diz, canófagos (cães que comem cães).

Há também indicações embora ainda vagas de que é questão de tempo, e o patrão turco seguirá ele também os passos de Sisi e decidirá livrar-se de todos os cães que fluem para a Anatólia vindos de regiões circundantes e poluem seu belo conjunto arquitetônico.

Queda trágica, mas potencialmente catártica 

Expliquemos. O primeiro-ministro turco Recep Erdogan telefonou a Putin há duas semanas e propôs encontro entre os dois, à margem da reunião do Grupo dos 20 no início de setembro em São Petersburgo: conversa de homem para homem, sobre a Síria. Erdogan, político hábil, já entendeu que perdeu a disputa pela Síria; e que Putin tem em mãos todos os trunfos, inclusive a assustadora "carta curda".

Dentre crescentes indícios de que há uma entidade curda tomando forma no norte da Síria, ao longo da fronteira turca, nas linhas do Curdistão Iraquiano, Moscou sugeriu, sem piscar nem baixar os olhos, que os curdos sírios poderiam também enviar representação independente às conversações Genebra-2.

Erdogan imediatamente captou a mensagem. O xeique Hamad bin Khalifa al-Thani do Qatar e Mohamed Morsi do Egito sempre foram íntimos associados de Erdogan no projeto sírio. Mas já foram aliviados da carga do poder – um abdicou, o outro foi deposto.

Por outro lado, o golpe egípcio encontra Erdogan em posição de cavaleiro sem escudeiro no tabuleiro do xadrez regional, enquanto Arábia Saudita e aliados do Conselho de Cooperação do Golfo, o Iraque, a Síria, Israel e até o Irã já resolveram negociar com a junta militar no Cairo.

Para Erdogan, a parte mais dura de engolir é que Obama o está ignorando. Do alto pedestal em que foi aclamado líder modelar para o novo Oriente Médio, Erdogan tombou, "queda shakespeariana" – trágica, mas ao mesmo tempo potencialmente catártica.

Erdogan sabe que o Egito ocupará todo o tempo de Obama, até o fim de seu mandato na Casa Branca, o que implica que os EUA estão sendo virtualmente obrigados a desengajar-se do projeto sírio. E, seja lá como for, não se atravessa momento muito adequado para pressionar a favor de "mudança de regime" no Oriente Médio.

Em resumo, Erdogan compreende perfeitamente bem que Moscou avalia que, na Síria, a maré virou.

A insistente campanha de propaganda, de Moscou, falando do espectro da al-Qaeda que estaria erguendo as garras na Síria, entrou fundo no consciente ocidental, e ao mesmo tempo, Bashar al-Assad pressiona em casa, a cavaleiro da vantagem que obteve no campo de batalha; e vai-se aproximando cada vez mais de ser reeleito presidente da Síria nas eleições de 2014.

Males portentosos estão para acontecer [1] 

Dito de modo simplificado, a Rússia pós-soviética está de volta, pisando firme, ao tabuleiro de xadrez no Oriente Médio. De fato, coisas estranhas já acontecem por toda a Região.

O representante do Conselho Nacional Sírio em Istanbul, Khaled Khoja, disse com amargura, em entrevista publicada no jornal turco Hurriyet no fim de semana:
O movimento da oposição síria no Egito está sendo expulso [pelo governo de Sisi], e figuras da oposição síria já começam a deixar o Egito. Estamos transferindo a sede da Coalizão Nacional Síria, do Egito para a Turquia.

Politicamente, Bashar al-Assad está convertido em ditador exemplar para todos os ditadores árabes. O que al-Assad e a Shabiha [militantes armados, em trajes civis, que apóiam al-Assad] são para a Síria, [o general Abdel Fatteh] al-Sisi e seus grupos armados são para o Egito.

Cresce entre muitos ditadores árabes a convicção de que é possível parar a Primavera Árabe. Entre esses, os líderes da Arábia Saudita, Jordânia e Emirados Árabes Unidos, que estão no grupo dos Amigos da Síria. Todos esses apoiaram al-Sisi.

Depois de um sítio de nove meses, quando as forças de oposição tomaram o aeroporto próximo a Aleppo, encontraram foguetes da Arábia Saudita destinados ao regime. Os Emirados Árabes Unidos estão no Grupo Amigos da Síria, mas Dubai já é o banco central do regime sírio. Embora os Amigos da Síria devessem apoiar a oposição, hoje já tendem mais a proteger o regime de Al-Assad.
Não surpreendentemente, Moscou vai aquecendo os contatos com o "estado profundo" da era Mubarak no Egito, e a manifesta simpatia que já mostra em relação à junta militar no Cairo, combinada ao ódio visceral que historicamente lhe inspira a Fraternidade Muçulmana, estão gerando uma estranha aproximação entre Rússia e Arábia Saudita em questões vitais que afetam a futura trajetória da Primavera Árabe.

Analisada em retrospecto, a iniciativa do rei Abdullah, de mandar seu espião-chefe príncipe Bandar falar com Putin mês passado, mostra que os sauditas sentem que têm interesses próximos dos interesses de Moscou sobre a Síria, interesses que estão emergindo no plano regional – uma comunidade de interesse que os sauditas não sentem com nenhuma outra grande potência, nem com os EUA.

Pode ter emergido dos relatos a impressão de que Putin e Bandar mantiveram distância ostensiva e mal se falaram, um desconfiado do outro. Mas a verdade é que conversaram durante quatro longas horas na residência do presidente da Rússia.

A Síria com certeza foi e continua a ser ponto de diferença entre Arábia Saudita e Rússia. Mas ambos, Putin e o rei Abdullah, são pragmatistas por excelência e, como Mao Tse Tung ensinou certa vez, "Diferenças entre amigos sempre reforçam a amizade."

Dito de outro modo, a decisão de Sisi de expulsar do Cairo os membros do Conselho Nacional Sírio jamais seria possível sem um aceno e uma piscadela dos sauditas, e é altamente improvável que Bandar não tenha sensibilizado Putin. Afinal de contas, o líder do Conselho Nacional Sírio, Ahmad Jarba, sempre foi bem conhecido como protegido dos sauditas.

Khoja, representante do Conselho Nacional Sírio, bem poderia ter repetido as palavras do Imperador, em Júlio César de William Shakespeare:

"Minha esposa Calpúrnia é que me prende,
não querendo que eu saia.
Viu em sonho minha estátua, esta noite,
como fonte que despejava sangue vivo por cem bocas,
na qual romanos sorridentes e robustos banhavam as mãos.
Para ela, a visão é uma advertência
de que males portentosos estão para acontecer.
E pediu-me, de joelhos, que eu não saia de casa." [2] 
20/Agosto/2013

NT 
[1] Orig. Portents of evils imminent (Shakespeare, Julio Cesar, ato 2, cena 2)

[2] Shakespeare, Julio Cesar, Ato 3, cena 2: ( www.ebah.com.br/content/ABAAAepF4AA/julio-cesar?part=5 )
Calpurnia, my wife, stays me at home;
She dreamt to-night she saw my statua,
Which, like a fountain with an hundred spouts,
Did run pure blood; and many lusty Romans
Came smiling, and did bathe their hands in it:
And these does she apply for warnings, and portents,
And evils imminent; and on her knee
Hath begg'd that I will stay at home to-day.

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