Seriedade no Congresso, pilhéria na mídia
Por Randolfe Rodrigues
Quarenta e nove anos separam duas madrugadas históricas do Congresso
Nacional. Na primeira, em 2 de abril de 1964, senadores e deputados
capitularam de forma vergonhosa ao golpe militar da véspera, dando o
pretexto legislativo para que o senador Auro de Moura Andrade, de forma
leviana, decretasse a vacância do cargo de presidente da República, na
mentirosa suposição de que João Goulart estivesse fora do Brasil. Na
realidade, Jango estava em Porto Alegre, justamente avaliando as
possibilidades de resistência ao golpe desfechado horas antes, com as
tropas movimentadas em Juiz de Fora (MG) pelo general Olympio Mourão
Filho.
A bancada leal ao governo tentou barrar a manobra parlamentar que daria
fachada legal ao golpe. Um ofício urgente do chefe da Casa Civil de
Jango, Darcy Ribeiro, foi entregue naquele momento ao presidente do
Congresso, senador Auro de Moura Andrade. Ali, tudo estava claro:
“O Sr. Presidente da República incumbiu-me de comunicar a V.Excia que,
em virtude dos acontecimentos nacionais das últimas horas, para
preservar do esbulho criminoso o mandato que o povo lhe concedeu e
investido na [posição de] chefe do Poder Executivo, decidiu viajar para o
Rio Grande do Sul, onde se encontra à frente das tropas militares
legalistas, no pleno exercício do poder constitucional de seu
ministério”.
Jango não estava no exterior, não era fugitivo, não fizera nenhuma
desfeita ao Congresso. Diante do desprezo dedicado por Auro ao ofício da
Casa Civil, o deputado Tancredo Neves foi ao microfone e apelou, aos
gritos: “Telefone para Porto Alegre, nos dê três horas e o presidente
João Goulart estará aqui”. Auro se fez de surdo e, contrariando os fatos
e a Constituição, declarou vaga a Presidência, dando o pretexto formal
que os golpistas necessitavam para legalizar a deposição de Jango. Neste
momento, impotente para evitar a manobra, Tancredo, conhecido por sua
moderação e bom senso, não se conteve e berrou ao microfone: “Canalha!
Canalha!”. Um desabafo que não consta das notas taquigráficas, mas
resume o sentimento de quem não compactuava com aquela patifaria.
Na manhã de 2 de abril, o embuste ficou eternizado na manchete daquele dia de O Globo, que sem qualquer mea culpa desinformava seus leitores: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”. No mesmo dia o Jornal do Brasil desmentia o concorrente, contando a verdade que O Globo
falseava: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”. Com
essa farsa coordenada, os golpistas ganharam naquele momento decisivo a
chancela do Parlamento para violar a Constituição.
Primeiro ato
Com a subalterna cumplicidade da eventual maioria golpista do Congresso
naquela tensa madrugada, Jango foi apresentado ao país como um reles
fugitivo. A realidade da história, escamoteada por aquela decisão
ilegal, é que Jango foi, de fato, deposto de uma maneira imoral,
inconstitucional, indecente e covarde, como disse o senador Simon. Esta é
a verdade.
Agora, 49 anos depois daquela triste sessão, o Congresso volta a se
reunir, em outra madrugada, em 21 de novembro de 2013, para corrigir seu
erro histórico e corrigir um deslize que transformava o Parlamento em
parceiro ilegítimo de um golpe militar que acabaria fechando o
Parlamento por três vezes, ao longo de uma ditadura de duas décadas. Uma
resolução proposta pelo senador Pedro Simon (PDMB-RS) e por mim
[senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP)] anulou aquela sessão do passado
que declarou vaga a Presidência legalmente ocupada por João Goulart.
Estamos agora fazendo a nossa parte e restabelecendo a verdade na
história do país. Num texto enxuto, de um único artigo de três linhas e
38 palavras, o Congresso reescreve aquela página mentirosa, afirmando:
“Declarar nula a declaração de vacância da Presidência da República
exarada pelo Presidente do Congresso Nacional, senador Auro de Moura
Andrade, na segunda sessão conjunta, da quinta legislatura do Congresso
Nacional, realizada em 2 de abril de 1964”.
Assim, de forma expedita, o Parlamento corrige o seu mau passo de
então, decretando que Jango não é mais um fugitivo, mas um presidente
deposto. Tecnicamente, o general Humberto Castelo Branco deixa, assim,
de ser um presidente legalmente empossado 13 dias após a farsa da
madrugada para se converter no primeiro dos cinco generais-presidentes
do ciclo autoritário que prescindia de voto, de povo e, portanto, de
Parlamento.
Não é uma declaração meramente formal, uma simples filigrana
burocrática. É uma resolução altiva do Congresso que devolve Jango ao
patamar de dignidade que a história lhe garante, e que os brasileiros
não podem sonegar. Como bem lembrou o deputado Vieira da Cunha (PDT-RS),
Jango ganhou por três vezes o apoio do povo brasileiro na sua missão
presidencial. Duas vezes, sucessivamente, eleito vice-presidente da
República em 1955, com Juscelino Kubitschek, e em 1960, com Jânio
Quadros. Na primeira eleição, teve ainda mais votos do que o presidente
JK. Em 1963, teve seus poderes reafirmados de forma esmagadora, no
plebiscito que devolveu o país ao sistema presidencialista graças aos 9
milhões de votos contra os 2 milhões que apoiavam a manutenção do
parlamentarismo.
Não é uma declaração que ignora os eventos militares que levaram aos
tristes desdobramentos que hoje fazem parte desse período obscuro de
nossa História. Como destaquei naquela noite memorável:
“Estamos falando de um ato civil, de um ato do Congresso Nacional que
deu legitimidade, que deu ar de legalidade a um ato ilegal, a um golpe
de Estado. E não se constrói um país democrático se a Casa que é guardiã
da democracia não reparar as arbitrariedades e as manchas que foram
produzidas no passado. Não se trata de votar contra nada e contra
ninguém. Trata-se de votar a favor: a favor da História, a favor da
democracia, a favor do Brasil”.
Os dois senadores que patrocinam esta resolução são exemplos singulares
no corpo do Congresso. Um pela qualificação, outro pelo testemunho,
ambos pela idade. Ele, Pedro Simon, é um dos mais antigos parlamentares
da Casa, com 83 anos e quatro mandatos sucessivos no Senado, o que lhe
dá a condição de testemunha ocular da História, inclusive dos eventos
que levaram à deposição de Jango. Eu, Randolfe Rodrigues, sou o mais
jovem senador da República, nascido oito anos após o golpe de 1964, com
uma qualificação profissional raríssima no Parlamento: sou historiador, o
único do Senado, com a companhia de apenas dois dos 513 deputados da
Câmara.
A testemunha e o historiador juntaram esforços, assim, para desmascarar
um ato leviano do Congresso que depôs um presidente, colocando no seu
lugar o presidente da Câmara. Uma semana depois ele nomearia três novos
ministros militares que ajudaram a fazer um ato institucional, ainda sem
número, que transformou o Congresso às pressas em colégio eleitoral
para sagrar o general Castelo Branco como o primeiro presidente da
ditadura que se instalava. Tudo isso fica claro, agora, com o gesto
altivo do Congresso, que votou para restabelecer a verdade na história
do Brasil.
Direito e dever
A decisão do Congresso pode ter surpreendido muitos que, por boas
razões, descreem do Parlamento. Mas, nada me espantou mais do que a
incompreensão de parte da imprensa, que tratou a digna resolução do
Congresso em tom de pilhéria, galhofa ou piada sem graça. A revista Veja,
o mais importante semanário do país (tiragem de um milhão de
exemplares) e a segunda maior revista de informações do mundo (atrás
apenas da americana Time), abriu espaço para a exumação dos
restos de Jango em São Borja, numa abordagem jornalística de tom jocoso
que não combina com a seriedade histórica do evento. Numa reportagem de
três páginas, sob um título pouco feliz (“Sepulturas sem sossego”), Veja
mistura aleatoriamente Lênin, Hugo Chávez e Evita Perón para reclamar
que Jango foi transformado “na bola da vez pelos praticantes da política
dos mortos”, vítima dos que, segundo a revista, “vivem à procura de
pretextos para algum acerto de contas com o passado que permita
reescrever a história com a mão esquerda” (ver aqui, Veja nº 2348, páginas 72-74).
Infelizmente, Veja esquece que ninguém precisa de pretextos para
fazer o acerto de contas com o passado quando ele é escorado em
mentiras, já que a História exige ser escrita não com a mão esquerda ou
direita, mas com a mão certa e certeira da verdade. O blogueiro mais
importante e mais polêmico da revista, Reinaldo Azevedo, que chega a ter
300 mil acessos num único dia no seu portal no sítio da Veja.com, foi
ainda mais debochado (ver aqui).
Carimbou a resolução do Congresso de “ridícula” e “patética”, coroando o
texto com este título: “Chamem o Super-Homem para inverter o movimento
da Terra e salvar o mandato de João Goulart!”
E desfiou um raciocínio que não resiste ao bom senso de ninguém: “Só
falta declarar sem efeito todos os atos tomados pelos sucessivos
presidentes do regime militar”. Se isso fosse possível, nossa segunda
resolução seria anular os atos de força que impuseram a censura a Veja,
violentada três meses após sua fundação, em setembro de 1968, pelos
superpoderes do AI-5, o filho mais dileto do golpe que derrubou Jango.
Nem foi preciso chamar o Super-Homem para acabar com a farsa do
Congresso. Bastou uma resolução.
Um dos sites mais importantes do país, o Diário do Poder, do jornalista
Cláudio Humberto, chegou a noticiar duas vezes o gesto reparador do
Congresso, em tons distintos. No espaço de menos de onze horas, evoluiu
do deboche para a sobriedade. Às 8h31 da edição de 21 de novembro, num
texto assinado por Myrcia Hessen – uma jovem e promissora repórter de 24
anos, nascida no ano em que o país voltou a eleger presidente pelo voto
direto depois do golpe que derrubou Jango –, o site escancarou:
“Demagogia – O Congresso anula o golpe, agora só falta ressuscitar
Jango” (ver aqui).
A legenda da foto dizia o óbvio (“Decisão não altera a história”) e
começava o texto com uma paulada exemplar: “O Congresso Nacional
aprovou, durante a madrugada, um projeto de resolução que é um primor de
demagogia, oportunismo e inutilidade”.
Menos de onze horas depois, no mesmo dia, o site publicou outro texto,
às 19h09, desta vez assinado pela repórter Lane Barreto, certamente mais
experiente: “Congresso Nacional – Pedro Simon lembrou dia em que João
Goulart foi afastado” (ver aqui).
Uma foto expressiva do senador Simon dominava uma legenda precisa e
informativa. O texto, ao contrário do anterior, tinha um tom sóbrio, sem
adjetivos, relatando com objetividade a sessão histórica do Congresso.
No mesmo portal da Veja.com, havia um exemplo dessa vez eloquente de
precisão jornalística. O blog do jornalista Ricardo Setti, sem qualquer
concessão à inutilidade ou arroubos demagógicos, tratou de cumprir uma
missão essencial do bom jornalismo: informar melhor o seu leitor com
dados novos que facilitam a compreensão da história. Setti resgatou o
áudio da sessão vergonhosa do Congresso de 1964, documento sonoro
essencial para quem precisa avaliar a história com a isenção dos fatos
indesmentíveis. Título do post: “Áudio histórico imperdível: a
tumultuada sessão do Congresso que declarou vaga a Presidência depois do
golpe de 1964”.
É um pedaço de áudio de 3’18”, mas está lá a voz grave do senador Auro
de Moura Andrade, anunciando a presença de 152 deputados e 26 senadores.
Ninguém imaginava que era apenas o início de uma farsa que acabaria em
tragédia (ver aqui).
Setti avisa aos seus leitores: “É a história contemporânea do país
pulsando, num áudio emocionante, de arrepiar, que vocês poderão ouvir a
seguir”.
Até a Zero Hora, de Porto Alegre, com tiragem de 184 mil exemplares, derrapou na avaliação dos atos de exumação de Jango (ver aqui),
publicando um editorial veemente já no título infeliz: “Revisionismo
pirotécnico”. O maior e mais importante jornal do Rio Grande do Sul,
terra natal de Jango, capitulava à farsa de 1964 (“O Congresso da época
chancelou tudo: não dá para apagar esta parte triste”) e sonegava aos
políticos o direito e o dever de corrigir seus próprios erros: “Os
historiadores e biógrafos têm melhores condições do que os políticos de
definir um perfil menos idealizado dessa e de outras figuras públicas do
país”. O senador Simon respondeu ao editorial com um artigo, uma semana
depois, que se justificava no título: “Jango e a exumação da verdade” (ver aqui).
Compromisso eterno
A melhor percepção do processo de resgate histórico de Jango, na
imprensa, coube a um jornalista que não tenho o prazer de conhecer e que
tinha apenas dois anos quando aconteceu o golpe de 1964. Juremir
Machado da Silva, gaúcho de Santana do Livramento, na fronteira com o
Uruguai, é mais do que um colunista importante do segundo maior jornal
do Rio Grande do Sul, o Correio do Povo (tiragem de 149 mil
exemplares), âncora de sucesso na rádio Guaíba e blogueiro de texto
forte e elegante na internet. Juremir, formado em História e Jornalismo e
doutorado em Sociologia pela Sorbonne, é também um pesquisador dedicado
aos temas recentes da história brasileira, especialmente os produzidos a
partir do golpe militar de meio século atrás. Publicou já 27 livros. O
mais recente, Jango, a vida e a morte no exílio (Editora
L&PM), representa um mergulho em dez mil páginas de documentos e
três anos de pesquisa para tentar elucidar os mistérios que os peritos,
agora, procuram decifrar na exumação de Jango. Lançado há apenas cinco
meses, o livro já está na sua quarta edição.
Numa coluna que destoa com veemência de seus colegas já no título
(“Bravos, senadores”), Juremir resume com argúcia, na edição de sábado
(23/11), do jornal:
“A anulação da sessão do Congresso Nacional que guilhotinou Jango é
mais do que simbólica: coloca de vez, como se fosse preciso, a ditadura
na ilegalidade. A aparência de legalidade produzida por um senador
capacho escorre, definitivamente, pelo ralo da história” (ver aqui).
Eu sempre me surpreendo quando os jornalistas, sempre tão argutos,
mostram dificuldade para fazer a leitura precisa dos fatos históricos. A
altiva decisão do Congresso, agora, anulando a fraude que nivelava
parlamentares e golpistas, deve ser entendida pelo que ela é, sem apelar
para gracejos ou impossibilidades que não estão no espectro do projeto
proposto por Simon e por mim e sancionado pelo Congresso, que se prepara
para promulgar a decisão reparadora em sessão solene.
A anulação daquela farsa não tem efeitos práticos sobre os males
praticados pela ditadura, ao longo de intermináveis 21 anos. O que a
resolução traz é o forte simbolismo de um resgate histórico. Ao
contrário do que alguns pensam, a humanidade se move pelos símbolos que
nos unem ou dividem. Por alguma razão, todos os anos, como lembra o
jornalista Ricardo Setti, milhões de britânicos fazem um minuto de
silêncio às 11 horas de todo dia 11 de novembro, homenagem sentida aos
886 mil soldados do Reino Unido que tombaram na I Guerra Mundial
(1914-1918). Da mesma forma, às 8h15 de cada 6 de agosto, milhões de
japoneses se calam durante 60 segundos na hora exata em que a primeira
bomba atômica da história pulverizou mais de 100 mil pessoas em
Hiroshima, na penúltima tragédia da II Guerra Mundial (1939-1945). Uma
segunda bomba caiu 72 horas depois em Nagasaki e o Japão capitulou um
mês depois.
Por emoções igualmente fortes, como lembrou o senador Simon em seu artigo em Zero Hora,
os oito milhões de habitantes de Israel cessam tudo e saem de carros e
ônibus nas ruas, às 11h de cada 27 de janeiro. É a data da liberação, em
1945, de Auschwitz, o maior campo de concentração nazista, onde
sucumbiram cerca de 1,3 milhão de pessoas, 90% delas judeus. O silêncio
de dois minutos, no Dia Internacional em Memória das Vítimas do
Holocausto, é uma sentida homenagem aos seis milhões de judeus mortos
pela máquina de morte do III Reich.
Não existe nestes gestos, nestas manifestações, nenhuma intenção
demagógica, nenhuma atitude pirotécnica, nenhuma inutilidade prática,
como poderia imaginar algum jornalista apressado como o senador Auro de
Moura Andrade. Nenhum britânico, japonês ou judeu será ressuscitado,
nenhuma dor será apagada. Mas, ficará fortalecido na memória de todos os
povos, atingidos ou não pela barbárie, o sentimento do que é certo e do
que é errado.
Erra quem imagina que os símbolos são perda de tempo, ou mero
oportunismo político. Acerta quem acredita que, pelos símbolos corretos,
se orienta e se eleva a consciência do mundo.
Exumar a verdade não é política dos mortos. É um compromisso perene dos
que defendem, em todas as épocas, a vida e a liberdade.
***Randolfe Rodrigues é senador da República (PSOL-AP).
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