A trama para executar Genoino
Hanna Arendt gostava de lembrar que os nazistas repetiam que em nossos tempos “o mal exerce uma atração mórbida.”
Cronistas das torturas e execuções públicas do século XVIII sublinhavam o
comportamento feliz da população habituada com aqueles espetáculos de
sangue, dor e violência. Da mesma forma que os fanáticos de hoje, o
pessoal mais agressivo perseguia e agredia aqueles que manifestavam
qualquer tipo de solidariedade com as vítimas do carrasco.
É este tipo de espetáculo que a mesa da Câmara de Deputados quer promover para cassar o mandato de José Genoino.
Acovardados pelo caráter resoluto dos protestos de junho, nossos
parlamentares estão convencidos de que têm o direito de tomar qualquer
medida, mesmo que destituída de todo valor moral e político, que ajude a
engordar seu Ibope. Esse sentimento cuja base é o medo, e apenas ele,
de serem enxotados pelas urnas em 2014, ganhou corpo ainda maior depois
que Natan Donadon conseguiu conservar seu mandato, embora tenha sido
condenado a 13 anos de prisão. Deveriam ser criticados pelo oportunismo
sem limites, pela falta completa de escrúpulos – mas contam com elogios
moderados caso possam dizer que ouviram o “clamor das ruas”, o “ronco da
multidão” e qualquer outro barulho dessa natureza.
Querendo recuperar um pouquinho de seu prestígio, eles ensaiam uma
manobra de julgam muito astuciosa: entregar a cabeça de Genoino com
forma de compensação.
Veja que grande negócio: trocar a impunidade de um parlamentar cuja
existência eu e você só tomamos conhecimentos no dia em que preservou o
mandato por um cidadão com 30 anos de luta no Congresso e 50 de luta
política, um devoto de suas ideias e convicções, que lhe renderam um
sobrado no Butantã, em São Paulo, comprado num empréstimo da Caixa
Econômica, longas noites de tortura nos tempos do regime militar e uma
malária adquirida no período em que, de armas na mão, enfrentava uma
ditadura de botas, tanques e fuzis.
Pois é isso, meus amigos. Essa barganha indecente é que está por trás da farsa dos atestados médicos da semana passada.
Não vou julgar nem pré-julgar nem pós-julgar a culpa de Donadon.
Mas conheço as denúncias contra Genoino na ação 470 e reparei que elas
foram caindo, dia após dia. A principal, aquela de que assinou
empréstimos fraudulentos para o PT, foi inteiramente desmentida por um
inquérito da Polícia Federal.
Os doutores da Câmara fizeram seu trabalho, sim. Examinaram Genoino e
concluíram que é um caso gravíssimo. Deram-lhe 90 dias de licença,
acompanhados de um pedido de novo exame dentro de três meses. Numa
entrevista coletiva, os médicos deixaram claro que a situação de Genoino
está longe de resolvida e que qualquer “ atividade laboral” pode ter
sequelas capazes de produzir novos problemas de saúde – e uma nova
cirurgia.
Também escreveram um laudo detalhado sobre sua condição. Numa atitude
que merece elogios, eles se recusaram a colocar a medicina a serviço de
interesses políticos, atitude que tantas tragédias produziu no passado,
de Tancredo Neves a Rubens Paiva, para ficar em dois exemplos extremos e
vergonhosos.
Mas a operação para conduzir o deputado ao cadafalso foi mais forte. Se
em outros tempos os jornais divulgavam notícias falsas sobre fuga de
presos políticos, que logo seriam executados pelo aparato de repressão,
no cadafalso de nosso tempo é possível divulgar laudos que ninguém
estranhou, nem conferiu, nem foi atrás para saber direito. Mas a
mentira, a falsidade, já estava lá.
Assegurou-se que estava tudo bem com Genoino, que não havia motivo para
que fosse atendido o pedido de aposentadoria por invalidez – que
entregou ao Congresso em setembro.
Quando a verdade veio à luz, com a divulgação do laudo completo, a
manobra já fora realizada, a operação para cortar o pescoço de Genoino
já estava em curso e, é claro, os cãezinhos de Pavlov já davam sinais de
saliva na boca.
A luta de Genoino não terminou e, pelo que se conhece dele, não irá terminar nunca. Mas ficou mais difícil.
O laudo incompleto procura colocar uma questão de caráter no pedido de
Genoino. É uma forma de diminuir sua dignidade, de transformar seu
combate para escrever um capitulo doloroso de sua existência num lance
de astúcia, esperteza, malandragem. Justo eles, os astutos, espertos,
malandros.
Preste atenção: Genoino não está lutando para manter o mandato. Não quer
convencer os colegas de Congresso se é culpado ou inocente. Este é seu
combate na Justiça. No Congresso, ele quer exercer outro direito, o de
se aposentar com dignidade. E até isso é um problema.
Para cometer uma brutalidade desse tamanho, é preciso desumanizar
Genoino. Ao negar a condição humana, ao rejeitar um benefício que a lei
faculta a uma pessoa em sua condição, fica mais aceitável a aceitação
de uma injustiça e mesmo de um crime. É por isso, e só por isso, que
querem cortar sua cabeça aos olhos da multidão.
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