Do Outras Palavras
Friboi, BRF e a “ética” do livre-mercado
No século XIX, velho barbudo já dizia: quem não se opõe à acumulação desenfreada do capitalismo não tem qualquer autoridade para criticar o escândalo das carnes
Por Gustavo Henrique Freire Barbosa
No capítulo de O Capital sobre a jornada de
trabalho, Marx trata da adulteração do pão revelada pelo relatório do
comitê da Câmara dos Comuns elaborado nos anos de 1855 e 1856 em
Londres. Muito embora tenha reconhecido a irregularidade na produção de
pães, o comitê, tratando com a “mais terna delicadeza o free trader que compra e vende mercadorias adulteradas to turn an honest penny (para
ganhar um centavo honesto)”, concluiu que o livre-comércio abrangeria
também o direito de comercializar produtos falsificados, levando o
pensador alemão a tecer críticas mais do que pertinentes à incrível
condescendência das instituições inglesas: “o inglês, tão apegado à
Bíblia, sabia que o homem, quando não se torna capitalista, proprietário
rural ou sinecurista pela Graça Divina, é vocacionado a comer seu pão
com o suor de seu rosto, mas ele não sabia que esse homem, em seu pão
diário, tinha de comer certa quantidade de suor humano, misturada com
supurações de abscessos, teias de aranha, baratas mortas e fermento
podre alemão, além de alune, arenito e outros agradáveis ingredientes
minerais”1.
Ainda no mesmo capítulo, Marx simula um ultimato de
um trabalhador que exige um pagamento justo pela sua força de trabalho
além de uma jornada de trabalho correspondente com a dignidade humana,
queixa que faz ao burguês “sem nenhum apelo a teu coração, pois em
assuntos de dinheiro cessa a benevolência”. Denunciando a separação da
narrativa do capital com as idiossincrasias de quem o maneja, prossegue:
“podes muito bem ser um cidadão exemplar, até mesmo membro da Sociedade
para a Abolição dos Maus-Tratos dos Animais, e viver em odor de
santidade, mas o que representas diante de mim é algo em cujo peito não
bate um coração”2.
A lição possível de extrair destes trechos é de que o
capital, em suas mais diversas expressões, é uma força impessoal,
vulcânica e alheia à moral particular de quem detém os meios de produção
— pessoas que, em sua condição de capitalistas, correspondem apenas ao
capital personificado. Sua alma, assim, é a alma do capital, que tem um
único impulso vital: o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor
e, como um vampiro, viver apenas da sucção do trabalho vivo, vivendo
conforme mais trabalho vivo é capaz de sugar3.
Para sobreviver em um ambiente de concorrência, o
capitalista é obrigado a se despir de seus valores morais particulares e
abraçar a ética do livre-mercado, atuando impulsivamente no sentido de
adotar o maior número possível de subterfúgios para diminuir os custos
da produção e aumentar seu excedente de lucro sob o risco de ser
engolido por seus concorrentes. O fato de tais subterfúgios serem
lícitos ou ilícitos é apenas um detalhe.
Assim, não são novidades as notícias recentes
envolvendo as duas gigantes nacionais no ramo do comércio de carnes, JBS
e BRF, acusadas de adulterar seus produtos e colocá-los no mercado em
condições completamente impróprias para o consumo, incluindo a
disposição de carne apodrecida com injeções de ácido ascórbico e
recheada de papelão.
O escândalo serviu para desmistificar de vez dois
pontos defendidos de forma entusiástica pela apologética do
livre-mercado: o primeiro, relacionado à livre-iniciativa, consolida-se
enquanto quimera diante do fato de que as condutas são atribuídas a duas
marcas que formam um oligopólio responsável pela brutal maioria dos
produtos dispostos nas prateleiras dos supermercados (a BRF, por
exemplo, detém a Sadia e a Perdigão, enquanto a JBS é dona da Friboi,
Seara e a da Big Frango, além de uma série de incontáveis mercadorias de
diferentes estampas produzidas por estes conglomerados); o segundo
ponto, por sua vez, diz respeito à própria liberdade de consumo e da
consciência do risco que se corre ao consumir determinados produtos. Por
força do Código de Defesa do Consumidor, em boa parte dos casos temos
acesso a informações suficientes de que a ingestão de determinados
alimentos pode nos causar problemas de saúde, a exemplo dos
refrigerantes, transgênicos e demais mercadorias em cujo rótulo constam
seus ingredientes, químicos e estabilizantes. No caso em análise, os
conglomerados em questão não só sonegaram o risco à saúde que suas
mercadorias adulteradas podem causar aos consumidores como elevaram
ilícita e exponencialmente este risco, em uma clara relação de causa e
efeito em prol unicamente do pináculo do modo de produção capitalista
que é a acumulação predatória a qualquer custo.
Assim, para que vendam mais e engordem suas margens
de lucro, acabam por demolir de vez os pilares do liberalismo
neoclássico que são a livre concorrência e a liberdade de escolha, em
mais um exemplo da clássica contradição entre as forças produtivas –
também apontada por Marx – por meio da qual se evidencia que o modo de
produção capitalista é incapaz de concretizar os próprios princípios nos
quais se funda.
Abundam contradições nesse sentido. O fato de
produzirmos alimentos suficientes para alimentar a população do planeta
ao passo que quase um bilhão de pessoas ainda padecem de fome4 é
uma das mais categóricas provas de que, estando a produção alimentícia
encarcerada pela dinâmica da acumulação e da propriedade privada,
gêneros alimentícios jamais serão produzidos com a principal finalidade
de saciar a fome das pessoas, mas sim para contemplar os interesses da
meia dúzia de entidades que dominam o mercado mundial de produção de
alimentos. O fato de não serem encontrados recursos para resolver
problemas como o da fome enquanto trilhões de dólares em recursos
públicos foram disponibilizados da noite para o dia para salvar
especuladores e agentes do sistema financeiro internacional responsáveis
pela crise de 2008 dá a dimensão de que o problema jamais foi a
insuficiência de recursos, mas sim as formas de sua canalização e a
ausência de maneiras de organização social que permita aos cidadãos e
cidadãs a apropriação democrática dos recursos e resultados econômicos.
Nessa perspectiva, quem não está disposto a se
posicionar de forma contrária à ética predatória de acumulação
desenfreada do capitalismo e sua tendência natural à formação de
monopólios e oligopólios não possui qualquer autoridade para criticar o
escândalo das carnes. Da mesma maneira, também não possui quaisquer
condições de sair em defesa da liberdade promovida pela apologia vulgar
do livre-mercado — mesmo a liberdade de consumir nos próprios termos e
premissas dos códigos mercantis que costumam condicionar e confundir o
exercício da liberdade ao ato de comprar, gerando um exército de
consumidores falhos que, segundo Bauman, pagam o preço amargo da
confusão entre cidadania e consumo promovida pelo capitalismo
pós-moderno.
Enquanto permanecer existindo a contradição das
forças produtivas referente à produção e à distribuição de alimentos,
gigantes do agronegócio como a BRF e a JBS – conhecidas violadoras de
direitos ambientais, trabalhistas e responsáveis por conflitos no campo
envolvendo comunidades indígenas e ribeirinhas – continuarão existindo
e, sobretudo, produzindo veneno em forma de comida, coroando um sistema
plenamente disfuncional e hostil a qualquer prospecção emancipatória da
humanidade.
–
1 O Capital, Livro I. Boitempo Editorial, 2014, páginas 322 e 323.
2 Idem, página 308.
3 Idem, página 307.
Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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