O dia em que perdemos tudo
Questionado por aluna, professor relembra e narra como foi o dia em que os trabalhadores perderam os direitos que tinham conquistado com tanta luta
Uma jovem estudante me perguntou, “Como foi, professor Douglas, que os trabalhadores perderam os direitos que tinham conquistado com tanta luta?”.
Fiquei em silêncio por um instante. Depois disse à
ela que os motivos foram muitos. E muito complicados. Que não dava pra
explicar em pouco tempo o contexto que havia nos levado àquele dia… e
então ela quis saber: “Você se lembra daquele dia? Como foi?”
Então me lembrei de 2017.
Era 18h55 de uma quarta-feira, 22 de Março, dia útil, horário de pico. Em Brasília,
capital federal do país, 513 deputados votavam (e aprovavam horas
depois) um projeto de lei ressuscitado de 1998, que autorizou a
terceirização irrestrita no regime do trabalho formal no Brasil.
Eu estava num ônibus lotado de trabalhadores,
voltando pra casa depois de um duro dia de trabalho. Os trens estavam
lotados, o metrô estava lotado e, em desespero, outros cerca de 12
milhões aguardavam o dia seguinte para sair cedo de casa em busca de um
emprego.
As feições cansadas não pareciam estar preocupadas
com o que os canalhas estavam a fazer em Brasília. Os mais jovens, belos
e sorridentes, não pareciam ter ideia da importância de um emprego com
carteira assinada e benefícios. Tampouco aposentadoria. A maioria nessa
fase da vida ainda acredita que ficarão ricos e que não precisarão “dessa miséria” do estado.
Desejei ter sido mais um corpo, dentre milhares de
corpos, em fúria, ocupando as ruas e invadindo o congresso em meio
àquela votação. Mas não houve grandes mobilizações naquele dia. E o meu
era só um corpo cansado, dentre outros corpos cansados e apertados
dentro daquele busão lotado, desejando chuveiro e cama.
Imaginei, naquele momento, quebrar a vidraça de um
banco ou botar fogo num ônibus. Eu admirava a turma que fazia isso. Mas
minha pegada era a da “nobreza” da política. Violência, eu pensava, era pra quem não tinha argumentos. Como era idiota!
Imaginei amarrar uma bomba no corpo e explodir o
plenário lotado da câmara federal naquele instante. Mas não teria essa
coragem. Não entendia como esse tipo de ação radical acontecia em tantos
países muitas vezes menos pobres que o nosso… e aqui nada.
Ali, naquele ônibus e naquele instante, eu fui um
popular apenas. Fui mais povo do que nunca. Minha consciência política
não me diferenciava dos demais passageiros ali. Éramos todas e todos,
naquele exato momento, a massa alienada tanto da riqueza que
produzíamos, quanto incapazes de incidir na realidade que nos oprimia.
Resolvi aprofundar o tema com a curiosa estudante,
que parecia tão interessada em saber. Falei do Golpe de 2016, do
parlamento mais conservador da história do Brasil, do caráter
entreguista do governo golpista do falecido Temer, dos super poderes dos
meios de comunicação e do judiciário, em especial do STF e de um Juíz
de primeira instância em Coritiba, chamado Sergio Moro. Expliquei à ela
como estes atores, PMDB, PSDB, STF, Globo, FIESP, Sergio Moro e EUA,
faziam sexo explícito sem camisinha em plena praça pública, tudo sob as
bençãos de setores conservadores de católicos e evangélicos. Um escárnio
absoluto! Falei à ela da violência do estado, do genocídio negro e da
repressão à classe média progressista.
Bom… mas tive que dizer também de nossos erros, da
irresponsabilidade e dos equívocos conciliadores da única experiência de
chegada ao poder pelas forças de esquerda e de sua incompreensível
opção em não enfrentar o oligopólio da grande mídia, umas principais
responsáveis pela nossa derrota. Falei das divisões da classe, da
estupidez da esquerda em não reconhecer o potencial revolucionário das
lutas negras, periféricas, feministas e Lgbt’s, do corporativismo e do
peleguismo dos sindicatos, da leniência das igrejas e da mesquinhez, da
covardia e da hipocrisia dos grupos que se auto-flagelavam em disputas
internas nos partidos, sindicatos e movimentos. Minhas costas doíam. E a
consciência também. Encerrei a conversa.
Hoje, disse à ela buscando dar fim ao papo, tantos
anos depois, velho, cansado e obrigado a trabalhar para comer – afinal,
não tenho direito a aposentadoria – sinto vergonha de ler essa passagem
nos livros de história.
Mas não culpo meu povo. Não mesmo.
E lá no fundo, ainda acredito em nós.
Acredito em você minha filha.
Bora recomeçar a luta!
Do Blog Pragmatismo Político.
Do Blog Pragmatismo Político.
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