A ditadura do superávit primário, por Paulo Kliass
qua, 05/04/2017 - 15:39
Foto: Marcos Correa/PR
Da Carta Maior
'Superávit primário': esse é o termo
utilizado pelos defensores do financismo para justificar perante a
sociedade o tratamento aos gastos financeiros
por Paulo Kliass
O Banco Central (BC) acaba de divulgar
seu Relatório Mensal sobre a Política Fiscal do governo brasileiro.
Dentre as inúmeras informações relativas ao desempenho da equipe
econômica no campo da administração da questão fiscal, vale a pena
destacar os números que retratam o comportamento das despesas
financeiras da administração pública federal.
De acordo com o levantamento
apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao
total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões.
Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União
transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos
compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso
cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.
É bem verdade que tais números foram
reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas
financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi,
respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato da economia
brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave
de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única
variável que se manteve constante ao longo das últimas 2 décadas na
condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de
recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do
governo federal.
Um dos aspectos mais paradoxais desse
fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da
economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O Ministro da
Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir
as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos
contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos
investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos
principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano
Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado
financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.
A tentativa de conferir ares de
normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de
políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse
foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos
interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o
tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado
aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor
público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação
legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei
Complementar nº 101/2000.
Ocorre que todo esse rigor e a
consequente austeridade que passam a ser exigidos - até mesmo em termos
de compromisso formal na condução da política fiscal - não se aplicam às
despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida
pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de
um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis
pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade
que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de
recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode
até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.
Essa abordagem ganhou tinturas de
santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de
sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa
nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de
unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a
famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições
presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a
opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica
comandada pelo financismo:
(...) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (...)
(...) “Vamos preservar o superávit
primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna
aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus
compromissos.’ (...) GN
A preservação intocável desse regime é
um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do
financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do
seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil
atravessa há mais de 2 anos. O setor real da economia vem experimentando
o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências,
ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com
lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. A atual
administração pós golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a
obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria
Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.
O discurso oficial que alardeia o
catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda que
congelou as despesas sociais pelo prazo de 20 anos. Essa mesma narrativa
do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda
mais sacrifícios da maioria do povo com a reforma previdenciária e a
reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um
contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do
orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas
são parte da solução para a crise atual.
O único setor que não é chamado a
colaborar para superar o momento difícil que o País atravessa é
justamente o financismo. Afinal, a permanência longeva da ditadura do
superávit primário manteve intocáveis os privilégios desse ramo da
economia. De acordo com informações da própria Secretaria do Tesouro
Nacional, ao longo das últimas 2 décadas, o total de despesas com
pagamento de juros promoveu a drenagem de R$ 4,3 trilhões a valores
atuais dos cofres da União para o coração do sistema financeiro. Se o
ponto de corte for o início de 2003, o total ainda assim é
impressionante: foram R$ 3,5 tri ao longo do período. Mas esse tipo de
recurso não é objeto de contingenciamento. Pelo contrário, todas as
outras áreas são chamadas a cortar na própria carne para que sobrem
recursos para o superávit primário.
* Paulo Kliass é doutor em Economia
pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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