sábado, 25 de setembro de 2021

Custo da dívida pública.

 


Quanto do orçamento público realmente vai para o custo da dívida? (Por Fernando Ferro)

por Luiz Müller

"... os gastos federais com saúde e educação somados chegaram a R$ 191 bilhões enquanto os gastos com juros nominais líquidos foram de R$ 395 bi, ou seja, o Estado pagou aos detentores de títulos públicos (que sem dúvida, fazem parte do topo da pirâmide) mais que o dobro do que investiu em saúde e educação. O Estado brasileiro, além de tributar regressivamente, ou seja, cobra proporcionalmente mais impostos dos pobres, ainda concentra seus gastos em favor dos ricos, agindo deliberadamente como um Robin Hood às avessas. (Extrato do Artigo de Fernando Ferro, que publico na íntegra a seguir:

Fernando Ferro no Blog a Balbúrdia

Fernando Ferro é Economista pela UNESP.

A questão do orçamento público e da dívida que vem assombrando o debate econômico brasileiro tem gerado confusão até entre os analistas mais experientes. Sem a pretensão de encerrar qualquer debate, este artigo se debruça sobre o tema, dedicando algum esforço analítico sobre o funcionamento das contas públicas, tema tão árido quanto fundamental.

Primeira armadilha: usar a arrecadação (receitas) ao invés das despesas para representar o orçamento.

Sob a ótica das receitas públicas, parte da arrecadação pode ser destinada às despesas com serviço da dívida, mas apenas se houver superávit primário, ou seja, uma sobra de recursos arrecadados após o governo pagar as despesas de pessoal, previdenciárias, assistenciais, subsídios, investimentos e o custeio. Então, se não temos superávit primário – que é o que vem ocorrendo desde 2013 – nada da arrecadação vai efetivamente para o pagamento da dívida. Arrecadação aqui está sendo usada como uma proxy da receita total, pois não inclui as receitas originárias. (receita primária é mais ampla do que arrecadação tributária, pois inclui royalties, concessões, dividendos, etc.)

No entanto, importante esclarecer que quando falamos de orçamento, estamos nos referindo aos gastos, não às receitas públicas. Logo, a pergunta que nos motiva pode ser refeita: quanto dos gastos públicos vai para a dívida?

Segunda armadilha: contabilizar os valores usados para refinanciamento da dívida federal (amortização) como custos que impactam o orçamento.

Dados oficiais (SIAFI – STN/CCONT/GEINF), popularizados pela Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), sugerem que nos últimos anos, quase metade do orçamento do governo federal tem sido destinado aos custos com rolagem da dívida (amortizações e juros). Entretanto, uma parte considerável dos especialistas em finanças públicas, ligados aos mais amplos espectros ideológicos, são contundentes em afirmar que a proporção do orçamento destinada a esses fins, apesar de bastante elevada, seria bem menor que isso.

Pois então, segundo esses especialistas, tais dados fornecidos pelo SIAFI seriam falsos ou fraudados?

Não. Mas sua metodologia contábil pode levar a graves erros de interpretação do orçamento.

A origem desse problema está na Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), Art. 52, inciso II, que obriga o Refinanciamento da Dívida a constar como despesa na rubrica Amortização:

  • Os valores referentes ao refinanciamento da dívida mobiliária constarão destacadamente nas receitas de operações de crédito e nas despesas com amortização da dívida.

A despeito da letra fria da lei, no caso específico do governo federal – que é emissor de títulos da dívida via Tesouro Nacional – o refinanciamento da dívida não pode ser considerado como uma despesa de fato, e isso por se tratar da rolagem, ou seja, da troca de papéis (títulos) “velhos” por outros novos, não rivalizando assim com outras despesas públicas. E, uma vez que não rivalizam com outras despesas, não impactam o orçamento. O único impacto no orçamento em forma de despesas relacionadas à dívida são os juros. Ademais, fica muito difícil falar em amortização com a dívida crescendo como está.

Exemplo ilustrativo: Imagine que eu tenha uma renda mensal de $500, mas precise fazer um empréstimo para comprar um computador, então procuro o banco A e tomo $1.000, com vencimento (maturidade) mensal e taxa de juros de 10% ao mês. No fim do mês corrente, gastei $400 em plano de saúde, educação para meus filhos e coisas do tipo, separando $100 dos meus recursos próprios para arcar com os juros sobre minha dívida, mas preciso pagar $1.100 ao banco A porque essa dívida tem duração de apenas um mês. Então, recorro ao banco B, tomando os $1.000 que faltam, nas mesmas condições de taxa de juros e prazo, quitando minha dívida com A. No mês seguinte preciso pagar o banco B, mas novamente só economizei $100. Então faço a mesma coisa, vou ao banco C e tomo $1.000 com taxa de 10% ao mês e vencimento em 30 dias.

Se eu repetir esse processo por 10 meses, qual será o custo de rolagem da dívida que terei tido?

Há duas respostas para essa questão, mas só uma delas é razoável, repare.

I – Utilizando a metodologia do SIAFI, a qual contabiliza o refinanciamento como despesa em amortização, chego à resposta: $1.100 (que é o que paguei para cada banco no fim de cada mês: $1000 em amortização e $100 de juros) x 10 meses = $11.000. Essa seria minha Despesa Financeira no período, ou meu custo com a dívida. Sendo $10.000 de amortização (rolagem) mais $1.000 de juros.

Todavia, se eu ganhei $5.000 nos dez meses acumulados, e gastei $15.000 ($11 mil de gasto financeiro mais $4 mil de outras despesas, que vou chamar de primárias), como posso estar devendo apenas $1.000 no fim do período, e não $10.000? Como posso ter gastar o muito mais do que recebi é mesmo assim ter mantido meu endividamento constante?

Concluindo, meu Orçamento Total é representado por Despesas Financeiras ($11.000) + Despesas Primárias ($4.000) = $15.000. Assim, as despesas com dívida representariam 73,3% do meu orçamento ($11.000/$15.000).

A essa altura, alguns já começaram perceber as distorções. Mas prossigamos.

II – Uma outra resposta possível, desta vez sem contabilizar a rolagem como despesa (portanto, correta), seria que meu custo da dívida no período, foi $100 (juros) x 10 meses = $1.000. Somente os juros seriam contados como gasto com dívida.

Tudo se passa como se tivesse sido tomado um empréstimo de $1.000 no momento inicial, e só os juros fossem pagos no final de cada mês, mantendo o Principal sem amortização (algo próximo ao Sistema Americano de Amortização).  A troca de papeis (quitação de uma dívida com a emissão de outra no mesmo valor) por si só não impacta meu orçamento, pois o gasto com amortização de uma dívida é compensado pela receita da emissão de outra dívida no mesmo montante. O efeito resultante é nulo, ficando apenas como custo efetivo, os juros pagos durante essa rolagem.

Analogamente, nesse caso, meu orçamento total seria: $1.000 (despesa financeira) + $4.000 (despesa primária) = $5.000. E o custo da dívida representaria 20% desse orçamento ($1.000/$5.000).

Obs. Interessante notar que, fazendo a mesma conta da proporção do meu orçamento que vai para custo da rolagem da dívida, mas agora mensalmente, chego a esse mesmo valor: ($100/$500). Bom sinal.

E aqui deixo um exercício para os que ainda não se convenceram: refaça todo meu exemplo, com os mesmos valores de principal e de taxas de juros, mas com o prazo de vencimento de 15 dias ao invés de um mês, forçando o tomador a ir mais vezes aos bancos rolar a dívida. Depois refaça novamente com o prazo de vencimento em 5 meses. Só com essas mudanças nos prazos, seguindo a metodologia do SIAFI, os valores das despesas com a dívida mudam radicalmente, dobrando no primeiro caso e caindo pela metade no segundo. Ou seja, a despesa seria dependente da maturidade dos títulos, o que seria absurdo!

Já com a outra metodologia, os valores de despesa se mantêm, mesmo mudando as maturidades.

Vamos aos dados

Segundo as estatísticas publicadas pelo Banco Central do Brasil nos seus relatórios periódicos, em 2017, o Governo Central – que além da União, inclui o próprio BCB para evitar distorções com as compromissadas e os depósitos remunerados – teve R$ 1.488 bilhões de despesa primária (R$ 1.507 bi de despesa primária menos R$ 19 bi de operações intraorçamentárias que não se tratam de despesas efetivas) e R$ 341 bi de despesas financeiras (R$ 400 bi de juros nominais líquidos pagos pelo setor público consolidado menos R$ 54 bi de juros nominais pagos pelos estados e municípios e menos R$ 5 bi de juros nominais pagos pelas estatais). As despesas totais (orçamento) totalizaram R$ 1.488 bi + R$ 341 bi = R$ 1.829 bilhões. Logo 18,6% foi a parte do orçamento do governo central despendida em despesas financeiras (341/1.829).

Já, se analisarmos o Governo Geral – governo central mais estados e municípios – chegamos aos seguintes valores: Despesas primárias: R$ 2.260 bi, e financeiras: R$ 395 bi (R$ 400 bi menos R$ 5 bi pagos pelas estatais). Despesas totais: R$ 2.260 bi + R$ 395 bi = R$ 2.655 bilhões. Assim, a fração do orçamento do governo geral gasta com dívida foi 14,8%.

Conclusão sobre o impacto das despesas financeiras no orçamento

Como dito antes, há uma lei que impõe que os valores usados para refinanciamento da dívida pública sejam explicitados contabilmente na rubrica amortizações. Portanto, o SIAFI não frauda, tampouco comete algum erro em seus relatórios demonstrativos, mas pode sim induzir a graves equívocos de interpretação dos dados. O mais comum é inferir que, se a dívida pública custa metade do orçamento, na hipótese do cancelamento dessa dívida, ou simplesmente na decisão de um calote, teríamos esse montante do orçamento liberado para outras áreas, ou seja, imediatamente teríamos o dobro de recursos disponíveis para gastos primários (um incrível aumento imediato de 100%!), o que levaria a uma indiscutível revolução nos serviços públicos brasileiros.

Contudo, a fração real do orçamento dedicada ao custo de rolagem da dívida, apesar de muitíssimo elevada para os padrões internacionais, tem sido menos do que a metade desses 40 – 50%.

Em 2017 realmente notou-se uma queda da taxa de juros básica (SELIC) e da inflação, o que derrubou as despesas financeiras com relação aos anos anteriores e diminuiu seu peso relativo no orçamento que foi mais elevado em 2015 e 2016, quando as despesas com juros nominais do setor público foram R$ 502 bi e R$ 407 bi, respectivamente. Mas em nenhum desses anos, a proporção sequer se aproximou de metade.

De qualquer forma, o esforço fiscal exigido da sociedade brasileira para rolar sua dívida pública (que não está entre as maiores do mundo, mas sim entre as mais caras) continua a suscitar perplexidade. Para se ter ideia do tamanho da distorção alocativa, segundo levantamento da CNM (Confederação Nacional dos Municípios), no mesmo ano de 2017, os gastos federais com saúde e educação somados chegaram a R$ 191 bilhões enquanto os gastos com juros nominais líquidos foram de R$ 395 bi, ou seja, o Estado pagou aos detentores de títulos públicos (que sem dúvida, fazem parte do topo da pirâmide) mais que o dobro do que investiu em saúde e educação. O Estado brasileiro, além de tributar regressivamente, ou seja, cobra proporcionalmente mais impostos dos pobres, ainda concentra seus gastos em favor dos ricos, agindo deliberadamente como um Robin Hood às avessas.

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Luiz Müller | setembro 25, 2021 às 4:09 am | Tags: Bilionáriosdívida públicaEducaçãoFernando FerroHermes ZanetiO COMPLÔOrçamentoSaúdeUnião | Categorias: Brasileconomia | URL: https://wp.me/px2vq-oP3

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