Argumento muito comum utilizados por especialistas da mídia tradicional, e até mesmo por porta-vozes do governo, diz que a gestão das contas públicas deveria seguir os mesmos princípios utilizados pelas donas de casa na administração do orçamento doméstico. A ideia central dessa “simplificação” é que o governo não pode gastar mais do que arrecada. Assim como fazem as famílias, em momento de crise, seria hora de “apertar os cintos” e cortar ou “adiar” gastos, sob pena de aumentar o endividamento. Para os economistas Eduardo Moreira e Pedro Rossi, trata-se de uma “falácia”, de cunho “machista”, que serve para confundir a discussão, acobertando os interesses do mercado financeiro.
“É uma metáfora equivocada, que não funciona, simplesmente. Do ponto de vista técnico, teórico-econômico, ela não se sustenta”, afirma Rossi, que também é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em vídeo divulgado na última sexta-feira (17), eles apresentam três argumentos centrais para desfazer tal mistificação que, além de ser tecnicamente equivocada, agrava as condições econômicas de um país em dificuldade.
Primeiro, as famílias, não definem a própria renda, ao contrário dos governos, que podem reduzir ou aumentar a arrecadação, via impostos e tributos, após deliberação do Congresso. A segunda diferença é que parte significativa dos gastos públicos retornam necessariamente ao Estado novamente na forma de arrecadação de tributos.
Por fim, os Estados nacionais, além de poderem estabelecer de antemão o seu nível de endividamento, definem a taxa a ser cobrada sobre essa dívida. Em último caso, ainda podem imprimir dinheiro ou títulos da dívida, saídas que não estão à disposição de uma “dona de casa”, ou de “chefes de família”, sejam homens ou mulheres.
RENDA
“Não consigo chegar para o meu chefe e dizer ‘agora quero ganhar tanto, já que é um momento de crise’”, explica Rossi. Já o Poder Executivo, juntamente com o Legislativo, pode decidir aumentar a arrecadação para fazer frente a determinadas exigências. O governo, por outro lado, pode, por exemplo, “taxar os mais ricos para fazer funcionar os hospitais” ou “pode taxar uma determinada atividade econômica para fazer outra, considerada socialmente mais importante, continuar funcionando”, explica o professor.
Moreira lembra que esse foi o caso da extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que criava receitas a serem aplicadas na Saúde. É o contrário do que ocorre com as famílias, que não tem outra alternativa, a “não ser apertar os cintos”. O governo, no entanto, em vez de promover o arrocho, pode e deve buscar outras formas de arrecadação.
RETORNO EM IMPOSTOS
O segundo argumento é que o gasto realizado por uma pessoa não causa retorno financeiro, mas apenas na satisfação do serviço ou produto adquirido. Não é o caso dos gastos realizados pelo Estado. “Se o governo gastou, e isso gerou renda, gerou crescimento, significa que ele está aumentando as receitas num segundo momento, ao contrário da família. Quando ela gasta, esse dinheiro foi embora, não volta mais para ela”, afirma Rossi. Moreira diz que as pessoas acreditam que o gasto do governo “some pelo ralo”, o que não é verdade. “Todo o dinheiro que existe no orçamento público chega na mão de alguém”. E da mão de alguém, vira consumo.
“Esse é mais um mito, de que o dinheiro some, de que o dinheiro vai embora. Todo o gasto do governo é a receita do setor privado. É uma definição contábil, não é nem teórico, de esquerda ou direita, ortodoxia ou heteroxia. Uma compra é igual a uma venda. O gasto de alguém é a renda de outra pessoa. Então quando o governo gasta, o setor privado está recebendo esse gasto. Se o governo resolve cortar gasto, o setor privado vai receber menos receita”, detalha o professor.
DINHEIRO E DÍVIDA
A terceira diferença fundamental, segundo os economistas, é que os Estados emitem moeda soberana e títulos da dívida pública. Também definem a remuneração a ser paga por esses títulos da dívida – no caso brasileiro, é a taxa Selic. “Outro mito diz que acabou o dinheiro. Isso é uma mentira. O governo tem dinheiro. O governo é soberano monetariamente. O governo não quebrou. O governo brasileiro tem uma dívida líquida, e essa dívida subiu, isso é ruim, tem efeitos macroeconômicos. Tudo isso é verdade. Agora, que acabou o dinheiro é mentira”, destaca Rossi.
Ele diz que a situação é grave quando o endividamento se dá em moeda estrangeira, foi o caso do Brasil, na década de 1980, e é também o caso da Argentina, atualmente, obrigada a recorrer a empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Agora, de 2015 para cá, mesmo com a situação de crise grave que estamos vivendo, aonde está o FMI? A gente é credor externo líquido. A nossa dívida está toda em moeda nacional, o que nos dá certo grau de liberdade.”
Moreira diz que, mais importante do que se endividar, ou não, é estabelecer um “plano estratégico” sobre como esse endividamento vai ser aplicado. “Vou me endividar, mas o dinheiro que eu estou pegando é vai ter este destino. Vou investir em portos, educação, etc. Neste meu plano de voo, isso vai gerar tanto de riqueza lá na frente”, exemplifica. É a confiabilidade do plano que faz com que países, como o Japão, alcancem índices de endividamento de até 200% do PIB, se quebrar, sem causar alarde nos mercado.
Segundo Rossi, o que o governo precisa é de “um plano para a recuperação da economia, para a geração de riqueza e de emprego“, para então, num segundo momento, ajustar e calibrar a relação gasto/receita. Ambos alegam que não estão fazendo a defesa indiscriminada do aumento do endividamento público. “Estamos dizendo que, ao longo do ciclo econômico, tem situações em que o governo precisa gastar. A situação de crise é uma delas. É uma crise de demanda no setor privado. O empresário não gasta e não investe porque não vê demanda, não vê lucro. A família não investe, porque não sabe o que vai acontecer com o emprego.”
Dando como exemplo um caso pessoal, Rossi diz que, frente às incertezas, adiou a realização de uma obra pretendida. Ao fazer isso, retardou gastos se ativariam a renda da loja de materiais e do pedreiro contratado. Contratar obras é justamente o que o governo deveria fazer, ao contrário do que ele fez ao decidir sobre a aplicação dos seus recursos domésticos, porque o Estado tem condições de financiamento e de endividamento que são absolutamente diferentes de um cidadão comum, invalidando mais uma vez a comparação entre os gastos de uma família e àqueles realizados pelo governo.
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