domingo, 12 de setembro de 2021

A frente ampla contra as forças de esquerda.

 


Eliara Santana: A frente ampla contra as forças de esquerda
DESNUDANDO A MÍDIA

Eliara Santana: A frente ampla contra as forças de esquerda


11/09/2021 - 16h25

Por Eliara Santana*

Grupos que apoiaram o golpe de 2016 e que ajudaram a eleger Bolsonaro estão se organizando para uma mobilização no dia 12, domingo.

Estão se autodenominando frente ampla pela democracia, ou algo assim, e buscam agora tirar o bode que eles mesmos colocaram na sala.

A frente é pela democracia, segundo dizem, cabe todos e todas que querem se livrar de Jair, o incomível, que está transformando o Brasil numa bagunça geral.

Bem, a frente é ampla, cabe todos e todas, mas em parte. Porque ela não aceita o ex-presidente Lula, ela não chamou os movimentos sociais (como o MST), aqueles que há décadas sabem o que é fazer manifestação e apanhar da polícia (porque é bom lembrar que a polícia nem sempre gostou de manifestação), a frente não chamou todas as centrais sindicais e não chamou todos os partidos de esquerda de verdade.

Várias vozes que articulam essa tal frente falam em alto e bom som: “Nem Bolsonaro, nem Lula”, como se os dois se equivalessem.

Nem vou comentar o que significa a presença do MBL – aquele grupelho de idiotas provocadores que contava com muita grana pra arregimentar patos igualmente idiotas e ferrar com a nossa combalida democracia quando era conveniente.

Pois bem, essa é uma parte da história sobre a qual eu quero conversar com vocês.

Os grupos de elite no Brasil são bastante criativos para construírem formas de disputar e retomar o poder, e isso, claro, nunca é totalmente evidente.

Um desses sistemas que integram esse agrupamento de elite é a mídia, que está com um olho no bode que ajudaram a colocar na sala e com outro olho nas eleições de 2022. E por ora, não têm ainda aquele candidato ungido para chamar de seu.

Por isso, a criatividade é cada vez mais necessária, porque é preciso desconstruir os dois nomes que estão no topo da intenção de votos.

Um é Jair, o incomível, que despenca a cada dia porque não para de fazer bobagem.

O outro é Luis Inácio, cuja intenção de votos sobe muito a cada pesquisa e que ameaça levar já no primeiro turno das eleições (aos curiosos de plantão, sim, já tenho vários modelitos vermelhos para a posse).

Assim, como Jair já está sendo enquadrado, defenestrado e agora duramente criticado pela tal frente ampla que não é ampla, é preciso pensar no outro.

Aquele nordestino teimoso que insiste em disputar eleição e insiste em ameaçar liquidar a fatura sem sequer dar a outros a chance de segundo turno.

Pois bem, vamos então às construções e aos arranjos.

Na edição que circulou a partir de quinta-feira desta semana, 10 de setembro, a revista Veja trouxe uma reportagem que diz o seguinte: “Receita acusa Lula de cometer crimes de sonegação, fraude e conluio. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional cobra do ex-­presidente 1,2 milhão de reais em impostos por propina recebida de empreiteiras”.

A revista disse que obteve os documentos de um processo de execução fiscal que tramita na 2ª Vara da Justiça Federal em São Bernardo do Campo-SP. A reportagem remete a uma investigação que envolve o triplex do Guarujá e o sitio de Atibaia.

Segundo a reportagem no UOL, que também deu grande repercussão ao caso, “a ação da Receita Federal contra Lula foi impetrada em junho do ano passado. Os auditores concluíram que o triplex pertencia ao ex-presidente e que a reforma era parte de um pacote de vantagens financeiras não declaradas sobre as quais incidem tributos”. Mesmo sem provas, os auditores concluíram que o triplex é mesmo de Lula.

Além disso, os casos já foram anulados quando o STF considerou que o ex-juiz Sergio Moro agiu com parcialidade. Repito: o processo criminal contra Lula foi anulado, mas a Receita continuou a investigar afirmando que (segundo o documento obtido pela Veja):

“Infere-­se que o fiscalizado foi beneficiado pelas reformas, não fez o pagamento, razão pela qual os valores concernentes às mesmas devem ser considerados renda, que são tributáveis”.

O jornalismo não pode construir reportagens altamente acusatórias a partir de inferências de quem quer que seja.

O jornalismo decente deve recorrer a provas e deve se basear em certezas, asserções, processos concluídos, fontes fidedignas. Nunca em inferências.

E é esse jornalismo que se arvora como defensor da liberdade de expressão, confundindo todos os conceitos de propósito, e surta quando se fala em regulação da mídia. Mas esse é outro assunto.

Voltemos à reportagem e às frentes não tão amplas.

A reportagem da Veja prossegue no tom acusatório e até ameaçador e enfatiza que “há outras pedras no caminho do pré-candidato do PT à Presidência da República. Para a Receita Federal, por exemplo, Lula é um sonegador de impostos que, em conluio com empreiteiros, tentou ocultar rendimentos milionários com o objetivo de fraudar o Fisco”.

Parece um roteiro pronto para ressuscitar talvez até velhos canos carcomidos num fundo vermelho (mas, curiosamente – ou não – a edição de sexta-feira do JN nem mencionou a reportagem da Veja. O que não significa que não possam fazê-lo em algum momento. O sistema midiático funciona assim).

Observem que Lula, a despeito de os processos terem sido considerados nulos pelo STF, já é tachado de “sonegador”, que anda de “conluio com empreiteiros”, sem a menor chance de defesa.

A reportagem fala ainda que “empreiteiros” disseram que havia uma “caixinha de propinas” que era utilizada pelo PT e segue requentando todas as acusações que a Lava Jato ganhou amplo espaço midiático para fazer.

O espaço dado à defesa de Lula é mínimo, quase ao final. E a reportagem da Veja, que se baseia em inferências requentadas, vaticina: “O caso vai gerar um novo embate nos tribunais”.

Nada melhor para dar gás a uma manifestação de arrependidos “nem, nem” do que uma grande matéria que traz de volta o velho repertório corrupção. Mas até a Veja já foi melhor nessas construções.

Velhas jogadas e os atores de sempre

Na edição do JN do dia 7, que fez uma histórica enquadrada em Jair Bolsonaro (já publiquei no Boletim), o primeiro político a falar sobre impeachment, a condenar Bolsonaro com veemência, foi João Doria, governador de São Paulo. Estado que, pelo filtro midiático, é o paraíso na Terra, o Brasil que dá certo, o reino da ciência e da modernidade.

Muito bem, talvez por ser o Tucanistão esse “paraíso” faça mesmo sentido que aconteça o que um tuíte do PSDB da semana passada nos informa. Algo que aparece como bastante corriqueiro:

Aparentemente, nada demais. Mas só aparentemente.

O maior grupo de comunicação do país, que tem um poder fabuloso e pauta as discussões políticas e econômicas, redesenhando os cenários, construindo e destruindo candidatos e presidentes, agora está  transmitindo debate das prévias de UM partido político?

Assim por acaso, num momento político turbulento, em que os atores se posicionam rumo a 2022, quando o governo Bolsonaro já caiu de podre e os que o apoiaram tentam saltar do barco furado?

Quando os grupos de poder articulam na desesperada tentativa de viabilizar uma coisa chamada terceira via?

O maior grupo de comunicação com um partido que apoiou o golpe de 2016 e que nunca foi penalizado pela mídia?

Transmitindo prévias para escolha de candidato?

Não se trata de debate entre candidatos, mas debate entre candidatos de UM MESMO partido, prévias para escolha do candidato. Nunca antes…

O debate será promovido pelo jornal O Globo, no dia 19 de outubro. E se é tudo natural, normal, nada mais normal e natural que transmitir também as prévias do PT, maior partido do país, diga-se de passagem, e colocar em evidência a aclamação a Lula.

Lembrando Bourdieu, nunca podemos esquecer que o campo jornalístico reconfigura, redesenha e ressignifica o campo político, o que toma proporções gigantescas ao se considerar a realidade de alta concentração dos meios de comunicação como se observa no Brasil.

Lawfare e a parceria Mídia-Judiciário

Por fim, para fechar essa salada, vamos retomar essa estranha parceria que se formou no Brasil nos últimos anos.

Em um brilhante artigo, a professora Maria Luisa Alencar Feitosa, da Universidade Federal da Paraíba, discute o lawfare (que em termos bem gerais pode ser tomado como uma guerra provocada por meio do direito, uma judicialização da política).

Ela explica, entre várias outras coisas, que “perseguições sempre aconteceram na história, todavia, a sistematização da caçada criminal, por agentes públicos dos poderes do Estado, a grupos e pessoas, em face de objetivos estranhos ao processo sub judice, geralmente para manietar lideranças progressistas em países periféricos, é algo relativamente novo.

Teria iniciado, no mundo, após o fatídico 11 de setembro de 2001, através da chamada “guerra híbrida”, expressão que estudiosos atribuem similaridade ao termo lawfare”.

Pois bem, essa sistematização da caçada judicial teve um apogeu no Brasil a partir de 2014 com a Lava Jato.

Operação que só se tornou absurdamente conhecida e louvada e adorada porque foi configurada pela mídia, foi espetacularizada para ser levada ao público como a voz inquestionável da justiça.

Como lembra a professora Maria Luisa, “os processos contra Lula na Operação Lava Jato têm sido apontados como um leading case amplo em termos de lawfare no Brasil e no mundo. Em 2014, uma investigação aparentemente normal de desvios na Petrobras foi ganhando notoriedade a partir do espaço dado pela grande mídia e logo depois passou a pautar os principais noticiários, os tribunais superiores, o parlamento brasileiro e a opinião pública nacional”.

E assim foi por quase sete anos, uma caçada implacável com direito a reportagens enormes ilustradas por um fundo vermelho com canos carcomidos por onde escorria muito dinheiro. E isso para explicar que a corrupção era obra apenas de um grupo.

Adivinhem a cor desse grupo?

Muito bem, essa salada de questões e acontecimentos que eu propus aqui (e nem vou comentar o retorno de Michel Temer à luz) é para que tenhamos a compreensão de que nada é aleatório e que os grupos de poder – a mídia incluída – se unem, se articulam, tentam pautar as discussões, tentam construir candidatos e tentam fingir que uma frente excludente de arrivistas que apoiaram a eleição do ogro incomível é uma frente ampla.

Na verdade, é uma frente ampla sim, uma frente ampla contra as forças de esquerda. Sigamos.

*Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística pela PUC/MG

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