terça-feira, 28 de junho de 2022

Não culpem Moscou pela crise alimentar.

 

Não culpem Moscou pela crise alimentar

Muito maior que a ucraniana, exportação de cereais e fertilizantes russos está travada pelas sanções do Ocidente. Invasão da Ucrânia é injustificável. Mas é Washington quem distorce os fatos e tenta fazer da fome arma de guerra

Por Rafael Poch, no CTXT | Tradução: Maurício Ayer

“Para que o trigo valha dinheiro: água, sol… E guerra em Sebastopol”, costumavam dizer em Castela. Imagino que o ditado tenha sido usado pela primeira vez em meados do século XIX, após a Guerra da Crimeia, e faz referência ao importante papel das ricas planícies ucranianas e das suas terras negras na produção de cereais e na dinâmica dos preços.

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Hoje, a guerra na Ucrânia e as sanções impostas pelos EUA e pela UE em resposta à invasão russa criaram uma situação exemplar. Existe o perigo de fome em partes do Sul global, adverte o Programa Alimentar Mundial da ONU (PAM).

Digo exemplar por conta da evidente e bem conhecida relação que existe entre os desastres da guerra e da fome (segundo o PAM, 60% dos famintos vivem em zonas afetadas pela guerra e pela violência). No caso da Ucrânia, isso representará um aumento de 47 milhões no número de pessoas com fome aguda no mundo. Em outras palavras, o número de pessoas famintas aumentará este ano de 276 milhões (nível anterior à guerra) para 323 milhões, de acordo com esta fonte. Mas também é exemplar devido à forma como este problema é utilizado para fins belicistas, num contexto de propaganda de guerra.

A guerra na Ucrânia agrava os impactos já gerados por outros conflitos: a pandemia, a crise climática e o incremento dos custos pelo aumento dos preços dos cereais, que já vinha de antes, e pelo transporte. A África Subsaariana será a área mais afetada. Egito, Tunísia, Turquia, Líbano, Síria, Argélia, Marrocos, Somália, Etiópia e Sudão receberão menos grãos – e além disso por preços mais altos.

Este relatório do PAM foi publicado em março, mas a maioria dos nossos meios de comunicação só o reverberaram em junho. E, muitas vezes, relataram-no mal.

A Rússia e a Ucrânia são responsáveis por 30% das exportações globais de trigo. Ambos os países são também grandes exportadores de cevada, milho, sementes de girassol e óleo de girassol. Grande parte dessa exportação vai para o sul, para a Ásia, o Oriente Médio, o Norte africano e a África Subsaariana, onde se situam alguns dos países mais pobres do mundo, que já estava no limite em razão dos efeitos do aumento dos preços, do estresse pandêmico e dos flagelos habituais: guerra, corrupção, desigualdade, má gestão….

A Otan afirma que o bloqueio russo aos portos ucranianos é a razão do aumento quantitativo da fome que a ONU e o PAM anunciam e contabilizam. Mas a Rússia exporta muito mais do que a Ucrânia: 20% de trigo, farinha e derivados, ante 8,5% da Ucrânia. Portanto, o que a Otan, a UE e os EUA – e com eles, o grosso dos nossos meios de comunicação – não dizem é que as sanções ocidentais contra a Rússia são muito mais significativas na gênese deste perigo do que o bloqueio russo aos portos ucranianos.

As sanções impostas à Rússia impedem a exportação de cereais russos; 50% desse cereal – que é muito mais do que tudo o que a Ucrânia exportava dos seus portos – foram exportados do porto russo de Novorossiysk, na costa oriental do Mar Negro. Como resultado das sanções, os navios não podem acessar a este porto para carregar. As companhias de seguros não cobrem o tráfego destes navios, e os navios de bandeira russa não podem utilizar a infraestrutura portuária mundo afora. Além disso, a Rússia não pode cobrar o pagamento pelo comércio de cereais porque os sistemas de pagamento estão bloqueados e os bancos internacionais estão fechados para suas atividades.

As sanções financeiras impedem a Rússia de cobrar estas exportações e introduzem o risco de que os pagamentos através de bancos e sistemas controlados pelos sancionadores sejam confiscados, como aconteceu com os US$ 300 bilhões russos que foram depositados nos Estados Unidos (e com os US$ 9 bilhões afegãos, cuja apropriação, em vingança pelo desastre militar no Afeganistão, agrava a fome naquele infeliz país, e com os bilhões de dólares iranianos roubados em resposta à revolução de 1979, e…).

O segundo aspecto pelo qual as sanções agravam a situação diz respeito aos fertilizantes. O preço dos fertilizantes aumentou devido ao aumento do preço do gás, que é a matéria-prima com a qual eles são produzidos. A Rússia e a Bielorrússia são, respectivamente, o primeiro e sexto maiores produtores mundiais de fertilizantes. Em conjunto, representam 20% da produção global. E ambos estão sob sanções.

Portanto, tudo isso afeta os preços. E o aumento dos preços tem um impacto direto na capacidade das pessoas mais pobres de pagar pelos seus alimentos: muitos dos que antes fechavam as contas com aperto agora já não conseguem, adverte o PAM.

Não se pode portanto dizer, como o bloco UE/Otan e os EUA afirmam, que é a Rússia, ou apenas a Rússia, que é a responsável. Existe obviamente uma clara responsabilidade russa por ter iniciado a invasão, uma responsabilidade inseparável das circunstâncias que a provocaram também de fora da Rússia. A coisa mais diplomática a dizer é que existe uma responsabilidade partilhada. E a coisa mais objetiva a dizer é que as sanções ocidentais contra o seu adversário geopolítico neste conflito são um fator de aumento da fome mais importante do que o bloqueio dos portos ucranianos, que os russos estão dispostos a levantar sob certas condições.

Apesar disso, a mensagem dos políticos atlantistas e dos seus meios de comunicação é inequívoca. Em 24 de maio, em Davos, a inefável presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que “a Rússia está bombardeando silos na Ucrânia, bloqueando os cargueiros ucranianos cheios de trigo e girassol e acumulando as suas próprias exportações de alimentos como forma de chantagem. Isso é usar a fome e os cereais como recurso de poder” (Wall Street Journal, 24 de mayo: “Ukraine-Russia War Is Fueling Triple Crisis in Poor Nations”)

“Temos de assegurar que este cereal seja enviado para o mundo, caso contrário milhões de pessoas passarão fome”, diz a ministra de Assuntos Estrangeiros canadense, Melanie Joly.

O que emerge destas declarações é uma campanha para quebrar militarmente o bloqueio da Rússia à costa ucraniana, alegando uma “catástrofe humanitária”. Em outras palavras, uma escalada militar ainda mais perigosa.

No dia seguinte à declaração de von der Leyen, o editorial do Wall Street Journal explicou de que se trata sob o título “Quebrar o Bloqueio Alimentar de Putin”: “O mundo precisa de uma estratégia para quebrar o bloqueio russo aos portos ucranianos, de modo a que os alimentos e outros bens possam ser exportados, e isso significa um plano para utilizar navios de guerra para escoltar navios mercantes para fora do Mar Negro” (…) “o mundo civilizado deve agir em breve para evitar uma crise humanitária ainda maior”. Putin está utilizando “a pressão alimentar global para conseguir que a Otan e outras nações concordem com a paz nos seus termos”. E o jornal propôs “uma coalizão internacional de navios de guerra” independente da Otan para levar a cabo essa estratégia sem que a Rússia possa denunciá-la como provocação.

A guerra vai durar muito tempo. Os centros de poder e os meios de comunicação ocidentais defendem claramente a sua eternização. O Kremlin também não está interessado em negociações enquanto não tiver como resultado claro – ou aparente – um êxito militar que possa apresentar como conclusão do conflito. Qualquer pretexto “humanitário” será, e é, explorado neste contexto belicista. O aumento da fome no Sul não importa em Bruxelas, nem em Washington, nem em Wall Street. E para Moscou é um “efeito colateral” das mal calculadas sanções ocidentais contra a Rússia.

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