O Brasil mostra a cara: de movimentos e inércia
A administração social das ruas tem agora novos responsáveis entre jovens, mulheres, minorias, politizados e analfabetos políticos.
José Carlos Peliano*
Aprendemos cedo que a vida é movimento, mas também inércia. A noção de movimento é fácil de entender, a de inércia leva a uma compreensão mais acurada. Ambas permeiam nosso dia a dia de manhã à noite.
Ao entrar nas salas do 1o grau a todos os alunos são mostrados os movimentos de rotação e translação da Terra e, ao mesmo tempo, seu usual caminho de inércia. Nesse caso, o percurso que o planeta segue em volta do sol pelos dias, semanas e anos.
O exemplo pode ser usado para tentar entender o Brasil de hoje. A cara que emerge da luta política entre as instituições e a população não é mais a clássica, dos livros escolares de história ou geografia, onde os cidadãos se comportavam obedecendo normas legais e constitucionais, dada a cultura dominante. Insurgiam-se somente em revoltas, rebeliões e guerras.
Hoje a população vai às ruas reclamar com veemência seus direitos ou apontar distorções no comando do país, seja de ordem política, econômica e social. Grupos diversos se autodenominam ou são aprovados representantes de determinados segmentos sociais e/ou bandeiras de atuação e partem decididos para demonstrar suas reivindicações.
Não que esses movimentos sejam novidades, não, absolutamente. Eles já foram anotados em muitos outros momentos de nossa história republicana. Nos anos próximos, por exemplo, no período pré AI-5, de terrível memória, quando estudantes e simpatizantes de todos os naipes enfrentaram o exército nas ruas. Depois, de novo, quando os caras pintadas foram ao asfalto apoiar o impeachment de Collor.
Mais recentemente as manifestações de São Paulo em 2013 contra o aumento das passagens de ônibus, que iniciaram um novo período onde os movimentos superaram a inércia da rotina de trabalho e se apresentaram em várias cidades brasileiras. De 2014 para cá eles se intensificaram especialmente por conta da luta política pró e contra o governo.
Finalmente o Brasil mostra sua cara. Não mais a população à mercê de mandos e desmandos econômicos, políticos e jurídicos. Se antes acabava se dando a resignação diante do poder dominante, agora ela mostra sua indignação reprimida solta a voz, as bandeiras, os chamamentos, os gritos de luta.
Agora a inércia é a ebulição de sentimentos, incômodos e inquietações diante de arbitrariedades, reais ou imaginárias, praticadas pelo poder dominante seja ele executivo, legislativo ou judiciário.
A aparente volta ao normal de grupos inconformados após suas manifestações urbanas ou rurais não significa necessariamente que eles atingiram seus objetivos ou se aquietaram. Apenas que voltaram aos seus redutos para digerirem os acontecimentos e renovarem os próximos passos.
Ousaria apontar quatro tipos predominantes de movimentos no Brasil de hoje que têm chamado mais a atenção, sem o rigor da conceituação precisa. Os de objetivos específicos, MST (Movimento dos Sem Teto) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto; os políticos, os contra e a favor do governo com várias denominações; os das minorias (de direito políticos), mulheres, LGBT, negros, índios, entre outros, e os espontâneos, basicamente formados por jovens, seja para ocuparem escolas, seja para ocuparem as ruas em defesa da democracia.
Evidente que todos eles têm bandeiras de luta que os guiam, mas que também podem se modificar a depender do momento econômico, social e político. O que importa é vê-los da forma como se apresentam na defesa de seus direitos e reivindicações.
Esse movimentos em ebulição e manifestação contrastam com a inércia do Legislativo e do Judiciário. Por que não também a do Executivo? Porque, todos sabem, que este para governar depende da aprovação de leis pelo Congresso e da vigília dos tribunais superiores. Como esses estão travando a vida econômica e política, resta ao Executivo operar suas ações e atividades rotineiras. Mais nada. Quaisquer novos projetos, propostas, acordos ou destraves jurídicos se perdem no emaranhado da teia política, ainda mais quando partidária e discricionária.
A inércia do Congresso pode, sim, ser medida. Desde a posse do novo governo, as comissões da Câmara, por onde se inicia o trâmite dos projetos, e que são as instâncias que aprovam ou não a validade das proposições, bem como seu ajustamento aos ditames legais para ir a plenário, não tiveram reuniões para deliberar sobre qualquer assunto de importância. Reservaram armas e bagagens somente para a que analisou o pedido de impeachment.
O plenário desde então votou matérias de pouca relevância. Concentrou-se apenas dia 17 de abril na votação vexaminosa, patética e absurda do pedido de afastamento da Presidenta da República.
Por sua vez, a inércia do Supremo Tribunal Federal pode ser avaliada pelo fato de que não só não se concentrou na consideração do mérito do ritual do impeachment da Câmara, fazendo vistas grossas, quanto não deu andamento à análise do processo encaminhado pela Procuradoria Geral da República (PGR) em dezembro de 2015 para cassação do presidente da Câmara. Outras denúncias de corrupção ficaram engavetadas nos respectivos gabinetes ministeriais.
Para completar a paralisia jurídico-político-institucional cerca de 300 deputados estão pendurados com processos na Justiça ou Tribunal de Contas aguardando há tempos decisões ou sentenças.
Nessa ordem invertida e maquiavélica de coisas, quando a Justiça não julga e o Congresso não vota, congelando o Governo, a população insatisfeita e agoniada sai às ruas na grita para que a democracia volte a imperar. Especialmente para cobrar do Judiciário e do Congresso os 16 meses, desde o início do 2o mandato da Presidenta, o período gasto por eles, pagos por todos nós, tapando o sol com a peneira e dando, alguns, declarações obtusas à mídia.
Enquanto isso acontecia, a economia ia para o brejo. Aumento do desemprego, hoje em torno de 10 milhões de trabalhadores, salários pressionados para baixo, juros altos, queda das importações, inflação renitente, entre outras mazelas. O circo pegando fogo e deputados deixando de legislar e ministros apreciando processos importantes, sim, mas não urgentes e da ordem do dia.
Auxiliados pelas redes na internet, os movimentos sociais não só tomaram as ruas como locais de luta política, como também passaram a apresentar diretamente aos poderes constituídos suas reivindicações. A PGR, por exemplo, acusou o recebimento esta semana de mais de 17 mil denúncias contra o deputado Jair Bolsonaro. Já que os poderes constituídos esquentam cadeiras, eles se levantam, andam e operam.
A crise política nacional está longe de ser administrada, nem com a ajuda de deus, famílias, filhos, netos, avós e demais agregados. Mas a administração social das ruas, sim, tem agora novos responsáveis entre jovens, mulheres, minorias, politizados e analfabetos políticos.
Essa a cara do novo Brasil. Retira de cena suas excelências e meritíssimos e a ocupa pelos grupos populares espontâneos ou não. A luta por ocupação de espaço político pode ser longa, difícil, contraditória, mas essencial, oportuna e valorosa para trazer de volta os ventos democráticos. E se possível mantê-los. Antes tarde do que nunca.
*colaborador da Carta Maior
Ao entrar nas salas do 1o grau a todos os alunos são mostrados os movimentos de rotação e translação da Terra e, ao mesmo tempo, seu usual caminho de inércia. Nesse caso, o percurso que o planeta segue em volta do sol pelos dias, semanas e anos.
O exemplo pode ser usado para tentar entender o Brasil de hoje. A cara que emerge da luta política entre as instituições e a população não é mais a clássica, dos livros escolares de história ou geografia, onde os cidadãos se comportavam obedecendo normas legais e constitucionais, dada a cultura dominante. Insurgiam-se somente em revoltas, rebeliões e guerras.
Hoje a população vai às ruas reclamar com veemência seus direitos ou apontar distorções no comando do país, seja de ordem política, econômica e social. Grupos diversos se autodenominam ou são aprovados representantes de determinados segmentos sociais e/ou bandeiras de atuação e partem decididos para demonstrar suas reivindicações.
Não que esses movimentos sejam novidades, não, absolutamente. Eles já foram anotados em muitos outros momentos de nossa história republicana. Nos anos próximos, por exemplo, no período pré AI-5, de terrível memória, quando estudantes e simpatizantes de todos os naipes enfrentaram o exército nas ruas. Depois, de novo, quando os caras pintadas foram ao asfalto apoiar o impeachment de Collor.
Mais recentemente as manifestações de São Paulo em 2013 contra o aumento das passagens de ônibus, que iniciaram um novo período onde os movimentos superaram a inércia da rotina de trabalho e se apresentaram em várias cidades brasileiras. De 2014 para cá eles se intensificaram especialmente por conta da luta política pró e contra o governo.
Finalmente o Brasil mostra sua cara. Não mais a população à mercê de mandos e desmandos econômicos, políticos e jurídicos. Se antes acabava se dando a resignação diante do poder dominante, agora ela mostra sua indignação reprimida solta a voz, as bandeiras, os chamamentos, os gritos de luta.
Agora a inércia é a ebulição de sentimentos, incômodos e inquietações diante de arbitrariedades, reais ou imaginárias, praticadas pelo poder dominante seja ele executivo, legislativo ou judiciário.
A aparente volta ao normal de grupos inconformados após suas manifestações urbanas ou rurais não significa necessariamente que eles atingiram seus objetivos ou se aquietaram. Apenas que voltaram aos seus redutos para digerirem os acontecimentos e renovarem os próximos passos.
Ousaria apontar quatro tipos predominantes de movimentos no Brasil de hoje que têm chamado mais a atenção, sem o rigor da conceituação precisa. Os de objetivos específicos, MST (Movimento dos Sem Teto) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto; os políticos, os contra e a favor do governo com várias denominações; os das minorias (de direito políticos), mulheres, LGBT, negros, índios, entre outros, e os espontâneos, basicamente formados por jovens, seja para ocuparem escolas, seja para ocuparem as ruas em defesa da democracia.
Evidente que todos eles têm bandeiras de luta que os guiam, mas que também podem se modificar a depender do momento econômico, social e político. O que importa é vê-los da forma como se apresentam na defesa de seus direitos e reivindicações.
Esse movimentos em ebulição e manifestação contrastam com a inércia do Legislativo e do Judiciário. Por que não também a do Executivo? Porque, todos sabem, que este para governar depende da aprovação de leis pelo Congresso e da vigília dos tribunais superiores. Como esses estão travando a vida econômica e política, resta ao Executivo operar suas ações e atividades rotineiras. Mais nada. Quaisquer novos projetos, propostas, acordos ou destraves jurídicos se perdem no emaranhado da teia política, ainda mais quando partidária e discricionária.
A inércia do Congresso pode, sim, ser medida. Desde a posse do novo governo, as comissões da Câmara, por onde se inicia o trâmite dos projetos, e que são as instâncias que aprovam ou não a validade das proposições, bem como seu ajustamento aos ditames legais para ir a plenário, não tiveram reuniões para deliberar sobre qualquer assunto de importância. Reservaram armas e bagagens somente para a que analisou o pedido de impeachment.
O plenário desde então votou matérias de pouca relevância. Concentrou-se apenas dia 17 de abril na votação vexaminosa, patética e absurda do pedido de afastamento da Presidenta da República.
Por sua vez, a inércia do Supremo Tribunal Federal pode ser avaliada pelo fato de que não só não se concentrou na consideração do mérito do ritual do impeachment da Câmara, fazendo vistas grossas, quanto não deu andamento à análise do processo encaminhado pela Procuradoria Geral da República (PGR) em dezembro de 2015 para cassação do presidente da Câmara. Outras denúncias de corrupção ficaram engavetadas nos respectivos gabinetes ministeriais.
Para completar a paralisia jurídico-político-institucional cerca de 300 deputados estão pendurados com processos na Justiça ou Tribunal de Contas aguardando há tempos decisões ou sentenças.
Nessa ordem invertida e maquiavélica de coisas, quando a Justiça não julga e o Congresso não vota, congelando o Governo, a população insatisfeita e agoniada sai às ruas na grita para que a democracia volte a imperar. Especialmente para cobrar do Judiciário e do Congresso os 16 meses, desde o início do 2o mandato da Presidenta, o período gasto por eles, pagos por todos nós, tapando o sol com a peneira e dando, alguns, declarações obtusas à mídia.
Enquanto isso acontecia, a economia ia para o brejo. Aumento do desemprego, hoje em torno de 10 milhões de trabalhadores, salários pressionados para baixo, juros altos, queda das importações, inflação renitente, entre outras mazelas. O circo pegando fogo e deputados deixando de legislar e ministros apreciando processos importantes, sim, mas não urgentes e da ordem do dia.
Auxiliados pelas redes na internet, os movimentos sociais não só tomaram as ruas como locais de luta política, como também passaram a apresentar diretamente aos poderes constituídos suas reivindicações. A PGR, por exemplo, acusou o recebimento esta semana de mais de 17 mil denúncias contra o deputado Jair Bolsonaro. Já que os poderes constituídos esquentam cadeiras, eles se levantam, andam e operam.
A crise política nacional está longe de ser administrada, nem com a ajuda de deus, famílias, filhos, netos, avós e demais agregados. Mas a administração social das ruas, sim, tem agora novos responsáveis entre jovens, mulheres, minorias, politizados e analfabetos políticos.
Essa a cara do novo Brasil. Retira de cena suas excelências e meritíssimos e a ocupa pelos grupos populares espontâneos ou não. A luta por ocupação de espaço político pode ser longa, difícil, contraditória, mas essencial, oportuna e valorosa para trazer de volta os ventos democráticos. E se possível mantê-los. Antes tarde do que nunca.
*colaborador da Carta Maior
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