O processo segue o mesmo roteiro. A polícia, procuradores, promotores fazem, com estardalhaço, uma acusação, enquanto investigados são presos ou, eufemisticamente, conduzidos coercitivamente por policiais fortemente armados para depor. Os delegados, promotores e juízes comandam o espetáculo. Convocam a imprensa, dão entrevista, expõem suas suposições, que viram verdades, sem contestação. Os jornalistas reproduzem as informações, complementando com uma curta defesa do acusado ou do seu advogado, que mal conhecem a acusação. Os nomes e as imagens dos investigados, alçados à condição de acusados e culpados, são expostos, sem qualquer pudor. O linchamento moral está feito. Não há retorno.
Foi isto que aconteceu em 1994, com o caso que ficou conhecido como Escola Base, em São Paulo. Um delegado recebeu denúncia de mãe de aluno de que o filho estaria sofrendo abuso sexual, informou a imprensa sobre a suspeita e acusou seis pessoas, dentre elas, os proprietários da escola. A irresponsabilidade do delegado e o sensacionalismo da imprensa destruíram a vida dos acusados, sem qualquer chance de defesa. O caso virou exemplo de erro policial e jornalístico, que muitos esperavam não ver repetido.
UFSC
Mas, infelizmente, nos últimos anos, casos semelhantes se repetiram. O mais dramático foi o que culminou com o suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier. Ele e mais seis servidores da UFSC foram presos por um contingente de mais de cem policiais, com ampla cobertura da imprensa. Foi encaminhado para uma penitenciária, humilhado e impedido de entrar no campus da universidade, acusado de envolvimento no desvio dos R$80 milhões do Programa de Educação à Distância. O valor do desvio investigado era de pouco menos de R$500 mil e Cancellier não era o reitor no período em que teria acontecido. Mas a denúncia virou verdade, e o levou o à morte.
Acusações de corrupção em que as datas não batem, onde não há provas e onde os valores são turbinados em alguns dígitos para garantir manchetes parecem ser uma estratégia da polícia/justiça na busca de apoio e divulgação. Outro recurso é listar grande número de possíveis condenações. Como a acusação vem de fontes oficiais elas são reproduzidas, sem questionamentos.
A UFSC não foi a primeira universidade federal a sofrer com ações policiais espetaculosas, nos últimos doze meses. Outras cinco foram “investigadas” por operações da PF: a do Rio Grande do Sul (UFRG), do Paraná (UFPR), do Triângulo Mineiro (UFTM) e a de Juiz de Fora (UFJF). Mas depois da tragédia em Santa Catarina, muitos acreditaram que haveria um freio neste tipo de ação da Polícia Federal e da Justiça.
Por isso foi de certa forma surpreendente ver dois meses depois do suicídio do reitor da UFSC, um grande aparato de policiais federais, fortemente armados, executarem uma ação de busca e apreensão na Universidade Federal de Minas Gerais e conduzirem coercitivamente o atual reitor, a vice-reitora, duas ex-vice reitoras, o presidente da Fundação de Pesquisa (Fundep) e duas servidoras para deporem sob a acusação genérica de fraude na construção e implantação do Memorial da Anistia. Na entrevista que se seguiu à condução coercitiva ficou demonstrada a fragilidade da investigação e da acusação e a falta de justificativa para a ação violenta e ilegal, já que ninguém havia sido convocado a depor, anteriormente.
Se não mudou a ação da PF, pelo menos o efeito UFSC, agregado a repercussão negativa das outras operações em universidades federais, gerou inúmeras reações depois da invasão da UFMG. Entidades de classe, sindicatos, artistas, intelectuais, políticos, a comunidade acadêmica, movimentos sociais, todos se uniram para condenar a ação da PF e o infeliz e desrespeitoso nome da operação “Esperança Equilibrista”, fazendo ironia com o título da música símbolo da luta pela anistia no Brasil. A cobertura da imprensa, como é tradicional, reproduziu as acusações da Polícia no primeiro momento, mas desta vez houve críticas de muitos jornalistas, inclusive de colunistas dos grandes jornais. A ombudsman da Folha de São Paulo aproveitou o caso para questionar a forma como o jornal cobre as operações.
LAVA JATO
Antes das ações nas universidades, exemplos de exibicionismo de policiais, de procuradores, de juízes e casos de linchamentos, humilhações, erros e injustiças já vinham acontecendo há anos nas operações da Lava Jato, com acompanhamento diuturno e nada crítico da imprensa.
Um dos casos de linchamento moral aconteceu com a falsa acusação e prisão da “cunhada do Vacari, o tesoureiro do PT”. Confundida com a irmã na imagem do circuito interno de uma agência bancária fazendo um depósito em um caixa eletrônico, “a cunhada do Vacari” teve sua prisão decretada pela justiça. Como estava participando de um Congresso no exterior, não foi encontrada pela Polícia Federal. Durante dois dias, teve o seu nome exposto, minuto a minuto, em manchetes na TV, no rádio, nos sites e jornais, como foragida da justiça. Ela antecipou o retorno ao Brasil, se apresentou em Curitiba e foi imediatamente presa. Ficou na cadeira por cinco dias. Só foi libertada, quando se constatou que não era dela a imagem no banco. A sua libertação e o erro judicial não mereceram destaque. Para sempre será lembrada como corrupta e presa da Lava Jato.
Outro caso de injustiça flagrante aconteceu com um ex-diretor da OAS, também preso pelo juiz Moro, em Curitiba. Desde o início da investigação, ele e os outros diretores afirmavam que ele não atuava em nenhuma questão financeira da empresa. Só foi inocentado, depois de nove meses de prisão e de recorrer à segunda instância, que constatou que nada o incriminava. Perdeu o emprego, a mulher, meses da infância da filha, teve depressão. Mais uma vítima da Lava Jato.
Em todos esses anos de denúncias, acusações, linchamentos morais, a imprensa deveria ter se lembrado da Escola Base. Fatos devem ser avaliados, em sua relevância e legalidade, mesmo que endossados, pela Polícia, Ministério Público e Justiça. Ao jornalista cabe apurar, investigar, aprofundar os fatos, ter senso crítico, questionar a autoridade policial ou judicial, e não ser apenas um reprodutor de acusações, muitas vezes infundadas e não comprovadas, que destroem vidas e reputações.
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Nereide Lacerda Beirão é jornalista. Foi Diretora de Jornalismo da EBC e da TV Globo Minas, além de professora. Ocupou também a diretoria do Centro de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. É autora do livro “Serra”, publicado em 2012.
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