15 Dezembro 2017
O advogado Pablo Verna, de 44 anos, fez um pedido ao Congresso Nacional do seu país, a Argentina: ele quer que a legislação em vigor, que impede familiares de denunciarem e prestarem depoimentos à Justiça contra seus parentes, seja modificada.
A reportagem é de Marcia Carmo, publicada por BBC Brasil, 15-12-2017.
Seu objetivo é ter o direito de denunciar e depor contra o pai, que foi médico do Exército durante a ditadura argentina (1976-1983). Ele diz que Julio Alejandro Verna, hoje aos 70 anos, admitiu ter injetado sedativos em vítimas do regime militar antes que elas fossem lançadas dos chamados "voos da morte", que arremessavam os prisioneiros ainda vivos em rios ou no mar.
Seu objetivo é ter o direito de denunciar e depor contra o pai, que foi médico do Exército durante a ditadura argentina (1976-1983). Ele diz que Julio Alejandro Verna, hoje aos 70 anos, admitiu ter injetado sedativos em vítimas do regime militar antes que elas fossem lançadas dos chamados "voos da morte", que arremessavam os prisioneiros ainda vivos em rios ou no mar.
O pai dele está livre. Questionado certa vez por uma repórter, o médico negou ter sedado desaparecidos políticos para esse fim. "Não, senhora. De onde tiraram isso?"
Pablo Verna integra o Histórias Desobedientes, grupo que reúne 25 filhos de ex-repressores da ditadura argentina.
Eis o seu depoimento à BBC Brasil:
"Há muito tempo eu desconfiava que meu pai tinha cometido crimes na ditadura militar. Nas conversas em casa, ele demonstrava conhecer detalhes demais dos crimes cometidos naquele período horrível. Mas quando eu perguntava por que ele sabia tanto, respondia que eram as enfermeiras que lhe contavam.
Meu pai era médico do Exército argentino. E com o passar dos anos, baseado no que ele mesmo me dizia, passei a questioná-lo com tom mais critico, e de acusação.
Nossa relação foi ficando cada vez mais tensa. Duas conversas foram aos gritos. Em 2009, eu já tinha certeza de que ele tinha participado dos crimes. Mas não sabia como. Não tinha os fatos concretos. Além disso, como filho, acho que queria manter a dúvida diante de algo tão pavoroso.
Então, em meados de 2013, em mais uma conversa tensa, ele admitiu que tinha cometido os crimes. Não lembro as palavras exatas que usei para que admitisse isso. Mas naquele encontro lembrei o que meu pai tinha contado a um familiar e as respostas anteriores que tinha me dado cada vez que abordei o assunto. Foi impossível para ele negar o que tinha feito. E até que me disse: 'foi isso mesmo'.
Como médico, meu pai participava dos crimes da ditadura injetando sedativos nas pessoas que seriam jogadas vivas ao rio ou ao mar. Eram anestesias que as deixavam imediatamente paralisadas, mas respirando. E quando elas estavam assim, as jogavam dos 'voos da morte', como ficaram conhecidos.
Meu pai cometeu outros crimes. Ele também participava dos sequestros dos opositores, dos militantes sociais e políticos. Foram 30 mil desaparecidos no nosso país. A ditadura genocida sequestrava e fazia essas pessoas desaparecerem.
Depois daquela conversa em meados de 2013, ele disse a um familiar que não estava arrependido. E ainda acrescentou que tinha participado de um caso específico que teve muita repercussão aqui na Argentina.
Em 1979, quatro pessoas foram sequestradas e também receberam as injeções de anestesia. Elas foram jogadas em um riacho, uma simulação de um acidente de carro em uma ponte. As quatro morreram.
Como médico militar, meu pai estava sempre armado. Isso até passar para a reserva, em 1983, com o retorno da democracia no país. E além desses crimes genocidas, certa vez ele apareceu em casa com uma maleta de primeiros-socorros de médico que não era dele. Que era de uma das vítimas da ditadura. Eu perguntei porque estava com duas maletas, e me respondeu que tinha sido um presente. Que uma das maletas tinha sido de um subversivo.
Na minha casa, as palavras que ele usava eram chamativas, como 'subversivo'. Eram palavras de um genocida. Era um discurso ideológico para eliminar os que eram opositores ao regime militar. Uma vez, disse que os opositores eram mortos porque, quando eram presos e soltos, ficavam ainda piores.
A nossa relação foi rompida naquela conversa em meados de 2013, quando meu pai admitiu os crimes. Mas no dia seguinte ele me ligou para saber se eu tinha contado para minha mulher. Depois disso, ficamos sem nos falar até pouco tempo - dias atrás, ele me telefonou para, ao meu ver, fazer ameaças. Também faz isso por meio de conversas com parentes, cujos relatos chegam até mim.
Eu me afastei de muitos familiares. Primeiro, para evitar encontrá-lo, e ainda porque uma parte da minha família se recusa a saber, nega o que ocorreu. Acha que isso é um problema entre duas pessoas - no caso meu pai e eu. Mas isso não é um simples problema entre duas pessoas, é entre ele e a humanidade, na qual eles, os familiares, estão incluídos.
Hoje meu pai está livre, mas é investigado porque o denunciei na Secretaria de Direitos Humanos poucos meses depois daquela nossa conversa. Agora o caso dele faz parte de uma imensa apuração, levada adiante pelos defensores das vítimas na que ficou conhecida como 'megacausa contraofensiva', pela repressão e extermínio ocorridos no Campo de Mayo nos anos 1970 e 1980. O local foi um centro clandestino de prisão e extermínio horrível no nosso país.
Essa casa deixou poucos sobreviventes e provas. Meu problema hoje, como filho, é que, apesar de ter essas certezas contra meu pai, encontrei barreiras na legislação que me impedem de denunciá-lo penalmente. No Código de Processo Penal da Argentina, existem dois artigos que proíbem que familiares denunciem e deem depoimento, já no processo, contra outros familiares.
Ou seja, não podem ser testemunhas contra outros familiares. Por isso, entramos com esse projeto de lei pedindo que essas proibições não sejam aplicadas para os casos de crimes contra a humanidade. E assim nós, filhos de repressores, poderemos denunciar nossos pais judicialmente, além de prestar depoimento contra eles nos julgamentos.
Nós do coletivo Historias Desobedientes, que somos filhos e filhas de genocidas, vivemos nas nossas casas, com nossos pais, a imposição de um mandato de silêncio, de maneira implícita ou explicita.
Os genocidas fizeram um pacto de silêncio que cumprem até hoje. Eles não revelam o que fizeram e o que os outros militares fizeram. Mas depois de muitos anos, e de conscientização do que aconteceu, e da nossa própria ética, decidimos levar as acusações adiante. Mas aí nos deparamos com esses artigos da legislação argentina.
Apresentamos esse projeto de lei no dia 7 de novembro na mesa de entrada da Câmara dos Deputados. No nosso grupo, alguns já têm os pais mortos, outros condenados e outros, impunes.
No meu caso, espero que meu pai seja investigado. E que ele e os outros genocidas reflitam e tenham alguma dignidade em seus últimos anos de vida. Que deem um pouco de paz a tantos familiares que não sabem qual foi o destino de seus parentes desaparecidos. E paz até para eles, genocidas. Porque eles também devem viver um inferno em suas mentes e corações.
Nós, como coletivo, sabemos que nossa iniciativa, com esse projeto de lei, pode ajudar no contexto das investigações. Coisas que ouvimos nas nossas casas podem aportar no contexto em que os crimes foram cometidos. Inclusive os casos de roubo que as vítimas da ditadura sofreram.
Nossa iniciativa não dará resposta a tudo. Mas pode contribuir para acabar com a impunidade mantida pelos genocidas."
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