Jessé Souza: Rentistas precisam desmoralizar a política para acabar com a soberania popular
Charge do Outras Palavras
A sociedade brasileira foi vítima, a partir de 2013, de um dos ataques mais insidiosos e virulentos do capitalismo financeiro internacional.
O ataque teve um sentido duplo: quebrar a nascente experiência dos BRICS, enquanto tentativa de inserção internacional autônoma do país, e transformar o orçamento público via dívida pública – gigantesca fraude de socialização de prejuízos e privatização de lucros.
Além de transformar as riquezas nacionais em um espaço livre para a rapina econômica de uma ínfima elite.
Como as outras frações dos proprietários, como o agronegócio ou a indústria, retiram seu lucro maior, crescentemente, também da fraude financeira, a fração financeira do capital passa a ter o comando do processo econômico e do processo político.
O capitalismo financeiro não é apenas uma nova ordem econômica mundial.
Ele não muda apenas a forma e a velocidade da acumulação do capital e a forma de controle do processo de trabalho.
Ele também criminaliza e estigmatiza a esfera política para que esta perca qualquer autonomia, e a agenda predatória financeira possa se impor sem qualquer restrição.
E, acima de tudo, deseja evitar a mediação política como expressão de interesses das classes populares.
Daí a criminalização dos movimentos populares, o ataque aos sindicatos e a estigmatização dos partidos de esquerda.
Na dimensão simbólica o ataque foi planejado há décadas pela disseminação de “think tanks” conservadores no mundo todo e pela compra e cooptação da indústria cultural e da imprensa a nível mundial.
O núcleo duro da nova forma de poder é bifronte: o capital financeiro assalta a população e legaliza sua corrupção pela compra da Política e do Judiciário; e a grande imprensa frauda o público com a distorção sistemática da realidade.
Essa estratégia de manipular as mentes para assaltar o bolso dos imbecilizados já tinha sólida tradição no Brasil.
Como mostro no meu livro mais recente (“A elite do atraso”, Leya, 2017) a elite paulistana constrói a criminalização seletiva da política, contra Getúlio Vargas e seu projeto nacional, ao cooptar a elite intelectual e fundar a imprensa elitista e venal que hoje possuímos.
A ascensão de Vargas, com apoio da classe média “tenentista”, havia mostrado à elite a necessidade de controlar a heterodoxia rebelde da classe média letrada.
Se, em relação à classe trabalhadora e à “ralé” de marginalizados, a violência material e física era, e continua a ser, o tratamento “normal”, em relação à classe média a estratégia teria que ser outra.
Como a pequena elite precisa da classe média como aliada carnal no exercício diário da dominação econômica social e política, a classe média tem que ser seduzida e conquistada.
Daí a estratégia de convencimento e, não, de repressão.
Para “convencer” são necessárias ideias e uma imprensa elitista e venal para distribui-las.
Essa elite cria então a USP como um gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro.
E faz dela a universidade de referência nacional, que forma os professores e estipula os critérios das outras universidades.
Assim, temos a formação de todas as elites nacionais segundo uma referência comum.
Essa referência nacional comum vão ser as ideias centrais de patrimonialismo e de populismo ambas criadas e difundidas na USP.
A primeira diz que a corrupção é só do Estado e da política para tornar invisível a corrupção do mercado, que se torna possível pela captura do Estado enfraquecido e criminalizado.
Depois, ainda diz que a elite do mal está no Estado, enquanto o mercado é um espaço idealizado só de virtudes como o empreendedorismo, a honestidade, o trabalho duro e a iniciativa individual.
Já o populismo serve para tornar as classes populares suspeitas de burrice inata e, portanto, presa fácil de líderes demagógicos e manipuladores.
Com isso, de uma penada, pode-se mitigar o princípio da soberania popular e tornar suspeita qualquer liderança popular.
São essas ideias, distribuídas desde então pela mídia venal todos os dias, que envenenam a capacidade de reflexão da população e da classe média.
Como se não bastasse, criou-se também uma narrativa histórica de longa duração, baseada nessa visão distorcida.
Ela possibilita uma singularidade “vira lata”, hoje patrimônio indissociável de todo brasileiro.
É que a corrupção dos tolos, só do Estado e da política, passa a ser percebida como herança portuguesa e agora ensinada não só nas universidades, mas, também a toda criança brasileira na escola.
O ridículo dessa crença que supõe existir no século XIV em Portugal noções que foram criadas no século XVIII, como a noção moderna de ”bem público”, que pressupõe a ideia de soberania popular, não parece ter incomodado ninguém.
O ponto decisivo, ao arrepio da verdade e da inteligência, é inverter o sentido da apropriação do público: passa a ser um atributo do Estado e da política, e, nunca, do mercado e da elite de proprietários.
Sem esclarecer essa pré-história, a conjuntura atual é incompreensível.
O golpe de 2016 é uma continuidade aprofundada e mais cruel dessa grande fraude brasileira que começa em 1930.
Todos os golpes de Estado desde então tiveram exatamente o mesmo roteiro.
No golpe recente não apenas se reverberou a mentira pronta de cem anos da corrupção dos tolos e do populismo.
Sob o comando da Rede Globo e da farsa da “Lava Jato” atacou-se também o próprio princípio da igualdade social como maior valor do Cristianismo e da cultura ocidental.
O ataque seletivo ao PT, entre 2013 e 2016, como “organização criminosa”, narrativa criada pela Rede Globo e depois assumida pela própria “lava a jato”, desnudando seu conluio midiático e elitista, é o principal elemento da conjuntura política atual.
Assim, além da criminalização da política e das lideranças populares, procurou-se criminalizar, também, a própria noção de “igualdade” como valor em si.
É que o PT, com todos os seus defeitos, foi a única verdadeira novidade da política brasileira nesses últimos cem anos.
Um partido que nasceu, em grande medida, de baixo para cima, uma espécie de confederação de movimentos sociais e associações de trabalhadores do campo e da cidade, e que procurou assegurar uma pequena parte da riqueza social e do orçamento público também para a maioria mais carente.
Ao criminalizar apenas o PT – enquanto nos outros partidos se “fulaniza” a corrupção – a mídia e a farsa da “lava jato” conseguiram rebaixar a própria demanda por igualdade, que o PT simbolizava para as classes populares.
Para onde vão o ressentimento e a raiva que os excluídos sentem pela exclusão injusta?
Sem expressão racional e política possível, a raiva e o ressentimento popular se transformam em massa informe de anseios, medos e desejos irracionais à procura de expressão.
Esse é o verdadeiro pano de fundo para as eleições de 2018.
Jair Bolsonaro como ameaça real só é compreensível pela ação conjunta do conluio grande mídia/Rede Globo e Lava Jato.
Por sua vez, a imunidade parcial de Lula é reflexo da inteligência prática das classes populares, que percebem a política como jogo dos ricos e corruptos, e querem saber unicamente o que sobra para eles no final.
E foi Lula quem entregou algo a quem nunca teve nada.
Apesar do sucesso pragmático inicial, o golpe perde legitimação a cada dia.
Seu planejamento míope e de curto prazo cobra agora alto preço dos que sujaram a mão pela elite do saque: a imprensa venal que arriscou seu capital de confiança; a casta jurídica que acobertou a Lava Jato e destruiu a segurança jurídica; e a política tradicional, que perdeu qualquer legitimidade.
Articuladores tão medíocres fizeram com que, pela primeira vez nestes cem anos de domínio material e simbólico da elite do saque, as entranhas do país real estejam à mostra como nunca dantes.
Tudo que era sólido se desfez no ar.
Todas as ideias que colonizavam a Direita e a Esquerda também.
As oportunidades abertas pelo fracasso na legitimação do golpe são revolucionárias.
Elas podem, efetivamente, permitir expor a crueldade do domínio de uma elite mesquinha e de seus prepostos hipócritas na mídia e no aparelho de Estado.
Abre-se a possibilidade objetiva de um processo de aprendizado histórico inédito no Brasil.
O problema real da oposição de “Esquerda” é que ela foi criada neste mesmo jogo e, ainda pior, nas mesmas ideias.
A Esquerda é tão miopemente moralista quanto a Direita.
Também não possui ideias próprias acerca do funcionamento da sociedade nem do Estado.
Daí ter perdido a narrativa da ascensão social, que ela mesma produziu, para as igrejas evangélicas.
Daí ter aparelhado e dado força às instituições de Estado que, depois, a perseguiram com sanha assassina.
Como em toda crise radical temos agora em 2018 tanto a possibilidade do caos quanto a oportunidade do novo.
O discurso da Esquerda não pode ser o da volta ao passado, mas o do aprendizado de um novo futuro.
O desafio é difícil mas incontornável.
*Sociólogo, foi presidente do IPEA e hoje dirige a Escola do Tribunal de Contas do Município de São Paulo
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