Marcelo Zero: Sonegação, evasão de divisas e juros estratosféricos desviam muito mais do que a corrupção política
Os Mitos Sobre a Corrupção e as Eleições
por Marcelo Zero, via whatsapp
O nosso país já teve muitos intérpretes, de Gilberto Freyre a Florestan Fernandes, passando por Sérgio Buarque de Hollanda, Raimundo Faoro, Caio Prado Júnior e Celso Furtado, entre vários outros.
Todos eles interpretaram o Brasil a partir de vários fatores estruturais de natureza diversa: econômica, social, política, histórica, cultural etc.
Entretanto, há também a ubíqua e superficial “interpretação moralista do Brasil”, que intenta “explicar” os problemas da nação, não com fundamento em fatores estruturais e históricos da nossa formação, mas com base em supostas deficiências éticas e morais e na predominância da corrupção.
Muito ao gosto das classes médias tradicionais e conservadoras, essa “interpretação” do país, não é, evidentemente, algo novo. Na realidade, ela sempre esteve presente em embates políticos no Brasil contemporâneo.
Com efeito, a luta contra governos mais progressistas sempre foi feita sob a égide do “combate à corrupção”.
Foi assim no embate contra Getúlio, cujo suicídio, impulsionado pelo udenismo, acabou por levar ao poder Jânio Quadros, o qual, com sua vassoura moralizadora, além de não ter dado nenhuma resposta ao problema da corrupção, abriu caminho para a aventura autoritária do golpe de 1964, realizado também sob o manto moralizador do combate aos corruptos e aos comunistas.
Mais recentemente, a introdução das políticas neoliberais no Brasil foi legitimada pela “caça aos marajás” e aos “corruptos”.
Ultimamente, predomina na mídia conservadora e na oposição, uma “nova” versão dessa interpretação, o neoudenismo.
Tal como as antigas versões, o neoudenismo não explica realmente nada, apenas vocifera contra a impunidade, sem se debruçar sobre as causas concretas e estruturais dos problemas do país e da própria corrupção.
Obviamente, essas causas não se relacionam tanto com a suposta impunidade, que vem sendo combatida com o crescente fortalecimento das instituições independentes de controle e a promoção da transparência, mas sim com a privatização do Estado brasileiro e com a exclusão econômica, social e política de vastas parcelas da população.
Mas embora o neoudenismo não explique nada e, portanto, não tenha nada de concreto e racional a propor, ele serviu, como no passado, para reiterar ataques aos governos progressistas do PT e, de forma mais ampla e profunda, para criminalizar a atividade política, judicializar a política e extinguir a soberania popular embasada no voto.
A direita brasileira, órfã do neoliberalismo fracassado, não tem nenhum discurso propositivo viável, para além do regresso do paleoliberalismo, e se dedica desesperadamente à exploração demagógica dos “escândalos” seletivos amplificados pela moral de ocasião.
Ele também serve para criar alguns mitos, que se tornaram praticamente “senso comum” na mídia conservadora e em vastos setores da população, especialmente entre os setores mais conservadores das classes médias.
Tais mitos alimentam uma visão profundamente distorcida do processo político recente e da própria sociedade brasileira. Daí a importância de desmascará-los.
1- Nunca houve tanta Corrupção como nos Governos do PT
Na realidade, é o contrário. Como bem afirmou o empresário tucano Ricardo Semler, em seu famoso artigo publicado na Folha de São Paulo, “nunca se roubou tão pouco”.
Com efeito, uma análise fria do período histórico recente do Brasil, elaborada sem uma contaminação com a histeria neoudenista, demonstra que os governos Lula e Dilma foram os que mais contribuíram para o combate à corrupção, ao atacar as suas causas e os fatores que a exacerbam.
Em primeiro lugar, tais governos fortaleceram extraordinariamente as instituições de controle da administração estatal e promoveram intensamente a transparência da gestão pública.
As operações especiais da polícia federal passaram de ao redor de 6 ao ano, nos governos do PSDB, para cerca de 250 ao ano, nos governos do PT. Nas duas gestões de FHC, tais operações somaram somente 48. Nas gestões Lula e Dilma, tais operações especiais já ascendem a 2.226.
Fonte: PF (Relatórios 1995-2013); gráfico elaborado pelo autor do artigo
A Controladoria Geral da República, motivo de chacota pública no governo anterior ao de Lula, tornou-se uma eficiente instituição que fiscaliza com rigor as verbas federais destinadas aos municípios.
As procuradorias e o Ministério Público foram igualmente fortalecidos e, hoje, desempenham suas funções com independência e desenvoltura.
Extinguiu-se a triste figura do “engavetador-geral”, com a escolha de procuradores independentes, indicados pelo corpo técnico das instituições.
O mesmo aconteceu no âmbito da Polícia Federal, que passou a ser dirigida por delegados sem vínculo político com o governo, como aconteceu nos tempos do PSDB.
O notável fortalecimento do Judiciário, ocorrido em período recente, também contribuiu para que os ilícitos fossem apurados com maior rigor e celeridade.
De essencial importância foi a aprovação, no período dos governos do PT, de leis fundamentais para o combate à corrupção, como a Lei das Organizações Criminosas.
Esta última permite, agora, que os corruptores, que antes eram ignorados nas investigações, sejam também processados e punidos, como está se vendo na chamada Operação Lava-Jato.
Ao mesmo tempo, com a criação do Portal da Transparência, a Lei de Acesso à Informação e várias outras medidas semelhantes, a administração pública federal tornou-se muito mais receptiva ao “detergente da luz do sol”, para usar a expressão famosa do juiz Louis Brandeis.
A sociedade civil atenta e informada exercerá sempre o melhor controle sobre o Estado.
Observe-se que esse comprometimento com o combate à corrupção e com a transparência na administração pública se estende também ao campo internacional.
O Brasil é um dos membros fundadores da Open Government Partnership, iniciativa internacional destinada a promover as boas práticas administrativas e programas e projetos que visam aumentar a transparência dos governos e submetê-los a um maior controle da sociedade.
Em segundo lugar, os governos de Lula e Dilma iniciaram um processo de “desprivatização” do Estado, direcionando fortemente as políticas públicas para o combate à exclusão econômica e social da maioria da população.
Concomitantemente, geraram também um processo lento, mas seguro, de construção e fortalecimento de cidadania, que tende a colocar o aparelho estatal sob a égide e controle de um verdadeiro interesse público, e não mais sob o tacão de alguns interesses privados dos grupos secularmente dominantes.
De fato, os governos Lula e Dilma iniciaram uma verdadeira revolução social no Brasil, retirando cerca de 36 milhões de pessoas da pobreza extrema e propiciando a ascensão à classe média, ou à classe trabalhadora, a cerca de 42 milhões de cidadãos brasileiros.
Essa melhoria substancial das condições de vida da população antes desassistida, inclusive no que tange às oportunidades educacionais, também tende, de forma indireta, a arrefecer a ocorrência do fenômeno da corrupção no Brasil.
O país tem hoje uma cidadania mais crítica e reivindicadora, que é o fundamento último de qualquer ação de controle efetivo do Estado.
Os programas sociais e as outras medidas de combate às desigualdades e à pobreza, ao contrário do que se disse nos últimos anos, fizeram emergir cidadãos mais atuantes e conscientes de seus direitos.
Observe-se que política nacional de participação social do PT, embora tímida, vinha abrindo as portas do Estado brasileiro aos setores populares, portas antes acessíveis apenas aos representantes do poder econômico e a grupos fortes e articulados.
Ademais, os governos do PT robusteceram o Estado e suas carreiras públicas.
A Convenção da ONU contra Corrupção considera o fortalecimento do funcionalismo público, inclusive mediante o pagamento de salários adequados, como uma das principais medidas preventivas contra a corrupção.
Evidentemente, esse amplo leque de programas e ações contra a corrupção e os desvios aumentou substancialmente as denúncias, fundamentadas ou não, de casos de corrupção, o que pôde ocasionar a falsa impressão de que a corrupção havia crescido.
A mídia conservadora, que confessadamente atua como um partido político de direita, tendia a reforçar essa falsa impressão, muitas vezes exagerando o escopo das denúncias e, por vezes, apresentando simples suspeitas, algumas sem nenhum fundamento, como provas irrefutáveis de culpabilidade.
Assim, o Brasil, nos governos do PT, não viveu uma crise de corrupção. Viveu, isto sim, a crise do fim de sua histórica impunidade. O que antes era varrido para debaixo do tapete, aparecia e era investigado a sério, mesmo com todas as distorções criadas por juízes e procuradores partidarizados.
Porém, a luta efetiva contra a corrupção, um mal histórico do Brasil e de muitos outros países, está apenas começando.
É necessário avançar muito mais. É preciso, sobretudo, transformar a revolução social ocorrida nos governos do PT numa revolução política.
Assim sendo, o próximo e essencial passo é uma Reforma Política profunda.
Com efeito, tal reforma é fundamental para limitar a influência avassaladora do poder econômico sobre o sistema de representação e o aparelho do Estado.
Ela é essencial para colocar as instituições e políticas públicas a serviço do cidadão comum e dos setores populares e, dessa forma, desatar, em definitivo, as amarras políticas ao nosso desenvolvimento ditadas pelo presidencialismo de coalizão, a sobre representação de interesses dos grandes grupos econômicos e tantas outras mazelas do Estado brasileiro.
2- A Corrupção é o maior Problema do Brasil
Não é. Ao contrário do que apregoa a ubíqua visão neoudenista e moralista, que tende a “explicar” todas as mazelas do país mediante a corrupção, a corrupção estrito senso está longe de ser nosso principal problema.
É claro que a corrupção, principalmente a corrupção dos agentes públicos, é um problema sério, que precisa ser combatido, como, de fato, está.
Mas há outros fenômenos que acarretam prejuízo bem maior ao erário público.
No Brasil, embora não existam estatísticas precisas sobre o assunto, pode-se argumentar com facilidade que sonegação, os juros estratosféricos e a evasão de divisas desviam muito mais que a corrupção política estrito senso.
Segundo o SINPROFAZ – Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, a sonegação desviou dos cofres públicos cerca de R$ 500 bilhões somente em 2014.
Brasileiros teriam mais de R$ 1 trilhão em paraísos fiscais, e a maior parte disso é, sem dúvida, dinheiro sonegado e evadido para lá ilegalmente. O caso do HSBC suíço é apenas a ponta de um gigantesco iceberg.
Os juros “desviam” outros R$ 200 bilhões. Por certo, esses juros altíssimos cobrados aos consumidores e às empresas causam um prejuízo enorme à economia produtiva de um modo geral.
Perto desse prejuízo colossal, o prejuízo da corrupção em senso estrito é bem menor.
Segundo o Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec) da FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo), os prejuízos econômicos da corrupção, inclusive os indiretos, como os relativos a cancelamentos de investimentos, chegariam a R$ 67 bilhões de reais por ano.
Fonte: Auditoria Cidadã, SINPROFAZ, FIESP; gráfico formulado pelo próprio autor deste artigo
Como se vê, há outros tipos de desvios que causam prejuízo bem maior aos recursos públicos e colocam obstáculos muito mais difíceis ao nosso desenvolvimento econômico e social que a corrupção estrito senso.
Os juros estratosféricos e as amortizações da dívida pública, a evasão de divisas e a ampla e ubíqua sonegação desviam um volume muito superior de dinheiro público.
Contudo, o discurso neoudenista coloca ênfase praticamente exclusiva na corrupção, especialmente na corrupção política, porque os seus alvos são o Estado e o governo, não o capital e o poder econômico. Nesse sentido, o neoudenismo é irmão ideológico do neoliberalismo.
Ele também busca a “demonização” e a “deslegitimação” do Estado, o enfraquecimento dos governos progressistas, além, e isso é o mais grave, o enfraquecimento da própria democracia.
Na mídia conservadora, ela também fonte expressiva de sonegação e evasão, os grandes “escândalos”, fabricados ou reais, se resumem, normalmente, à corrupção política, visando à condenação do aparelho estatal e, sobretudo, de políticos de esquerda.
No contexto do neoudenismo, a indignação moral é seletiva em mais de um sentido. Condenam-se os corruptos, mas os corruptores são, em geral, poupados, via delações premiadas extremamente suspeitas, e a caracterização do mercado como fonte de todas as virtudes.
Os políticos progressistas, especialmente os do PT, foram e são submetidos implacavelmente à ira dos supostos combatentes da corrupção, mas os políticos da direita, muitas vezes envolvidos nos mesmos processos, e com provas materiais abundantes, são curiosamente ignorados, especialmente os do PSDB.
O poder político e suas instituições (partidos, Senado, Câmara, Presidência da República etc.) são objeto de escárnio, mas o poder econômico, centrado no capital financeiro internacionalizado, que corrompe e distorce o poder político, é poupado de julgamentos éticos.
Contudo, independentemente do tipo de desvio e da indignação seletiva promovida pelo neoudenismo, é preciso considerar que o grande problema do Brasil, o elemento maior que nos define como sociedade e que mais limita nosso desenvolvimento, tange à nossa histórica desigualdade e à nossa pobreza.
Há países que crescem a taxas extraordinárias, mesmo com índices muito elevados de corrupção sistêmica, como a China, por exemplo.
Porém, não há país realmente desenvolvido no mundo com um alto grau de desigualdade e pobreza.
Um país continental como o Brasil, com uma população que já alcança mais de 200 milhões, tem de fundamentar seu desenvolvimento econômico num mercado interno amplo e dinâmico, o que implica a criação de uma volumosa classe média ou classe trabalhadora, e o combate à desigualdade extrema e à pobreza.
Assim sendo, não há melhor forma de promover o desenvolvimento econômico que promover também o desenvolvimento social e a ampliação das oportunidades para uma população antes excluída quase que totalmente dos benefícios do crescimento.
O grande problema estrutural brasileiro, nosso grande limitador, nunca foi, portanto, a corrupção, nem tampouco as outras formas de desvio dos recursos públicos, mas sim os limites que a sociedade e a economia brasileiras impunham ao crescimento econômico, social e político da maior parte da nossa população.
A desigualdade, a exclusão, pobreza, a falta de acesso à Educação, não a corrupção, é que estão na origem dos nossos principais entraves e problemas.
Por conseguinte, e num sentido mais profundo, a desigualdade, a exclusão e a pobreza se constituem na Grande Corrupção do Brasil.
Junto com o longo histórico da escravidão, elas se constituem no “pecado original” que determina ou condiciona todos os outros. Esse é o nosso primeiro e fundamental problema econômico, social, político e ético.
3- O Combate à Corrupção como Sucedâneo da Política e Escusa para a Destruição da Democracia e da Economia Nacional
Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na Europa, aqui a direita e a centro-direita tradicionais insuflaram, na crise instalada, um fascismo ascendente e apostaram tudo na ruptura democrática.
As nossas oligarquias econômicas e políticas, que nunca foram elites, no sentido que Pareto e Mosca emprestam ao termo, romperam com a democracia. Romperam com a democracia e romperam com o país. Essa é que é a triste verdade.
Insuflaram as forças mais retrógadas do Brasil para dar um golpe contra a presidenta honesta e colocar no poder a “turma da sangria”.
Saíram às ruas junto com Bolsonaro, MBL e outros grupos protofascistas, que pediam intervenção militar e condenavam a democracia e a política de um modo geral. Chocaram o ovo da serpente que injetaria veneno mortal em nossas instituições democráticas.
Em sua obsessão irracional de tirar o PT do poder a qualquer custo, abriram a caixa de Pandora do nosso fascismo tupiniquim, que agora floresce e os engole.
Na sua sanha em derrubar a presidenta eleita, destruíram a democracia e jogaram na lama o voto popular. Em sua tentativa de limar a credibilidade do PT, destruíram a legitimidade de todo o sistema de representação política.
Insuflaram também juízes e procuradores messiânicos contra PT e acabaram destruindo a construção pesada brasileira e assestaram golpe duríssimo contra a engenharia nacional.
Acabaram também com a nossa competitividade na exportação de serviços, setor estratégico que mais cresce no mundo.
Segundo estimativas da consultoria GO Associados, entre 2015 e 2019, a Operação Lava Jato deverá ser responsável por um impacto negativo de mais de três pontos percentuais do PIB.
O Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep) levantou um conjunto de informações que mostram o efeito devastador nos investimentos do país: em 2015 a força tarefa provocou a redução do equivalente a 2,0% do PIB em investimentos da Petrobrás e a diminuição do equivalente a 2,8% do PIB em investimentos das construtoras e empreiteiras.
Em 2016, calcula-se que a Operação tenha sido responsável pelo encolhimento de 5,0% dos investimentos em formação bruta de capital fixo no país, bem como tenha reduzido em mais de R$ 100 bilhões o faturamento das empresas arroladas na Lava Jato.
A indústria naval, uma das mais afetadas, chegou a empregar 82.472 mil trabalhadores em 2014, esse número caiu para 29.539 trabalhadores em 2018.
A justificativa oficial para o desinvestimento, a descapitalização e a alienação patrimonial que vêm ocorrendo na Petrobras está ancorada na ideia de que a Petrobras precisa se refazer dos prejuízos causados pela corrupção revelada pela Operação Lava Jato.
Contudo, a própria Petrobras anunciou, em 2014, que havia estimado os prejuízos com corrupção em apenas cerca de R$ 6,2 bilhões, muito menos que o prejuízo causado pela crise provocada pela Lava Jato no setor.
Observe-se que, nesse mesmo ano, o lucro bruto da empresa foi de R$ 80,4 bilhões, ou seja, os problemas com corrupção, ainda que envolvendo montantes significativos, atingiram apenas 7,7% do lucro da empresa.
No Brasil, o combate distorcido à corrupção causa prejuízos econômicos muito maiores que a corrupção em si, além de servir de biombo ideológico para a desnacionalização de vastos setores estratégicos.
Além dos prejuízos econômicos, erodiram a credibilidade da justiça e transformaram o próprio STF em biruta de aeroporto, que se move, de forma oportunista, conforme o vento político. Não há mais segurança jurídica no Brasil.
As instituições estão em frangalhos e o sistema de representação política tem hoje a legitimidade de um punguista de baixo meretrício.
Bolsonaro, uma aberração constrangedora, se firma como um candidato viável, superado unicamente por Lula e ameaçado, agora, por Fernando Haddad.
Alguns podem pensar que tudo isso foi um mero erro de cálculo. Erraram na dose autoritária e agora são obrigados a conviver com danos colaterais que podem ser consertados ou contidos.
Há, contudo, uma hipótese mais pessimista e realista: a ruptura com a democracia, com o voto popular e com o pacto da Constituição de 1988 foi planejada e veio para ficar.
É uma estratégia de longo prazo que intenta consolidar a agenda ultraneoliberal regressiva e uma “semidemocracia” que não permitirá mais a alternância de poder e quaisquer políticas que se desviem dos dogmas da ortodoxia econômica e de uma inserção internacional subalterna.
Assim, não se trata apenas de prender Lula. Trata-se de prender qualquer Lula.
As nossas instituições democráticas falharam porque não tinham um mínimo de solidez. E o ethos das nossas elites políticas sempre foi, no fundo, o de uma república bananeira.
Mediocridade não se improvisa. No nosso caso, temos uma prática de 500 anos. A redemocratização pós-ditadura nunca se completou. Não se sedimentou. Ficamos no meio do caminho de uma semidemocracia.
Agora, essa insuficiência histórica da nossa democracia se soma às novas exigências do capitalismo em crise, que exige limites substanciais à soberania popular.
É duro, mas temos de reconhecer: nas atuais condições do nosso capitalismo, novamente selvagem, a ruína da democracia e da política é funcional e necessária ao capitalismo financeiro internacionalizado. Não deve ser reconstruída. Tem de ser permanente.
Note-se que não se trata apenas de alijar a esquerda do cenário político, trata- se, sobretudo, de substituir os poderes que se fundam no voto popular por um poder que dele não dependa. Em 1964, foi a casta militar. Hoje é uma amálgama de castas burocráticas civis, aliada ideológica do poder econômico e midiático.
A tendência, caso esse cenário persista, é termos presidentes e parlamentos fracos, diretamente tutelados por juízes, procuradores, técnicos, economistas do mercado, empresários, barões da mídia, banqueiros, e porque não dizê-lo, grandes interesses estrangeiros.
A nossa brava classe média neoudenista com certeza aplaudiria um governo “técnico”, no qual políticos servissem apenas para carimbar decisões pré-estabelecidas pelos reais detentores do poder.
Teríamos, assim, a “política” ideal para o ultraneoliberalismo: a política despolitizada, que não produz alternativas, apenas reproduz o “consenso técnico” ditado por quem não tem voto e, portanto, qualquer compromisso com o povo.
Afinal, mesmo políticos de direita têm de ser sensíveis às pressões de eleitores. Mas, com a hegemonia do poder sem voto, as pressões a serem atendidas serão sempre basicamente as do mercado.
Remédios amargos poderão ser socados goela abaixo da população sem maiores constrangimentos por políticos fracos e descartáveis, provavelmente eleitos por um número muito pequeno de votos válidos.
Com o voto distrital, teríamos apenas grandes vereadores dedicados a defender interesses paroquiais.
A “grande política” estaria pré-decidida e seria intocável. Congelada em emendas constitucionais e cinzelada no granito dos grandes tratados internacionais de livre comércio.
Boa parte da nossa classe política, beócia incurável, ainda não percebeu o alçapão que para ela foi armado. Acha que é apenas Lula que ficará manietado.
Temer é, nessa quadra histórica, o político ideal: fraco, manipulável e indiferente à rejeição popular.
Outros poderão vir. Célebres nulidades, fascistas declarados, como Bolsonaro, os apolíticos da “nova política”, todos alinhados com o ethos excludente, colonial e escravagista do nosso grande Haiti.
Nessa equação política lúgubre falta, contudo, um pequeno detalhe: o povo brasileiro.
Restituir a soberania popular é, porém, apenas um primeiro e fundamental passo.
Será necessário também refundar as instituições democráticas, por meio de Assembleia Nacional Constituinte.
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