Para não esquecer: a história das Mães da Plaza de Mayo, na Argentina
Há 42 anos elas se dedicam a encontrar filhos e netos de militantes sequestrados pelo Estado e dados em adoção a seus algozes
17 de maio de 2019, 12h27
A cidade, Buenos Aires, Argentina. O dia, 30 de abril de 1977.
Catorze mães que se encontravam desesperadas com o desaparecimento de seus filhos e filhas decidiram reunir-se na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, sede do poder federal. A razão deste encontro: receber alguma resposta do governo que, naquele momento, estava a cargo do ditador Jorge Rafael Videla.
Como todo o país se encontrava em estado de sítio, era proibida a reunião de três ou mais pessoas ou mesmo permanecer parado em vias públicas. Para que se dispersassem, portanto, a polícia foi chamada e, aos gritos de “¡Circulen, señoras, circulen!”, tentavam desfazer o grupo.
Elas acataram as ordens e juntaram-se em duplas, e, de braços dados, começaram a circular pelo monumento da Plaza de Mayo, a Pirâmide de Mayo. O lenço branco em suas cabeças, então feito com tecido de fraldas de bebês, e que representavam seus filhos e filhas, passou a ser usado também como modo de reconhecerem-se entre elas. Não imaginavam que este acabaria por se converter em um símbolo mundial de luta e resistência.
Enquanto isso, para desacreditá-las em suas vigílias, o governo e seus simpatizantes começaram a chamá-las de Las Locas de Plaza de Mayo. Ao perceber que, cada vez mais, se multiplicavam os lenços, a ditadura de Videla decidiu reagir e infiltrou, entre um de seus grupos, um jovem loiro, de olhos azuis, que alegava ter um parente desaparecido. Chamado carinhosamente pelas Madres de “Loirinho” (“el Rubito”) por sua aparência angelical, o jovem, que se apresentou como Gustavo Niño, era nem mais nem menos que o oficial Alfredo Astiz, conhecido hoje como “O anjo da morte”.
Uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, Esther Ballestrino era uma paraguaia que se refugiara na Argentina em 1947, quando foi perseguida pela ditadura de Higinio Morínigo. Entre seus amigos mais próximos estava Jorge Mário Bergoglio, o futuro Papa Francisco que, anos mais tarde, diria às filhas dela: “Sua mãe me ensinou a pensar”.
Ateia e comunista, a amiga do futuro papa havia sofrido o desaparecimento de sua filha Ana María, razão que a levou a se juntar com as outras Madres. Meses depois do sequestro, Ana María foi encontrada viva. Esther, então, junto com suas três filhas, refugiou-se no Brasil e, mais tarde, na Suécia.
Para desacreditá-las em suas vigílias, a ditadura e seus simpatizantes começaram a chamá-las de Las Locas de Plaza de Mayo. Em 1977, três das mães fundadoras do grupo foram sequestradas, torturadas e atiradas vivas sobre o mar
Já segura com a família no exílio, porém, Esther não pôde manter-se de braços cruzados e retornou a Buenos Aires para acompanhar novamente as Madres. Ao revê-la, as amigas lhe disseram que seu dever já estava cumprido e que agora ela estaria em perigo em seu país e sugeriram que retornasse ao exílio, ao que Esther teria respondido: “Não, não vou sair daqui até que todos apareçam” .
Entre 8 e 10 de dezembro de 1977, as forças comandadas por Astiz sequestraram 12 pessoas, entre elas Esther Ballestrino, Azucena Villaflor e María Bianca de Ponce, também fundadoras das Madres. Foram torturadas por dez dias e depois colocadas em um avião e atiradas vivasno litoral de Santa Teresita e Mar del Tuyo. Em 2017, Astiz foi condenado à prisão perpétua pelos crimes que cometeu na ditadura e declarou: “Nunca vou pedir perdão”.
“Podemos assegurar-lhe que há milhares e milhares de lares sofrendo muita dor, muita angústia, muito desespero e tristeza porque não nos dizem onde estão nossos filhos, não sabemos nada sobre eles, nos tiraram a coisa mais preciosa que uma mãe pode ter, seu filho. Só queremos saber onde estão nossos filhos, vivos ou mortos! Angústia porque não sabemos se estão doentes, se estão com frio, se estão com fome, não sabemos nada, e desespero, senhor, porque não sabemos mais a quem recorrer. Imploramos a vocês, são a nossa última esperança! Por favor, nos ajude! Ajude-nos por favor! Vocês são a nossa última esperança”, exclamaria Marta Alconada diante do jornalista holandês Frits Jelle Barend, que havia chegado ao país para cobrir a Copa do Mundo de 1978. Marta morreu em 2007. Nunca pôde saber o que aconteceu com seu filho Domingo. Entretanto, graças a essa entrevista, o mundo foi capaz de descobrir o que estava acontecendo na Argentina dos desaparecidos.
Muitas Madres se foram com o passar do tempo, algumas poucas com o alento de, pelo menos, terem enterrado os restos mortais de seus filhos. Outras, apenas com a dor do silêncio. Até os dias de hoje, esse pacto de silêncio dos militares permanece.
Em 3 de novembro de 1995, nasceu o grupo H.I.J.O.S. com o objetivo de reivindicar a luta de pais e companheiros por seus desaparecidos, buscar a restituição de identidades de irmãos e familiares sequestrados pela ditadura e fazer justiça contra militares e civis que apoiaram a ditadura.
Das Madres, com o passar dos anos, surgiram as hoje conhecidas Abuelas de Plaza de Mayo, as Avós, que seguem na busca por seus netos, filhos e filhas de seus filhos desaparecidos. De lá para cá, a identidade de 128 netos pôde ser reconhecida. As Abuelas estimam em 500 os bebês roubados pela ditadura.
Comprei um lenço branco e fui para a praça. Sentei-me num banco e comecei a chorar. Uma Madre se aproximou de mim e disse 'Quem você perdeu?' 'Minha filha', respondi. 'Bem, aqui não se vem para chorar, aqui se vem para lutar'
A atual presidenta das Abuelas, Estela de Carlotto, juntou-se às Madres em abril de 1978, alguns meses depois do desaparecimento de sua filha Laura, que estava grávida de três meses. Em agosto daquele mesmo ano, os militares convocaram-na para lhe devolver o corpo da filha. Um dos poucos casos da época em que um membro da família recebeu os restos de um dos seus para ser enterrado.
Estela, no entanto, sabia que seu neto havia nascido em cativeiro: “Em 1985, já na democracia, fiz com que exumassem o corpo de minha filha e a equipe de antropologia forense examinou-o cuidadosamente para determinar com exatidão tudo o que os militares haviam negado. A deterioração de seus dentes provava seu longo sequestro; através da pélvis, soubemos que ela tinha tido um bebê e, por causa das balas que haviam se alojado em seu crânio, que havia sido executada por um tiro de Itaka a 30cm de distância e pelas costas… Assim, reuni provas para a Justiça e demonstrei lá fora, onde tínhamos causas abertas, o que havia acontecido aqui. E desta vez, sim, eu quis vê-la… Vi seus pequenos ossos, seu cabelo, eu a vi, a vi. E, finalmente, encerrei meu luto e nunca mais precisei ir ao cemitério novamente. Vou somente de vez em quando. ”
Quanto ao filho de Laura, Guido, como a mãe queria que o bebê se chamasse, Carlotto sabia que estaria por ali, perto, longe, não importava, pois para ela, nada nem ninguém iria impedi-la de procurar por ele. Entre tanta dor, muita luta e após 36 anos, um teste de DNA revelaria em 2014 que o neto 114 era o Guido de Estela. “É um caso especial para mim porque, além da felicidade de tê-lo encontrado, meu pedido de ‘eu não quero morrer sem abraçá-lo’ foi cumprido”.
Quem deu a notícia a Guido de que ele era filho de desaparecidos foi sua tia Claudia, que trabalha na CONADI (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade). “Tenho que lhe dizer que os resultados são positivos e que você é o filho de Laura Carlotto e Walmir Óscar Montoya, meu sobrinho”.
As histórias são muitas. Impossível se esquecer de María Isabel Chorobik de Mariani, conhecida como Chicha, que morreu em agosto do ano passado aos 94 anos. Também fundadora das Madres, Chicha teve seu filho assassinado, assim como sua nora. Sua neta, Clara Anahí, tinha 3 meses de idade na época do sequestro. Ela, porém, não contou com a mesma sorte de Estela. Chicha partiu sem a ter encontrado. Até hoje, seguem buscando por Clara.
Só queremos saber onde estão nossos filhos, vivos ou mortos! Angústia porque não sabemos se estão doentes, se estão com frio, se estão com fome, não sabemos nada, e desespero, senhor, porque não sabemos mais a quem recorrer. Imploramos a vocês, são a nossa última esperança! Por favor, nos ajude!
Mercedes Colás de Meroño, com 94 anos, é a vice-presidente das Madres de Plaza de Mayo. Em 5 de janeiro de 1978, sua filha Alicia foi sequestrada. “Porota”, como a chamam, decidiu juntar-se às Madres. “Comprei um lenço branco e fui para a praça. Sentei-me num banco e comecei a chorar. Uma Madre se aproximou de mim e disse ‘Quem você perdeu?’ ‘Minha filha’, respondi. ‘Bem, aqui não se vem para chorar, aqui se vem para lutar’”. Alicia ainda está desaparecida e Mercedes continua marchando.
“Marchamos na Plaza de Mayo. Ali nos reunimos com nossos filhos, ali nos sentimos vivas. Desde o primeiro momento nós, Madres, sem sabermos, estávamos educando para a paz. Estávamos caminhando em uma Praça enfrentando a ditadura, fazendo um grande esforço para não ficarmos em uma cama chorando. Todas as manhãs, nos perguntávamos: o que vamos fazer? Todas as manhãs sem nossos filhos, todas as manhãs acordávamos e perdíamos a cada dia as esperanças de encontrá-los. Quando nos demos conta de que eles não voltariam, tomamos a decisão de não mais deixar a Plaza. Tomamos a decisão de lutar até o último dia de nossas vidas e também entendemos que a luta individual não fazia sentido, que deveríamos assumir a responsabilidade de socializar a maternidade, fazendo de nós mães de todos.
Palavras de Hebe de Bonafini, presidenta das Madres, que em 4 de dezembro do ano passado fez 90 anos. Em 2001, Hebe e as mães foram reprimidas pela polícia, quando elas saíram para defender as pessoas no massacre brutal que tirou a vida de 39 pessoas.
Em 8 de fevereiro de 1977, o filho mais velho de Hebe, Jorge Omar, foi sequestrado em La Plata e, em 6 de dezembro, sequestraram seu outro filho, Raúl Alfredo. Eles nunca apareceram. Hebe é aquela que mais duramente critica o atual governo argentino. Lembro-me de uma frase carinhosa dela para o presidente: “Eu disse isso antes e vou dizer de novo: Macri é um digníssimo filho de mil putas”.
Com o passar dos anos, criaram-se subdivisões entre elas. Em 1986, foi criada a Asociación Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora. Uma de suas representantes é Nora Cortiñas, ou Norita, como chamam essa mulher gigante de apenas um metro e meio. Seu filho, Carlos Gustavo Cortiñas, membro do Partido Peronista na Villa 31, foi sequestrado em sua casa em 15 de abril de 1977, na presença de sua esposa e de seu filho de 2 anos. Nunca se soube para onde o levaram ou o que fizeram com Carlos.
Em 13 de agosto de 1984, o general genocida Luciano Benjamin Menéndez foi convidado para um programa de televisão. Nora foi até lá e chamou-o de “covarde e assassino”. Menéndez desembanhou uma faca em uma tentativa vã de apunhalá-la. Uma imagem que permanecerá para a história. Segundo dizem, Menéndez não se incomodou por haver sido chamado de assassino, mas sim de covarde, como bem está bem representado na foto.
Em 22 de março passado, Norita completou 89 anos e não há outro lugar para ela que não seja nas ruas. Está presente em cada manifestação, em cada marcha e em todo grito que represente a defesa dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo. Onde quer que vá, carrega consigo a foto do filho, dentro e fora do peito.
Foram mais de 2000 marchas em 42 anos e, toda quinta-feira, estarão novamente marchando na Plaza de Mayo porque, para essas mulheres, baixar os braços ou desistir da luta nunca foi uma opção. “Quiséramos nós que não existissem as ‘Madres de Plaza de Mayo’ ou seus ‘pañuelos blancos’. Ninguém escolheu ser uma, ao contrário, mas esse foi nosso destino”, disse Taty Almeida, uma referência entre as Madres, hoje a seus 88 anos de idade. Seu filho Alejandro, de 20 anos, desapareceu em 17 de junho de 1975.
No dia 24 de março, quando se comemora o Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia na Argentina, para não esquecer o golpe de 1976 e o terrorismo de Estado que levou a 30 mil desaparecidos em todo o país, elas estavam novamente presentes. Em abril, foi identificada na Espanha a neta número 129, filha dos militantes de esquerda Carlos Solsona e Norma Síntora, que estava grávida de nove meses quando foi sequestrada pela ditadura. Ela nunca foi encontrada. Aos 70 anos, Carlos, que nem sabia se o bebê era menino ou menina, se torna pai de uma mulher de 42 com quem foi impedido de conviver. “Ninguém tem ideia das milhares de noites que passei sem dormir esperando este momento”, disse.
Fico com a frase de Estela de Carlotto sobre sua luta e a passagem do tempo: “Às vezes eu digo, para ilustrar o quanto temos andado pelo mundo, que vamos continuar andando enquanto tivermos mobilidade. Por isso usamos bengala, para que nunca nos ajoelhemos” .
Aprendamos.
Tradução de Elisabete Bustamante
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