sábado, 25 de junho de 2022

Bozzo apela para o moralismo.

 

Sábado, 25 de junho de 2022Bolsonaro apela para o moralismo

Foi o que restou para se esquivar do escândalo do MEC.

Na segunda-feira passada, publicamos – em parceria com o ótimo portal Catarinas – uma reportagem sobre os inacreditáveis procedimentos de um hospital público, uma juíza e uma promotora que negaram a uma criança de 10 anos o direito a um aborto legal para interromper uma gravidez que é fruto de um estupro.Como você deve ter visto, a reportagem teve uma imensa repercussão – o fato chegou a ser mencionado em jornais dos EUA e da Inglaterra – e, felizmente, fez com que a lei fosse cumprida e a criança tivesse finalmente garantido o seu direito.Dois dias após a publicação da reportagem, o país amanheceu com a notícia de que o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, havia sido preso preventivamente pela Polícia Federal. Tratava-se de um desdobramento da investigação sobre o caso que ficou conhecido como o "gabinete paralelo do MEC": a suspeita de que dois pastores evangélicos, Arilton Moura e Gilmar Santos, atuavam como intermediadores na liberação de dinheiro público para prefeituras. Os dois também foram presos pela PF.O caso é gravíssimo e foi revelado por uma série de reportagens do Estadão em março. Sem terem qualquer cargo público, os pastores recebiam prefeitos ligados ao Centrão no MEC, e em seguida o governo fazia pagamentos ou empenhos (reserva de recursos públicos no orçamento) de quase R$ 10 milhões para obras de creches, escolas, quadras ou compra de equipamentos nas cidades deles. Em troca, havia pedidos de propina –  inclusive em barras de ouro. Em um áudio publicado pela Folha, Milton Ribeiro diz o seguinte: "A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar. Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar". A crise causada pelas reportagens levou no fim de março ao pedido de demissão do ministro, por quem Bolsonaro disse que colocaria "a cara no fogo".A investigação que culminou na prisão do ex-ministro e dos pastores amigos de Bolsonaro fragiliza o discurso mentiroso do presidente de extrema direita de que não há corrupção em seu governo. Além disso, o Ministério Público Federal suspeita que Bolsonaro tenha interferido nas investigações da Polícia Federal. Segundo reportagem do UOL, a suspeita consta na manifestação em que o procurador Anselmo Henrique Cordeiro Lopes pede que parte das investigações fique subordinada ao Supremo Tribunal Federal. É uma suspeita corroborada pelo próprio delegado da Polícia Federal responsável pela prisão preventiva de Milton Ribeiro. Segundo a Folha, Bruno Calandrini disse em mensagem enviada a colegas da PF que o ex-ministro não foi transferido para Brasília após ser preso em Santos, onde mora, por "decisão superior". Afirmou, ainda, não ter autonomia para conduzir o inquérito como deveria. Para coroar o cenário, o ex-ministro da Educação disse, em conversa telefônica gravada, que Bolsonaro o avisou de que iria ser alvo de operação policial.Ou seja – as suspeitas de corrupção no MEC são graves, e as de que Bolsonaro interferiu para abafar as investigações, ainda mais. É por isso que, desde que a prisão do homem por quem poria a cara no fogo, Bolsonaro e seu exército decidiram falar do caso da menina estuprada e impedida de fazer um aborto. A tática é manjada, mas segue eficiente, a tal ponto que foi amplificada pela principal coluna de política de um dos jornalões brasileiros, que no final da tarde da quarta-feira, dia em que Milton Ribeiro foi em cana, manchetou o seguinte: "Eduardo Bolsonaro elogia juíza que quis manter gravidez de garota estuprada".Era a senha para que a máquina de fake news do bolsonarismo entrasse em ação para tentar desviar a atenção do país do escândalo do MEC. Nas horas seguintes, influenciadores da esgotosfera bolsonarista passaram a atacar o Intercept, o portal Catarinas, a advogada da menina e até mesmo a negar o fato de que uma relação sexual com uma criança de dez anos seja um estupro. Na quinta, horas após uma nova pesquisa do Datafolha* indicar a possibilidade de que Luiz Inácio Lula da Silva seja eleito presidente em primeiro turno, o próprio Jair Bolsonaro resolveu entrar em campo: "Solicitei ao MJ e ao MMFDH que apurem os abusos cometidos pelos envolvidos nesse processo que causou a morte de um bebê saudável com 7 meses de gestação, da violação do sigilo de justiça e do total desprezo pelas leis e princípios éticos, à exposição de uma menina de 11 anos", tuitou, às 23h13.Após o tuíte de Bolsonaro, o Palácio do Planalto orientou ministros e assessores mais alinhados ideologicamente ao presidente a partirem para o confronto ideológico. A determinação é para que se diga, inclusive, que o aborto deve ser chamado de assassinato – o que simplesmente não é verdade, pelo Código Penal.Enquanto eu escrevo este texto, os ataques seguem a todo vapor nas redes sociais, amplificados por uma infeliz coincidência – a revisão, pela suprema corte dos Estados Unidos, da decisão que garantia às mulheres do país o direito de decidir realizarem abortos com segurança.O moralismo rasteiro (e hipócrita) é uma arma usada com maestria pela extrema direita contemporânea. Bolsonaro, vamos lembrar, disse, em uma entrevista em 2000, o seguinte, sobre o aborto: "Tem que ser uma decisão do casal", e admitiu ter pensado em fazer um quando a então esposa Ana Cristina Valle esperava o quarto filho dele, Jair Renan – a decisão de manter a gravidez, segundo o capitão reformado, foi dela. Mas, em 2018, a campanha dele usou fartamente mentiras sobre aborto, o inventado kit gay do Ministério da Educação de Fernando Haddad, a mamadeira de piroca, para atrair eleitores conservadores. Ao lado do liberalismo de segunda divisão de Paulo Guedes e do combate à corrupção corrompido de Sergio Moro e da Lava Jato, a agenda moralista foi um dos pilares da eleição de Bolsonaro em 2018. Guedes se foi sem nunca ter sido: hoje, ecoa José Sarney ao pedir o congelamento de preços em supermercados. Moro desmoronou com as revelações da Vaza Jato, e sufocar o Ministério Público e a Polícia Federal que apoiaram majoritariamente sua eleição foi a saída que Bolsonaro encontrou para tentar vender a lorota de que seu governo é livre de corrupção. Restou o moralismo. Nossa tarefa, como jornalistas, é ignorar as tentativas de desviar o foco e insistir nas perguntas que cabe ao presidente responder neste momento. Aliás, falando nisso: Jair Bolsonaro, por que você mandou o ministro Milton Ribeiro atender aos pleitos do pastor Gilmar Santos no MEC? Como você ficou sabendo que o ex-ministro seria alvo da PF? E por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?*O Datafolha ouviu 2.556 eleitores em 181 cidades nos dias 22 e 23 de junho. A margem de erro da pesquisa, contratada pela Folha e registrada no Tribunal Superior Eleitoral sob o número 09088/2022, é de dois pontos percentuais para mais ou menos.

Rafael Moro MartinsEditor Contribuinte Sênior

Nenhum comentário: