terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Esquerda.net: Como as médicas da Idade Média foram votadas ao esquecimento.

 


Como as médicas da Idade Média foram votadas ao esquecimento

O desaparecimento gradual das mulheres que praticavam medicina no período medieval pode ser ligado às proibições impostas pela Igreja. Mas também a uma profissionalização na qual a Universidade de Paris desempenhou papel central, bem como a sociedades e guildas controladas por homens. Por Isabella Gagliardi.
Pormenor de uma ilustração sobre a Escola de Salerno no Cânone de Avicena.
Pormenor de uma ilustração sobre a Escola de Salerno no Cânone de Avicena.

A figura das bruxas há muito que tem lançado um feitiço sobre artistas e cientistas que as têm associado a mulheres com um conhecimento invulgar da natureza(link is external) ou uma sexualidade voraz(link is external). De facto, a maior parte das “bruxas(link is external)” perseguidas na Europa a partir do século XV eram na realidade parteiras e curandeiras, herdeiras de uma longa tradição de exercício laico da medicina, mais pragmático do que teórico.

Mas para contar a história(link is external) destas peritas (antes da sua ostracização da prática), os investigadores enfrentam vários obstáculos: as informações são principalmente de fontes escassas, fragmentos díspares de fontes biográficas mas também económicas, judiciais, administrativas. Por vezes apenas subsistem nomes ou apelidos, como os das mulheres inscritas na Ars Medicina de Florença(link is external) (um tratado médico) ou o da boticária religiosa Giovanna Ginori, cujo nome pode ser encontrado nos registos fiscais da farmácia na qual trabalhava nos anos 1560. Estas árduas investigações têm permitido, porém, compreender melhor como as mulheres foram sendo, pouco a pouco, excluídas da medicina, da sua prática e dos seus estudos, por um sistema institucional e hierárquico totalmente dominado por homens.

A Schola Salernitana

O nosso primeiro ponto de partida nesta história é a célebre Escola de Medicina de Salerno, a Schola Salernitana(link is external), ativa nos séculos IX e X início da Idade Média. Esta contou nas suas fileiras com várias mulheres médicas: Trota(link is external) (ou Trotula), pioneira da ginecologia e cirurgiã (século XIII), Costanza Calenda, cirurgiã e especialista dos olhos (século XV), Abella di Castellomata (século XIV), ou Rebecca Guarna(link is external) (século XIV). As informações acerca destas mulheres são também muito escassas e estão a ser analisadas pelos investigadores: é complicado separar os dados reais da lenda. As acima mencionadas são, porém, algumas das figuras melhor documentadas(link is external). Também ativas durante a Idade Media, o grupo das mulieres salernitanae deixou igualmente uma marca.

Ao contrário das mulheres médicas da escola, as mulieres trabalhavam com métodos mais empíricos, submetendo em seguida os seus remédios aos doutores da escola que decidiam se os aceitariam ou não. Provas disto podem ser encontradas no manual Practica Brevis(link is external), escrito por Giovanni Plateario(link is external), e nos escritos de Bernard de Gordon(link is external). Localizada a sul de Nápoles, Salerno era uma cidade na qual académicos cristãos, judeus e muçulmanos se juntavam, o que tornava a escola um cadinho excecional de encontros científicos e influências.

As mulheres acusadas da prática de medicina ilegal

Contudo, a partir de 1220, deixou de ser possível praticar medicina sem um diploma da Universidade de Paris(link is external) ou a aprovação dos seus médicos e chanceler, o que marginalizou as médicas. O não cumprimento das novas instruções resultou na expulsão do campo, o que foi exatamente o que aconteceu a uma médica chamada Jacqueline Felice de Almania. De acordo com um documento de 1322 elaborado pela Universidade de Paris, ela estava a tratar pacientes sem qualquer conhecimento “real” da medicina (ou seja sem educação universitária). Foi expulsa e teve de pagar uma multa considerável. Os registos da disputa descrevem os exames médicos realizados por Jacqueline, salientando como ela tinha analisado urina, tomado o pulso dos pacientes, investigado os seus membros e tratado pacientes do sexo masculino. Esta é uma das raras provas que mencionam o facto das médicas também tratarem homens.

O julgamento da jovem médica decorreu numa época em que os praticantes de medicina sem graus universitários estavam a ser denunciados e condenados. Antes dela, tinha sido a vez de Clarice de Rouen, também banida da medicina por tratar homens, e depois foi a vez de várias outras médicas registadas como Jeanne, a Convertida de Saint-Médicis, Marguerite de Ypres e a judia Belota.

Em 1330, vários rabis de Paris foram também acusados de praticar ilegalmente medicina, junto com outros “curandeiros” que se apresentavam como peritos sem o serem, de acordo com as autoridades. Todos foram denunciados como fraudes, apesar de terem estado a desempenhar competentemente a sua atividade. Em 1325, o Papa João XXII tinha recebido um rápido apelo dos professores da Universidade de Paris na sequência do caso Clarice. Face a ele, escreveu ao bispo Stephen de Paris ordenando-lhe que proibisse a prática da medicina por mulheres sem conhecimento médico e por parteiras em Paris e arredores, alertando que essas mulheres estavam de facto a praticar feitiçaria.

A formalização dos estudos médicos

A proibição gradual das mulheres praticarem medicina coincidiu com a criação de um cânone académico formalizado na área. Isto marcou o início de um cuidadoso processo de veto pelas autoridades docentes e guildas que serviu para marginalizar ainda mais as médicas.

Contudo, isto não as eliminou completamente, uma vez que um número considerável de nomes pode ser encontrado só nos registos italianos. Estes incluem Monna Neccia, mencionada no registo fiscal Estimo(link is external) em 1359, e Monna Iacopa, que tratou vítimas da peste em 1374. Ambas eram de Florença, tal como eram as dez mulheres registadas entre 1320 e 1444 na guilda de mulheres da cidade, a Arte dei Medici e degli Speziali. No registo de Siena, na Toscânia, encontramos menções a Agnese e Mita que foram remuneradas pela cidade pelos seus serviços em 1390.

Ao mesmo tempo, tinha-se tornado muito perigoso para as mulheres praticarem medicina, particularmente devido às crescentes suspeitas de bruxaria.

Infelizmente, há poucos dados sobre estas mulheres em fontes oficiais, dado que elas trabalhavam numa altura em que a sociedade só permitia aos homens o acesso a posições mais elevadas. Apesar de tudo isto, o pano de fundo histórico que conseguimos descobrir aponta para a existência tanto de mulheres peritas que praticaram a arte da medicina quanto de médicas que estudaram a sua área, muitas vezes de modo não oficial, com o seu pai, irmão ou marido.

As médicas medievais na literatura

As fontes não-institucionais, como os textos literários, provaram ser extremamente valiosas nesta investigação. Boccaccio, por exemplo, menciona uma médica no Decameron. O narrador, Dioneo, conta a história de uma Gillette de Narbonne, médica dotada que ficou noiva do seu amado Bertrand de Roussillon como recompensa de curar o Rei de França de uma fístula no peito. A caracterização de Boccaccio é pacientemente consciente da desconfiança do monarca nela, tanto como mulher quanto como “donzela”. Ao dirigir-se ao rei ela diz: “Grande rei, não desprezes as minhas capacidades e experiência porque sou jovem e donzela, pois a minha profissão não é física nem me encarrego de administrá-la dependendo do meu próprio conhecimento; mas pela graciosa ajuda do Céu e algumas regras de observação hábil que aprendi com o reverendo Gerard de Narbonne, que foi meu digno pai e um médico de não pouca fama enquanto viveu”.

Boccaccio descreve esta médica com termos diretos e naturais. Isto talvez porque, contrariamente à crença corrente, estava a falar de uma situação bastante comum que devia ser reconhecida pelas pessoas que liam. As palavras de Gillette são uma indicação da realidade das mulheres que praticavam medicina na época: ela tinha aprendido a sua profissão com o pai(link is external).

Há também muita informação sobre mulheres judias que praticavam medicina sobretudo no sul da Itália e na Sicília, que tinham aprendido as artes médicas com a sua família.

A Universidade de Paris desempenhou um papel central no processo histórico de normalizar e institucionalizar a profissão médica. No seu artigo Women and Healthcare Practices in the Plea Register of the Parliament of Paris, 1364–1427(link is external), Geneviève Dumas sublinha a importância das fontes legais parisienses dos séculos XIV e XV que lembram(link is external) que as mulheres foram condenadas por prática ilegal da medicina ou da cirurgia. Dumas conta dois desses julgamentos nos seus escritos: um contra Perette la Pétone, uma cirurgiã, e outro contra Jeanne Pouquelin, barbeira (os barbeiros na altura tinham permissão para alguns atos cirúrgicos).

Com o estudo da medicina na Universidade de Paris a tornar-se a única educação médica válida na Europa e a Schola Salernitana a perder a sua influência, as mulheres foram gradualmente excluídas destas profissões.

O desaparecimento gradual das médicas no período medieval pode ser ligado às proibições impostas pela Igreja, assim como à progressiva profissionalização da área da medicina com a criação de instituições mais rigorosas como as universidades, as sociedades científicas e as guildas, todas fundadas e controladas por homens.

Na Europa, apenas em meados do século XIX as primeiras mulheres licenciadas por universidades puderam desempenhar a sua profissão(link is external). E até nessa altura continuaram a ter de enfrentar muitas críticas.


Isabella Gagliardi é professora de História do Cristianismo na Universidade Florença.

Texto publicado originalmente no The Conversation(link is external). Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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