terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Leandro Demori: Abacaxi mal descascado.

 


🍍 😵 Abacaxi mal descascado

Lula está disposto a encarar Facebook e Google?

Fabiane cortou os cabelos e os tingiu de ruivo.

Não poderia imaginar que aquilo decidiria seu destino. Saiu de casa e comprou bananas no mercado onde trabalhava sua irmã. Carregava uma Bíblia enquanto ia de bicicleta até o trampo do marido. Os dois se desencontraram.

Na volta para casa, Fabiane foi confundida na rua com uma mulher que estaria raptando crianças para a prática de rituais de bruxaria no Guarujá, em São Paulo. Fabiane, com seus cabelos cortados e tingidos, parecia vagamente com o retrato falado divulgado por uma página no Facebook com milhares de curtidas e comentários. A notícia, no entanto, era falsa.

A morte de Fabiane foi real: ela foi linchada, agredida por dezenas de pessoas, teve as mãos amarradas, foi arrastada na rua por quase duas horas até ser assassinada enquanto tentava dizer que não era a pessoa da imagem da internet.

Jaílson Alves das Neves, marido de Fabiane. Foto: Keiny Andrade/UOL.

Histórias como essa se repetem no mundo todo.

O caso de Fabiane Maria de Jesus, então com 33 anos (como Jesus crucificado) aconteceu em 2014. O Facebook não foi responsabilizado.

Recentemente, na Índia, um homem de 26 anos foi confundido com um suposto sequestrador de crianças exibido em um vídeo que também viralizou nas redes sociais. Foi espancado e morto. O vídeo era uma campanha institucional do Paquistão, uma propaganda de TV sobre menores abandonados nas ruas, mas rodou pelo Facebook como se a encenação fosse verdade, e como se o agressor fosse o jovem que acabaria sendo assassinado. Ele morreu por se parecer com o ator.

No México, outro falso caso de violência com crianças levou dois homens à morte. Eles foram queimados, também vítimas de notícias falsas viralizadas no Facebook e no WhatsApp – ambos aplicativos da empresa Meta, sediada nos Estados Unidos.

A mulher da internet

Cinco pessoas foram presas e condenadas no caso de Fabiane Maria de Jesus. O testemunho de três delas no dia do julgamento não deixa dúvidas sobre a motivação assassina dos posts no Facebook.

“O povo comentou que era a mulher da internet, que era da página Guarujá Alerta”; “Disseram que a mulher era a que tinha saído no Facebook, relacionada com magia negra”; “O povo dizia que a história da moça ser seqüestradora estava na internet”.

Os debates sobre a regulamentação das plataformas como Facebook, Google, Tik Tok e Twitter não se restringem, como podemos ver, à facilitação fraudulenta da eleição de Jair Bolsonaro no Brasil – bombada por notícias falsas desde a campanha de 2018.

Essas plataformas se viram livres por mais de uma década de terem que responder à altura por mudanças de regime no mundo todo, mentiras sobre fraudes eleitorais que levaram à violências, golpes dos mais diversos e – como vimos – até assassinatos de inocentes perpetuados pela gasolina ateada sobre o fogo que seu modelo de negócios atira em nossas vidas cotidianas.

E agora?

A discussão vem se tornando mais popular no Brasil com a eleição de Lula. Se a Bolsonaro e à extrema direita global interessa o tudo pode disfarçado de liberdade de expressão, ao governo petista podemos reputar a primeira tentativa séria de legislar sobre o mais poderoso lobby do mundo. Assim como você não pode perfurar um poço em busca de petróleo no jardim de sua casa, ou dirigir um carro estando embriagado, os negócios das conhecidas big techs precisa ser urgentemente regulamentado como qualquer setor da economia.

Pensem: elas sequer são obrigadas a dizer quantos usuários têm no Brasil

Na Europa, essa obrigação começou a valer somente este mês, graças a uma nova legislação. Se não há transparência mínima, imagine se poderemos pensar, um dia, em responsabilizar as plataformas pelo conteúdo criminoso que circula nelas, e com o qual – e isso é de EXTREMA IMPORTÂNCIA – elas fazem DINHEIRO. A audiência dos posts falsos que levaram ao assassinato de Fabiane ajudou o Facebook a vender publicidade. Essa é a conta macabra que temos que fazer. Não se trata de punir a qualquer custo, mas de saber quando e como punir.

Nos EUA, a Suprema Corte começou a debater essa responsabilidade

Os juízes decidirão se as plataformas ainda podem se apoiar em uma lei de 1996 – quando mal existia a Internet, muito menos as próprias redes sociais – para se proteger sobre o teor dos conteúdos postados diariamente em seus sites. Hoje, elas não podem ser tratadas como porta-vozes do que é publicado por terceiros. Pense: a mesma norma blindava as redes sociais inclusive de serem responsabilizadas pela circulação de pedofilia, o que só foi alterado em uma emenda de 2018.

O debate no Brasil está atrasado graças ao governo Bolsonaro, que freou as discussões por interesse próprio em alimentar seus trolls.

Mas de novo: e agora?

Qual é o projeto do governo Lula para a regulamentação das redes sociais? Qual a visão sobre o que é a regulação em si e como fazer na prática? Quais as definições dos conceitos mínimos (por exemplo, como se define “discurso de ódio”)? Não temos quase nenhuma informação pública sobre isso até agora. Preocupante, muito preocupante.

Nem mesmo a agenda de reuniões é transparente.

O que temos é um Projeto de Lei do Orlando Silva (PL 2630). Um bom projeto, o melhor documento que o Brasil já produziu, mas também ele com problemas. O Orlando vem enfrentando o maior lobby do mundo, e eu não espero que ele vença todas.

Um dos problemas, como bem apontou a Renata Mielli aqui (página 27) e que hoje a Natália Viana traz novamente à luz lá na newsletter da Agência Pública (assine): o projeto prevê que a remuneração ao conteúdo jornalístico feito pelas plataformas possa ser decidido em reuniões a portas fechadas. Adivinhem quem (a grande imprensa) vai ganhar com isso, e quem (os pequenos independentes) vai perder.

O governo precisa interferir nisso com urgência e criar algo parecido com o Fundo Setorial do Audiovisual, uma das experiências mais bem-sucedidas que temos no Brasil.

Em resumo: em vez do Facebook e do Google decidirem quanto pagar para cada veículo jornalístico (em jantares com os executivos das grandes empresas de jornalismo 🍖), o dinheiro que as plataformas fazem com o jornalismo produzido no Brasil deveria ir para um fundo e, dali, partir para o incentivo através de projetos submetidos e avaliados por uma comissão que envolva a sociedade civil. Estamos falando dos interesses do país X os interesses das mesmas famílias de sempre (Marinho, Frias, Saad etc). E eles estão quase vencendo, de novo.

A bancada do like quer passar a boiada

Enquanto quase nada sabemos sobre os caminhos que o governo pretende tomar, o MBL Kim Kataguiri já se adiantou e apresentou um projeto, que obviamente é um lixo. Mas apresentou, e vai contar com o lobby das empresas de tecnologia pra isso.

Há vários grupos de debate rolando desde o começo do governo, mas não sabemos QUAL terá a visão da legislação futura, e nem ideia de que visão é essa. Isso é de EXTREMA IMPORTÂNCIA e não pode ser feito de qualquer jeito por causa da comoção do 8 de janeiro.

Não se trata de QUANDO iremos regulamentar as plataformas, mas COMO. Tem grupo de trabalho na AGU, no MJ, no MDH, a Secom está debatendo isso, o STF também.Quem tem a visão da coisa?Esses grupos se conversam?Quem centraliza os debates e as propostas?Qual o prazo pra termos um projeto sólido?Quem vai apresentar?O Governo vai encarar a disputa com Lira e o lobby do like na Câmara ou vai decidir por Medida Provisória?Quem será ouvido nos dois casos?

O caso de Kim Kataguiri é exemplar

A quem ele serve quando se antecipa às discussões e joga na mesa um PL pra blindar as plataformas de todas as responsabilidades? Quem paga a conta do jantar do deputado?

A Bancada do Like já está anos-luz à frente nesse jogo (leia isso).

O “diálogo” com a indústria, porém, é mais profundo do que Canziani faz parecer – e não envolve apenas um interesse genuíno por diálogo, mas também o financiamento da bancada. Por trás da frente, está o Instituto Cidadania Digital, associação criada em novembro de 2019 para realizar “a interlocução entre o ecossistema digital e o Congresso através do assessoramento à Frente Parlamentar da Economia & Cidadania Digital”.

É exatamente o mesmo funcionamento da Frente Parlamentar de Agricultura, a influente bancada ruralista. Ela é assessorada por um instituto financiado por grandes empresas do agronegócio, o Instituto Pensar Agro, conhecido como IPA. Não apenas assessorada – mas também custeada. O instituto é o braço institucional do lobby: produz desde estudos pró-agrotóxicos a propagandas disfarçadas de reportagens em grandes jornais, como aquelas favoráveis ao Marco Temporal, que poderia acabar com a demarcação de terras indígenas no país.

Zzz…

A esquerda não está se engajando nessa cobrança por medo de pressionar o governo do PT. Sendo franco: isso está completamente errado e pode ter um preço alto.

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