terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Mar Mediterrâneo, um mar de sangue.

 


Mar Mediterrâneo, um mar de sangue

Foi para tentar entender como, mais uma vez, a Europa faz o impossível tornar-se possível e, ainda, normaliza as suas aberrações políticas, que fui para um navio que faz resgate de pessoas. Por Berenice Bento.
Foto publicada na página de Facebook do Sea-Eye.

Com gestos silenciosos, todos entram no refeitório. Parecia que os corpos ainda estavam a dormir. Aglomerávamo-nos na cozinha para preparar um café rápido, antes da reunião. A tripulação do navio era formada por 25 pessoas, entre voluntários e contratados. Sentávamo-nos ao redor de mesas e a reunião começava. Antes das 7 horas da manhã, iniciava-se o planeamento do dia. Pela escuridão da portinha, eu tentava adivinhar quando o sol iria nascer e desconcentrava-me dos encaminhamentos da reunião. Estávamos no Porto de Burriana, em Espanha, num navio que faz resgate de pessoas no Mar Mediterrâneo. O navio precisava de reparações estruturais para reiniciar o trabalho. Não havia tempo a perder. Cada dia a menos de resgate, mais vidas poderiam ser perdidas.

Acompanho, há muito tempo, com perplexidade, as informações que chegam sobre as mortes no Mar Mediterrâneo. Pessoas que tentam, em embarcações precárias, chegar à Europa. Muitas morrem, desaparecem no mar, transformando o Mediterrâneo na maior vala comum da contemporaneidade. Foi para tentar entender como, mais uma vez, a Europa faz o impossível tornar-se possível e, ainda, normaliza as suas aberrações políticas, que fui para um navio que faz resgate de pessoas e fiz trabalho voluntário como auxiliar de cozinha.

No auge da crise migratória, houve iniciativas de Estados europeus para a realização dos resgastes. Mas não demorou muito e alterou-se radicalmente a orientação política. Não apenas suspenderam os resgastes. As políticas de controlo da fronteira e de negação de entrada têm-se vindo a intensificar nos últimos anos. Na absoluta falta de políticas estatais voltadas para salvar as pessoas que estão no limiar da vida e da morte, iniciou-se uma intensa mobilização da sociedade civil europeia. São inúmeras Organizações Não Governamentais que fazem os resgastes. No Porto de Burriana, estavam os barcos dos coletivos Sea Punk, Sea Eye, Open Arms, Louise Michel e o SOS Humanity I, onde fiz o trabalho voluntário. Esse é apenas um dos muitos portos em que os navios param para fazer as reparações. O tempo que leva para fazê-las estará condicionado aos recursos para aquisição das peças e da mão de obra disponível. O Sea Punk trabalhava com uma equipa reduzida e a previsão para retornar aos resgastes não era certa. Em todos os portos, as bandeiras antifascistas estavam espalhadas em t-shirts, adesivos, e na coragem anarquista do Sea Punk, que trazia no seu mastro, como principal bandeira a da “AÇÃO ANTIFASCISTA”.

A perseguição às ONGs

Foi na cozinha do navio, entre alhos, cebolas e limpezas, que ouvi histórias e tentei encontrar respostas para questões que me angustiam: como é possível que o continente que inventou os Direitos Humanos continue a deixar morrer pessoas no mar e, em parcerias com a Líbia, provoque as mortes? Durante a escravidão, dizia-se que a Europa não tinha conhecimento das atrocidades cometidas nas colónias, mas, como aponta o historiador Conrad (no seu livro Tumbeiros), há relatos de que os navios que faziam o tráfico tinham um odor insuportável e inconfundível. Não era possível não identificá-los antes mesmo de atracarem nos portos e não conhecer os horrores que aconteciam na travessia e nas plantações nas colónias.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a civilizada Europa mostrou-se horrorizada com os genocídios cometidos nos campos de extermínio nazifascistas. Mas o que era aquele fumo escuro que cobria os céus das cidades? Ninguém desconfiou que estava a respirar restos mortais, que a morte entrava pelas narinas e alojava-se, não nos pulmões, mas nas almas? E agora? Estima-se que 85 mil pessoas perderam as suas vidas ou estão desaparecidas ao tentar atravessar o Mediterrâneo. Todos os dias, os jornais trazem notícias das mortes no Mediterrâneo. Não é por desconhecimento que as mortes acontecem. É uma política intencional que continua a aprimorar os seus métodos de gestão da produção da morte das pessoas negras no Mediterrâneo. O que se exige da Comunidade Europeia já está previsto em Leis Internacionais: caminho para Europa seguro e legal; respeito ao direito de asilo; receção das pessoas que procuram proteção na Europa.

Qual a diferença entre o que acontece no Mediterrâneo hoje, a escravatura e a Segunda Guerra Mundial? Tornou-se impossível manipular o argumento do “desconhecimento”. Se isso é verdade, ou seja, todos sabem o que está no Mediterrâneo, estamos diante de outra sensibilidade, em que nem o argumento do direito à vida, nem as leis internacionais que protegem e garantem o direito ao pedido de asilo, nem argumentos de ordem religiosa são suficientes para a produção da indignação coletiva. É como se estivéssemos diante da redução do nível de empatia. É isso que chamo de uma sensibilidade neofascista. Ou seja, o critério para se analisar a emergência do fascismo e as suas novas ressignificações não está na eleição de um candidato de extrema direita, mas na relação que os Estados têm com o Outro, o imigrante, o refugiado. Essa relação irá alterar-se de acordo com os fenotípicos raciais que o corpo do demandante de proteção porte. Assistimos à comoção europeia em relação aos ucranianos e o desprezo pelos pedidos de socorro das pessoas que são levadas a morrer no Mediterrâneo. Empatia seletiva às dores dos oprimidos é fascismo.

Fui encontrar fissuras no racismo europeu no trabalho de coletivos que se negam a serem cúmplices com a política de promoção da morte e por isso pagam preços. A Itália aprovou um decreto que criminaliza as ONG que fazem resgastes. O horror dos Estados com a solidariedade com e entre os oprimidos não é uma invenção “made in Italy”. Como não lembrar dos inúmeros decretos do Reino de Portugal, que criminalizava as pessoas livres que “acoitassem” (dessem proteção) às pessoas escravizadas fugitivas ao longo de toda a escravatura?

O início dos trabalhos de resgate pela sociedade civil europeia começou em 2014, mas foi com o lendário “Aquarius”, em 2016, que o trabalho se intensificou. Parece estranho falar de “lendário” para um período histórico tão curto. Foi esse navio, no entanto, que começou a resgatar grandes quantidades de pessoas. A perseguição oficial ao Aquarius foi implacável: acusação de tráfico de pessoas, navegar com sobrepeso, não autorização para desembarcar os sobreviventes. Entre 2016-2018, o Aquarius resgatou 29.523 pessoas. Hoje, o Aquarius já não existe.

Depois do resgate, é preciso a autorização para que se proceda ao desembarque dos sobreviventes da travessia. A demora nessa autorização leva à exaustão de todos os que estão no navio. Outra técnica de produção da exaustão é autorizar o desembarque num porto mais longe, o que pode exigir mais dias de viagem. Imaginem a situação: os sobreviventes, quando são resgatados, já estão no mar há dias. Até chegar aos portos da Itália (porque são os próximos da costa da Líbia), gasta-se mais dois ou três dias. As condições de instalação de um navio são limitadas e, muitas vezes, precárias. Então, exigir o deslocamento para portos mais distantes é uma mensagem não dita: “faremos tudo para não facilitar o resgate dessa gente”.

Após 17 dias no mar e sem autorização para o desembarque, a comandante alemã do navio da ONG Sea Watch, Carola Rackete, entrou no porto de Lampedusa. Procedeu-se ao desembarque e ela foi presa, sob a acusação de “resistência ou violência contra um navio de guerra”. Outro mecanismo para impedir a entrada de imigrantes africanos na Europa é a intercetação dos botes em pleno mar. Eles são obrigados a voltar para a Líbia, o que é feito em comum acordo entre a Guarda Costeira da Líbia e o governo italiano. Em 2021, mais de 22.500 crianças, mulheres e homens que fugiram pelo Mediterrâneo foram intercetados.

Vida e morte: num piscar de olhos

Alguns membros da tripulação do SOS Humanity 1 começaram a fazer resgates no Aquarius, entre eles, Rocco, um italiano da Sicília que tem no seu olhar uma constelação inteira. Os seus olhos brilham quando fala do seu trabalho. Talvez porque as centenas de resgates que já fez à noite tenham transformado o seu olhar em constelações para ajudá-lo a guiar o barco. Depois de seis anos, não sabe dizer-me o momento mais difícil. Cada resgate tem os seus desafios e perigos. É preciso lidar com políticas estatais mais refratárias ao trabalho das ONG, as provocações e a violência da Guarda Costeira da Líbia. Lembra que, num dos resgastes, foi avisado que tinha uma criança no bote dos sobreviventes, mas ele não conseguia encontrá-la. Por fim, localizou-a. Nascera pouco antes da chegada do resgate. Ainda estava com o cordão umbilical ligado à mãe exaurida. Vida e morte constituem uma linha ténue. Algumas vezes, é preciso levar para os navios não bebés, mas cadáveres. E isso acontece com mais frequência. São pessoas que não suportaram uma travessia de dias, sentadas em espaços minúsculos onde fazem as refeições, dormem e fazem todas as necessidades fisiológicas.

Se todos os resgastes têm níveis de imprevisibilidade, torna-se necessário ter alto nível de preparação técnica. O mar não manda recados e não tem cabelos onde se possa segurar, como disse Paulinho da Viola. Vivianne, assim como Rocco, está no trabalho de resgaste desde 2017. Sente saudades dos dois filhos, que ficam aos cuidados da mãe. São dois meses ininterruptos dentro do navio. O primeiro resgaste em que participou ainda é o mais vivo na sua memória. Pessoas começaram a subir no navio em situações de esgotamento. Era preciso agir rápido: comida, abrigo, atendimento médico. Mesmo depois de centenas de resgates, sabe que o controlo foge. Durante a entrega dos coletes, pode acontecer que, de repente, o bote com os sobreviventes vire e as pessoas não consigam agarrar-se em algum ponto de apoio. Algumas são tragadas pelas águas e desaparecem. E talvez, o último olhar, na faísca do desespero, se encontre com outro olhar. Era para ser o braço. Não deu tempo. Foi apenas o olhar, o último contato humano que ficará tatuado na alma de quem ficou. Quando se volta para o navio, sabe-se que todo o esforço não foi suficiente, que pessoas naquela noite perderam a vida. Como lidar com essas dores? Perguntei à Vivianne. Com muita terapia, respondeu. Mas os pesadelos continuam.

Ao longo daqueles 15 dias, conheci muitos Roccos e Viviannes, inclusive de associações locais, como o Grupo Aurora, que coopera com os navios e ONG que salvam vidas. E entre o meu desespero e indignação por estar diante de histórias de crueldade, abandono oficial, um lampejo de esperança emergia ao ouvi-los e ao vê-los concentrados nas tarefas diárias de recuperação do navio. Lampejo porque o trabalho da sociedade civil europeia engajada é tímido e não consegue interromper ou fazer os Estados reverem as suas políticas de controlo de fronteira e as suas políticas migratórias. Ao contrário, o que se observa é o crescente poder da FRONTEX (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira), agência criada em 2004 e a principal responsável pela coordenação do controlo das fronteiras externas e pelas deportações.

Entre quilos de batatas e legumes que eu picava diariamente, relembrava as histórias contadas e as conclusões são óbvias. As fronteiras da Europa nunca estiveram tão controladas. O racismo continua a ser o tutano das políticas desses Estados – e não a defesa dos Direitos Humanos, como tentam fazer-nos acreditar. O espectro que ronda a Europa é uma pessoa negra. As rotas do Mediterrâneo parecem ser uma citação das perigosas rotas de fuga das pessoas escravizadas no sul dos Estados Unidos, conhecidas como Underground Railroad, com patrulhas de fronteira e caçadores de pessoas escravizadas espreitando todos os seus movimentos. Assim como na Railroad, que contava com o trabalho de solidariedade dos abolicionistas, o Mediterrâneo convive com dezenas de embarcações dedicadas a salvar vidas. Contudo, são insuficientes.

O meu pensamento contorce-se em torno de algumas perguntas: o que podemos, desde o Brasil, fazer? Como podemos, nas universidades, nos movimentos sociais, criar mecanismos de aproximação para tornar o drama do Mediterrâneo mais próximo? Como o governo e parlamentares, identificados com a agenda dos direitos humanos e da luta antirracista, podem incluir essa tragédia política que acontece diante dos nossos olhos, em suas ações? O que acontece no Mediterrâneo não é algo longe de nós. O Atlântico negro está em linha de continuidade com o Mediterrâneo negro.


Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB/Brasil. Investigadora visitante no CES/UC.


Texto adaptado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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