sexta-feira, 23 de maio de 2014

GEOPOLÍTICA - A Líbia no cenário internacional.


A Líbia de novo no cenário internacional

Lejeune Mirhan *

Desde a derrubada de Muammar Khadaffi em 2011, apoiado por rebeldes e terroristas que assolam todo o mundo árabe e com bombardeio das forças da OTAN, seus grandes aliados, a Líbia quase estava fora do noticiário internacional. Voltou quando um embaixador estadunidense foi morto em Benghazi. O Estado líbio foi praticamente destruído. O espírito tribal volta à cena e o exército se desfaz. Agora, surge um general que pretende alterar a estrutura de coisas. É tema de nossa coluna esta semana.


Ele atende pelo nome de Khalifah Haftar. Foi general do antigo exército do Estado líbio com Khadaffi. Havia se exilado ao romper com o coronel e líder do país por décadas. Biografias disponíveis dizem que ele até teria sido treinado na Rússia. Mas, o certo é que estava exilado e morando nos Estados Unidos.

Pois bem. Para surpresa de muitos e com pouca ou quase nenhuma cobertura da mídia internacional, eis que ele surge se autodenominando comandante do Exército Nacional Líbio, coisa inexistente. Um ajuntamento de soldados recrutados em tribos simpatizantes do general, em especial a da família Khadaffi.

No último domingo, dia 18 de maio, tomam de assalto a principal rede de TV da Líbia, fecham o parlamento e anunciam que combaterão até o fim os fundamentalistas islâmicos vinculados à rede terrorista Al Qaeda e a Irmandade Muçulmana, que inclusive, tinha maioria no parlamento. Ele foi apoiado por um coronel de nome Mokhtar Fernana. Suas bases mais fortes são na capital Trípoli e na segunda maior cidade Benghazi. Ainda nesta semana o ministro do Interior do governo anunciou seu apoio à Khalifah e diversas outras autoridades.

O general Khalifah anuncia a sua operação e lhe dá o nome de Karama (Dignidade em árabe). Diz que lutará contra a islamização do país, defenderá a laicidade e se coloca contrário que sejam aplicadas as leis da Sharia, regras do direito islâmico.

As eleições gerais no país estavam marcadas para agosto e a comissão eleitoral nacional anunciou nesta semana a antecipação para 25 de junho. Não sabemos se em consonância com o novo líder líbio.

As informações ainda são esparsas e não temos ainda condições de formar uma opinião. Em especial porque estamos acostumados a tecer análises com base na realidade de nosso país, que tem partidos estruturados e sabemos bem a diferença entre esquerda e direita.

O que fica claro é que na Líbia hoje temos dois grandes blocos. Um, da Irmandade e de sunitas fundamentalistas, muito vinculados ao terrorismo que usam o Islã como sua arma principal e outro bloco os que defendem a laicidade do Estado líbio.

A ideologia do primeiro bloco é amplamente conhecida. Vimos sua ação na Síria que resultou na destruição de grande parte da infraestrutura do país e a morte de mais de cem mil pessoas. Mesmo no Egito, esse agrupamento praticou atos terroristas e massacrou o povo. Quem não é muçulmano tem que pagar caro por isso. É a volta à Idade Média.

O que não está claro é como pensam os que integram o segundo bloco sob a liderança do general Khalifah. Muitas perguntas não estão respondidas, em especial se ele tem apoio dos Estado Unidos ou manterá a independência do país, que vive sob cerco das tropas da OTAN.

A história do general Khalifah


Khalifah tem hoje 65 anos. Era cadete do exército quando, em 1969, os coronéis liderados por Khadaffi derrubaram o rei Idris e implantaram a República. Ele apoiou esse movimento e se aproximou do novo líder do país. Chegou a ser chefe da guarda militar pessoal do presidente Khadaffi.

Entre 1978 e 1987, lutou clandestinamente no vizinho Chade, mas sob ordens de Khadaffi. Ao final, foi derrotado e ele e mais 300 soldados foram feitos prisioneiros. Khadaffi viveu uma imensa contradição. Ele não poderia reconhecer que tinha soldados lutando no país vizinho. Assim, optou por negar tudo e disse sequer conhecer o então tenente-coronel Khalifah. O atual general sofreu muito nas cadeias do Chade, tempo que aumentou seu ódio pelo líder líbio. Prometeu vingança. Chegou a fazer acordos com o governo do Chade, foi libertado sob a condição de formar uma milícia, que chamou de Exército Nacional Líbio.

Morou exilado nos Estados Unidos, no Estado da Virgínia, exatamente na cidade de Langley, onde fica o Quartel General da CIA. Há fortes suspeitas de que foi treinado por essa organização de espionagem, pois os EUA queriam, há muito, tirar Khadaffi do poder. No entanto, nos últimos anos da vida de Khadaffi ele acabou fazendo acordos com os EUA e a União Europeia, chegando a indenizar as famílias vítimas do atentado do Boeing da Lokerbee que caiu na Inglaterra e matou quase 500 pessoas. Aplicou a política neoliberal, negando praticamente o seu passado.

O general Khalifah retornou à Benghazi já no levante insuflado pela Europa e EUA, com apoio da OTAN, que visava derrotar Khadaffi. Isso foi no primeiro semestre de 2011. Chegou com a sua milícia e para organizar os rebeldes pela derrubada do presidente.

De lá para cá foi promovido à patente de general e lidera tropas. Muitos o consideram um militar muito preparado, profissional e com muita experiência em batalhas. O braço político de sua organização militar que ele lidera chama-se Frente de Salvação Nacional. Ele expressa profunda divergência com os fundamentalistas da Irmandade Muçulmana, apoiada pelos EUA e pelos terroristas da Al Qaeda. Refere-se a eles como “grupos extremistas” e “flagelo terrorista”.

Nos últimos dias passou a ter o apoio do chefe do Estado Maior da Força Aerea, coronel Joma Al Abani. Diversos ministros do atual governo, de maioria conservadora, sunita e vinculado à Irmandade.

Perspectivas para a Líbia


Não se pode prever o desfecho dos acontecimentos. O que sabemos ao certo é que a Líbia é na verdade um agrupamento de grandes tribos espalhadas pelas várias regiões. O general é apoiado pelas maiores e mesmo a da família de Khadaffi. Não temos notícias ainda da extensão do seu apoio tanto na população, quanto na estrutura do Estado líbio, praticamente destruída com apoio da OTAN, como fizeram no Iraque e tentam fazer agora na Síria. Se não podem derrubar o líder, destroem o país por completo.

Aqui, mesmo sem saber em detalhes a ideologia do general, seu plano de salvação nacional da Líbia, quero arriscar alguns palpites.

Como disse acima, temos dois grandes blocos no país, ainda sem uma nítida divisão e clareza ideológica. No entanto, do lado defendido pelo general está a laicidade do Estado, dos valores seculares e contra a islamização do país. Não sabemos as suas concepções de democracia. No entanto, o outro campo é fundamentalista. É apoiado pela Irmandade e pelo grupo terrorista Al Qaeda que tantos males e ataques vem causando em vários países do mundo.

O campo do fundamentalismo defende a volta à Idade Média, a um Islã do século VII, da época do profeta Maomé. Defende a implantação de um estado islâmico. O sistema judicial que propõem baseia-se na Sharia, conjunto de normas islâmicas do direito que tem como base única e exclusivamente o Alcorão. Defendem a imposição do véu para todas as mulheres. Mas mais do que isso, defendem imensas restrições aos direitos das mulheres, como na Arábia Saudita e outros lugares que dominam.

Até por isso, podemos ter opinião inicial de que é preciso, de fato, combater o terrorismo e o extremismo. É claro que não devemos seguir a linha do “inimigo de meu inimigo é sempre meu amigo”. A vida vai mostrar, em breve, talvez em dias, a que veio esse general.

Parte da imprensa internacional que pude ler chegam a aponta-lo como uma espécie de general Sisi, que é o comandante do exército egípcio e forte candidato nas eleições deste final de semana e deve vencê-las. Vamos ver. Breve saberemos.


* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Colunista da Revista Sociologia da Editora Escala, da Fundação Maurício Grabois e do Vermelho. Foi professor de Sociologia e Ciência Política da UNIMEPentre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo de 2007 a 2010.Recebe mensagens pelo correio eletrônico lejeunemgxc@uol.com.br.

Nenhum comentário: