“A elite não aceita que a filha do porteiro estude no exterior”, diz mestranda brasileira na Europa
Gabriella Figueiredo cresceu rodeada de olhares preconceituosos. Prestes a concluir o mestrado em história da arte, na Espanha, ela quer ver mais personagens do subúrbio na literatura
Os ventos que sopravam no apartamento do casal de migrantes nordestinos instalado em Ipanema, por obra do acaso e do trabalho, não costumavam ser tão inspiradores ou generosos quanto os conselhos de professores que ajudariam sua única filha a descobrir uma vocação. Jerônimo Figueiredo e Maria José Juvenal são os pais de Gabriella Juvenal Figueiredo, mestranda em história da arte pela Universidade de Navarra, na Espanha, a primeira da família a cursar faculdade, uma menina que cresceu entre o choque de classes no bairro mais famoso do Rio de Janeiro.
Jerônimo e Maria deixaram Campina Grande, na Paraíba, no meio da década de 1980 para tentar a sorte em terras cariocas. Depois de fazer bicos como pedreiro, ele arrumou trabalho como porteiro em um condomínio próximo à praça General Osório, área nobre de Ipanema, onde recebeu moradia, enquanto ela trabalhou como empregada doméstica. Foi no prédio de classe média alta que Gabriella passou toda a juventude, convivendo com luxos que não eram típicos da realidade de sua casa. “Soube desde cedo o que significa para uma família de classe C viver em um lugar que pertence à classe A”, conta a estudante. “Eu cresci rodeada de olhares preconceituosos.”
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Ao contrário da maioria dos colegas da vizinhança, Gabriella sempre estudou em escola pública. Lembranças do preconceito que sofria por ser “a filha do porteiro” continuam vivas na memória. “Teve uma vez que eu estava brincando com outras crianças do prédio quando uma delas, no meio de uma conversa sobre viagens, disse: ‘Você nunca vai pra Disney, né? Vocês não têm dinheiro’. Por isso, achava que esse negócio de viajar não era pra mim.” Jerônimo estudou somente até a terceira série. Maria terminou o ensino fundamental. Por não terem completado os estudos, os pais de Gabriella colocaram sua educação como prioridade da família.
Ela tomou gosto pela leitura devorando a série Harry Potter, de J. K. Rowling. Sônia Beatriz, sua professora de português na escola, a incentivou a abrir o leque cultural recomendando títulos de literatura brasileira e estrangeira. Com A Sombra do Vento, do espanhol Carlos Ruiz Zafón, se apaixonou de vez pelos livros, encantada com a trama que gira em torno de uma biblioteca secreta. Mas ainda faltava um impulso, que veio a partir de outro incentivador. “Quando eu estava no segundo ano do ensino médio, um professor de geografia disse que o filho dele estava fazendo medicina numa universidade federal e era motivo de muito orgulho. Aquilo me marcou. Fui conversar com ele. ‘Será que eu também consigo?’. Sem pensar, ele disse que sim.”
Prestou vestibular e ganhou uma bolsa para o curso de letras na PUC-RJ. E aí houve o reencontro com os velhos olhares da infância. “Como assim, a filha do porteiro tá estudando na PUC?”, diz ter escutado de vizinhos do prédio. Embora alguns a cumprimentassem por ter se tornado a primeira da família a entrar para a faculdade, outros seguiram desdenhando até mesmo quando, depois de formada, em outubro do ano passado, ganhou outra bolsa, dessa vez para cursar o mestrado na Espanha. “A elite não aceita que a filha do porteiro estude no exterior ou divida a sala da universidade com seus filhos. Infelizmente, tive de aprender a sobreviver ao lado dessas pessoas que te olham por cima do ombro.”
Hoje, a menina que não sonhava ir para a Disney carimbou, aos 30 anos, sua primeira viagem internacional no passaporte e vive em Pamplona, sede da Universidade de Navarra. A experiência fora do país ensinou algo que Gabriella não aprendera em seu prédio. “Aqui não tem elevador de serviço”, aponta, referindo-se ao equipamento destinado a funcionários que ela também era obrigada a usar no condomínio onde o pai ainda trabalha. A estudante conta que se viu em várias passagens do filme Que Horas Ela Volta, em que Regina Casé interpreta a empregada doméstica Val. “As únicas pessoas negras do meu prédio eram as empregadas domésticas”, recorda. “Eu conheço muitas Vals. Nas festas de aniversário, eu era esquecida, a maioria das crianças não falava comigo. Então, eu ficava na cozinha escutando a história das empregadas, que não deixa de ser a da minha mãe. De certa forma, eu também me vejo na Jéssica [filha da Val], desmerecida depois de ser aprovada no vestibular.”
Com base em suas vivências, Gabriella começou a escrever um livro durante o mestrado. O objetivo é estimular mais diversidade em obras literárias. Segundo uma pesquisa por amostragem do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), 76% das personagens de romances nacionais são brancos e 62% homens, sendo que a maioria dos negros é retratada como bandidos, escravos ou empregados. “Quero contar a história do Rio de Janeiro que não aparece nos livros, mostrar as pessoas pobres, que moram em comunidades, em sua complexidade, não com estereótipos. E, principalmente, que o povão se identifique e se enxergue na minha história.”
A Sombra do Vento, de Zafón, que morreu em junho deste ano, permanece como uma referência para a obra de Gabriella. “Será uma homenagem ao escritor que me inspirou”, diz a estudante, preocupada com os rumos dos dois países que lhe deram uma nova perspectiva de mundo. “Aqui, na Espanha, a extrema direita tem crescido, assim como no Brasil. As políticas do atual Governo e as propostas do Paulo Guedes [ministro da Economia] favorecem ainda mais as pessoas do prédio onde meu pai trabalha.” Assim que concluir o mestrado, ela planeja voltar ao Rio para se reconectar às personagens que ganharão protagonismo em seu livro. “Vou seguir o vento, como sempre fiz.”
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