Marx e a liberdade
Luis Felipe Miguel destaca como a ampliação da liberdade humana corresponde ao horizonte ético de Marx, e insiste que essa dimensão seria central ao seu projeto e ao de todas as correntes da esquerda.
Por Luis Felipe Miguel.
É a direita, no debate público, que costuma segurar a bandeira da liberdade. Em nome dela se defende o capitalismo (“livre mercado”), a propriedade privada (“liberdade econômica”), o controle empresarial da informação (“liberdade de expressão”). Suas organizações muitas vezes adotam nomes como “Movimento Brasil Livre”, “Fórum da Liberdade”, “Estudantes pela Liberdade”. Direitistas extremados, defensores de uma ordem neofeudal, em que todo o poder político se apoia numa rede de contratos privados, chamam a si mesmos de “libertários”. É em nome da “liberdade” que Bolsonaro se opõe às medidas de combate à pandemia, como isolamento social e uso de máscaras, assim como é em nome da “liberdade” que é feita a defesa do porte irrestrito de armas e a oposição à regulação ambiental ou trabalhista.
Tais usos são reconhecidos como abusivos mesmo por liberais honestos, mas se apoiam numa tradição intelectual significativa. Desde o século XVIII, o liberalismo apresenta a tensão entre liberdade e igualdade como um problema central. Lida como adequação compulsória ao grupo, a igualdade destruiria a liberdade de ser diferente. Daí o tema do “despotismo da maioria”, que leva o pensamento liberal a se preocupar com formas de limitação da democracia. É um tema presente nos escritos federalistas, em Stuart Mill e em Tocqueville, para citar apenas os mais importantes. A indefinição dos termos centrais do problema – igualdade, minoria – permite que, sob o pretexto de proteger heréticos, dissidentes e excêntricos, seja garantida a continuidade da desigualdade de classes (como já assinalava, há mais de meio século, um insuspeito autor liberal, Robert Dahl). Nas mãos de autores menos sofisticados, como os economistas da escola austríaca, esse caminho leva à equivalência entre liberdade e esfera privada, com a consequente impugnação da democracia e o paradoxo de apóstolos da liberdade que não disfarçam sua simpatia por regimes fascistas.
Dado esse enquadramento da questão, em que liberdade e igualdade aparecem como polos opostos, o marxismo se viu constrangido a ficar do lado da última. No entanto, é razoável afirmar que seu projeto é, em primeiro lugar, libertário. Quando Marx e Engels se atrevem a idear a sociedade comunista, sempre enfatizam que nela reinaria uma liberdade quase absoluta. De fato, a oposição feroz que Marx faz ao utilitarismo repousa, em grande medida, em seu entendimento de que a vida humana se orienta pela ampliação da liberdade – e não da felicidade.*
A forma superior de sociedade, escreve ele no livro I d’O capital, é aquela “cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo”. Ambos os adjetivos são relevantes: se a plenitude do desenvolvimento é bloqueada por fatores como a privação material, a liberdade está comprometida. Isso porque Marx opera com uma compreensão da liberdade que não a limita à ausência de um poder arbitrário, mas a entende também como superação da necessidade. Assim, a liberdade é anulada se estamos submetidos à vontade de outra pessoa, mas também se estamos submetidos à privação – que também bloqueia a livre definição de nossas ações.
Fica claro que, sem que a libertação em relação à necessidade seja colocada em pauta, “liberdade” pode ser um slogan vazio e, pior ainda, encobrir múltiplas formas de opressão – como em seu uso pelos apologetas do “livre mercado”.
A caracterização do marxismo como radicalmente coletivista, de um igualitarismo insensível às diferenças, é, mais do que caricatural, errônea. Marx é herdeiro – um herdeiro rebelde, é verdade – da valorização liberal do indivíduo. Ele comunga da visão, antecipada já em Hobbes e desenvolvida pelos primeiros pensadores liberais, de que a sociedade deve servir aos indivíduos, não o contrário. Nada mais distante dele, portanto, do que a visão de uma ordem em que o indivíduo fosse sacrificado em prol do coletivo. O que ele aponta é que essa sociedade deve ser organizada de maneira a servir igualmente a todos, em vez de penalizar muitos para benefício de poucos. Filia-se, portanto, à corrente de outro dissidente da tradição liberal, Jean-Jacques Rousseau, que apontava que o que ameaça o gozo da liberdade não é a igualdade, mas a desigualdade.
O marxismo é associado à defesa da igualdade, em primeiro lugar, pela denúncia da iniquidade da sociedade capitalista. Ela se impõe como prioritária na atual etapa histórica, que é marcada pelo “igual direito”. Já na sociedade projetada para o futuro, a superação da necessidade franquearia a mais ampla liberdade a todos e permitiria também uma ultrapassagem das noções de igualdade e desigualdade. O lema que então vigoraria, “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, conforme consta na Crítica do programa de Gotha, indica que, tornada desnecessária a disputa pelo controle de recursos escassos, as diferenças se estabeleceriam livremente, sem constituir ameaça aos outros seres humanos, e a sociedade garantiria o florescimento destas diferenças. Isto é, reinaria a plena liberdade.
É possível discutir o quanto da utopia comunista de Marx é realizável – se é de fato possível almejar uma situação de absoluta superação do conflito distributivo e de harmonia plena entre indivíduo e coletividade. Mas é inegável que seu horizonte ético é o da ampliação da liberdade humana. Ela é, ouso dizer, o valor central do projeto não só de Marx, mas de todas as correntes da esquerda.
Ao mesmo tempo, porém, a experiência do socialismo autoritário contribuiu para afastar a vinculação entre o marxismo e a defesa da liberdade. O stalinismo, em especial, assumiu como virtudes muitas das necessidades impostas pelas duras condições enfrentadas pela nascente União Soviética e tornou a repressão um componente central de seu modelo de socialismo. O reconhecimento de que sem base material as liberdades são inócuas tornou-se desprezo pelo conjunto destas liberdades, vistas como veleidades “liberais” ou “pequeno-burguesas”. Por outro lado, a contraface esperada, que seria a edificação de uma sociedade igualitária, tampouco se efetiva – o pretenso socialismo com roupagem autoritária convive bem com uma enorme disparidade de riquezas, como na China, ou com um regime dinástico, como na Coreia do Norte.
Ao reivindicar tais ditaduras como seus modelos ou ao justificar levianamente a opressão stalinista, uma parte da esquerda contribui para que a liberdade seja apresentada como valor distintivo da direita. Isso não é apenas uma estratégia política burra. É também a negação do sentido central da emancipação humana propugnada por Marx.
* Discuto amplamente o ponto em meu livro Trabalho e utopia: Karl Marx, André Gorz, Jon Elster (Porto Alegre: Zouk, 2018).
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Luis Felipe Miguel é professor titular livre de Ciência Política na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018). Escreve no Blog da Boitempo mensalmente.
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