A maldição da cobertura midiática de enfoque único, por Luis Nassif
Um dos grandes desafios da reconstrução do país será o da recuperação do jornalismo.
A maior ou menor competência, na análise de fatos, depende dos seguintes fatores:
1. A maior ou menor capacidade do analista de incluir mais de um fator na análise.
Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, observou-se um alarido amplamente hegemônico dos comentaristas da mídia corporativa, exigindo corte total de relações com a Rússia, medidas de retaliação, críticas a qualquer menção a saídas diplomáticas.
Não conseguiram incluir, nas suas análises, alguns elementos óbvios, os impactos :
• na morte de ucranianos;
• nos desarranjos da economia mundial;
• na inflação dos países no crescimento da economia mundial;
• nos riscos no abastecimento de insumos agrícolas;
• nos riscos de alastramento do conflito e de uma guerra nuclear.
2. A maior ou menor capacidade de análise dinâmica.
Os analistas refletiram a reação da opinião pública no momento inicial da cobertura, sob o impacto das cenas de guerra. Não se deram conta de que, após alguns dias de intensa cobertura, o tema deixa de ser novidade.
Aí, a indignação com a guerra será substituída por preocupações mais comezinhas: o impacto das medidas contra a Rússia nas economias domésticas; o risco de uma guerra nuclear. E os heróis da primeira fase entram em declínio, principalmente quando têm a pequena dimensão de um Zelensky ou Joe Biden.
Segundo pesquisa da CBS, de ontem, a popularidade de Biden não apenas retornou aos níveis pré-guerra, como é a mais baixa desde o início do seu governo. Como os analistas brasileiros sempre se baseiam no efeito-demonstração, com retardo, daqui a algumas semanas entenderão o processo.
O jornalismo fast food
Nos anos 90, no meu livro “O jornalismo dos anos 90”, identifiquei esse tipo de comportamento que taxei de jornalismo fast-food.
A partir da Folha, nos anos 90 houve uma multiplicação de colunas. A maioria absoluta dos colunistas agia como um político populista, disputando a atenção dos leitores de forma demagógica. Se o leitor estava indignado com determinado fato, o colunista ficava indignado. Era indignação a torto e a direito, reproduzindo padrão programa policial de TV.
Para não complicar a análise, reduziam todos os casos ao branco-e-preto, a luta do bem contra o ma. Fazendo assim, ficaria fácil a filtragem dos fatos: qualquer fato contra o herói é descartado; qualquer fato contra o vilão, dramatizado.
Havia três círculos de analistas nas coberturas continuadas.
No primeiro círculo, os analistas sofisticados, buscando o contraponto e novas análises sobre o tema em questão. Como são novas e, por definição, ainda não assimiladas, suas conclusões eram vistas com desconfiança pelos leitores e pela manada jornalística.
Um segundo círculo, de jornalistas mais experientes, mas que não ousavam questionar o movimento de onda. Passado algum tempo, assimilam os conceitos do primeiro círculo e começam a disseminar a nova versão.
Finalmente, o terceiro círculo, a manada propriamente dita, que endossa a narrativa depois que o leitor já assimilou.
O terceiro círculo do inferno jornalístico torna-se preponderante a partir dos anos 90, quando a mídia passa a trabalhar de forma extensiva o conceito do jornalismo como produto – e, como tal, subordinado ao pensamento majoritário do leitor, mesmo que significasse o atropelo de princípios econômicos, políticos ou jurídicos comezinhos.
O país do imediatismo
A cobertura da guerra da Ucrânia comprovou que esse tipo de jornalismo medíocre venceu. Em um primeiro momento, a maioria absoluta dos analistas consagrados – da área internacional, econômica ou política — passou a defender a delenda Rússia, a criticar qualquer tentativa de saída diplomática, transformando Zelensky em um herói das democracias e do “mundo livre” – um anacronismo da guerra fria. E escondendo qualquer informação que possa trazer outras tonalidades à narrativa.
Não conseguem transformar a ocupação territorial no grande mal. E, a partir daí, colocar no mesmo caldeirão Putin, Biden, Blinken, Zelensky. Só é ruim a ocupação sem participação americana.
Como é que pode o veterano colunista de economia, Carlos Alberto Sardenberg, dizer que bombardear o Afeganistão e o Iraque pode, porque são nações terroristas, e a Ucrânia não? Só a mais profunda ignorância sobre princípios básicos de direito internacional, e sobre fatos contemporâneos, para explicar essa excrescência. Mas é padrão recorrente na principal emissora brasileira.
No fundo, esse pensamento fast-food reflete a enorme superficialidade do pensamento institucional brasileiro – e, por tal, refiro-me ao pensamento médio das pessoas que interferem nas grandes políticas públicas. Não se trata meramente de uma manifestação da ultra direita, mas de uma ignorância institucionalizada.
O fator Luís Roberto Barroso
Não há nada mais significativo dessa ignorância institucionalizada do que o Ministro Luís Roberto Barroso com ardor juvenil, defendendo o golpe do impeachment e a Lava Jato, prevendo o “novo Iluminismo” assim que ocorresse o impeachment de Dilma Rousseff. E focalizo sempre Barroso por ser o exemplo acabado da superficialidade marqueteira de uma certa inteligência brasileira.
O caso mais trágico foi o endosso de Barroso, Luiz Edson Fachin e Luiz Fux ao golpe do impeachment.
A análise de Barros era univôltica:
- Os governos do PT são a favor de políticas social-democratas. Se caírem e entrar um governo neoliberal, ficam afastados todos os obstáculos para se implantar uma economia liberal de mercado que salvará o país.
A ideia de que o desaparecimento do “inimigo” traria a prosperidade justificaria a revogação de todos os princípios de direitos individuais, permitindo a ascensão do absolutismo jurídico.
Não pensou nas seguintes consequências:
- A campanha levaria à desmoralização da política, abrindo espaço para a ascensão de forças anti políticas.
- O uso intenso do subjetivismo pelo STF se espalharia por todos os poros do aparelho jurídico e policial.
- A desmoralização do contrato social brasileiro transformaria a política em um ambiente de guerra, abrindo espaço para setores radicais.
Mas, a não ser que se acreditasse na institucionalização do estado de exceção, assim que se afastasse do epicentro da crise, o Judiciário voltaria aos trilhos constitucionais com a desmoralização das teses de exceção. E o que se viu foi a desautorização jurídica da Lava Jato, expondo a irresponsabilidade de Barroso, ao endossar cegamente os abusos da operação.
Por que insisto no caso Barroso? Porque ele entrou no STF com os juristas, em geral, enaltecendo seu conhecimento de constitucionalista. Imaginei que o processo de construção de reputação, no meio jurídico, fosse diferente do meio jornalístico ou mesmo acadêmico, que houvesse de fato uma análise de mérito.
No caso de Barroso, juristas progressistas garantiam que era “brilhante”. Conseguiu formar reputação calçado em avaliações ligeiras, assim como o próprio Michel Temer, o constitucionalista.
E teria preservado a reputação se se mirasse na cautela do Conselheiro Acácio, e guardado silêncio.
Perdeu-se quando tentou reinterpretar os intérpretes do Brasil, apossando-se de todos os estereótipos sociológicos plantados pelo senso comum. Depois, pela sucessão de asneiras sociológicas, estatísticas falsas que lhe angariaram justo reconhecimento em meios anti-intelectuais, como empresários e banqueiros, que passaram a contratá-lo para palestras remuneradas. Finalmente, pelo questionamento de princípios jurídicos nascidos do Iluminismo, o contrato social. E provocou os advogados afirmando que teriam que “começar a aprender a trabalhar”, isto é, defender seus clientes em um quadro de supressão dos direitos.
Era o mesmo padrão raso de análise jornalística que veio não para informar, mas para conquistar o público desinformado.
A má qualidade jornalística
Essa má qualidade jornalística decorre da falta de bons jornalistas? Creio que não. Há inúmeros bons jornalistas em todos os canais, capazes de juntar informações relevantes com análises sofisticadas. Mas o critério de visibilidade, na mídia, é o jornalista-populista, capaz de dizer “destrua a Rússia ou o PT”, quando a onda assim exigir, ou “loucura destruir a Rússia e o PT”, se a onda inverter. Nunca conduzem: são conduzidos pelas ondas da opinião pública, que conseguem influenciar, mas não controlar.
Nas décadas de 70 a 80, até um pedaço dos anos 90, jornalistas eram vozes privilegiadas na construção de políticas públicas. A partir de fins dos anos 80, quando a Folha e a Veja descobrem o jornalismo-produto, os critérios de avaliação passam a ser a empatia com os leitores. E, aí, vale tudo: compartilhamento de indignação, de preconceito, de moralismo raso. E, agora, com o predomínio do jornalismo televisivo, o uso reiterado da emoção.
Na atual cobertura da guerra, um veterano jornalista contou a história pungente de sua síndrome de refugiado. Quando cobria guerras, ouvindo os barulhos das bombas, pensava em seus filhinhos no Brasil. Contava isso com voz embargada, despertando a emoção da âncora.
Algumas horas depois, em outro programa do mesmo canal, repetia a mesma cena, com a mesma voz embargada contando a mesma história, para emoção de outra âncora.
Essa superficialidade, essa exploração barata de estereótipos ou da emoção, está por trás do enorme subdesenvolvimento do jornalismo brasileiro.
Um dos grandes desafios da reconstrução do país será o da recuperação do jornalismo.
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