quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

GEOPOLÍTICA - Guerra híbrida entre e Rússia e o Ocidente.

Guerra Fria, guerra seca, guerra tecnológica ou guerra híbrida, as relações entre o Ocidente e Moscou estão definidas sob diferentes conceitos que expõem o antagonismo que se instalou entre os dois blocos, desde que foi detonada a crise com a Ucrânia. A União Europeia e a Federação Russa consumaram uma ruptura que, finalmente, deu lugar a uma espécie de guerra muito diferente das que se tornaram conhecidas até hoje.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 15-12-2014. A tradução é do Cepat.
Jens Stoltenberg, o secretário geral da Aliança Atlântica, afirma que “não queremos um conflito com Moscou”. No entanto, o conflito existe. Em princípios de dezembro, o presidente russo Vladimir Putin denunciou as intenções dos “inimigos de ontem”. Segundo o mandatário, “o Ocidente quer montar na Rússia o cenário da Iugoslávia, ou seja, o afundamento e o desmembramento com todas as conseqüências trágicas que isto teria para a Rússia”. Até o ex-presidente da desaparecida União Soviética, Mijail Gorbachov, o homem cuja política colocou fim à Cortina de Ferro e ao Muro de Berlim, advertiu que “o mundo está à beira de uma nova Guerra Fria”.
A Europa Ocidental, seu comandante maior, os Estados Unidos, e seu braço armado, a Aliança Atlântica, a OTAN, não apenas entraram em uma zona de conflito com a Rússia, como também fizeram desse conflito um pilar para a sua reatualização estratégica na Europa e um argumento para disputar com Moscou a supremacia em uma república tão sensível como a Ucrânia. Nesta nova guerra sem mobilizações militares aparatosas, está em disputa muito mais do que o território da Ucrânia, a inclusão desta república ao sol ocidental ou o destino das regiões com russos no Leste da Ucrânia. Os dois impérios, o Ocidente e a Federação Russa, disputam, ali, seus poderes futuros.
Além das sanções que o campo ocidental adotou contra Moscou, após a anexação da Crimeia por parte da Rússia e o aprofundamento da guerra no Leste da Ucrânia, o sinal mais tangível da ruptura é a decisão tomada pelo presidente francês, François Hollande, de não fornecer para Moscou um dos dois barcos porta-helicópteros Mistral que a França vendeu a Rússia por um total de 1,2 bilhões de euros. Paris subordina a entrega dos barcos a um cessar-fogo real e um acordo político sólido com a Ucrânia. A Alemanha e a França, um pela dependência energética e o outro pelos contratos que estão em jogo, esboçam mecanismos pouco exitosos para chegar a esse fim. As informações que Moscou e os ocidentais fornecem dão conta da escalada permanente. Os dois antagonistas tiveram várias vezes incidentes maiores. Em fins de novembro, o secretário geral da Aliança Atlântica revelou que, durante 2014, a aviação da OTAN realizou ações de intercepção em uma porcentagem sem precedentes, desde o fim da Guerra Fria. Jens Stoltenberg declarou que “a atividade aérea russa se intensificou em toda a Europa. Por isso, os aviões dos países da OTAN efetuaram mais de 400 voos em resposta a alertas de proximidade no espaço aéreo da OTAN, o que equivale a 50% a mais do que no ano passado”. Por outra parte, convencida de que Moscou buscará se expandir territorialmente, a OTAN decidiu criar uma “força de ação imediata” com o objetivo de “proteger” os países da Europa do Leste. A concepção não pode ser mais evidente: o novo inimigo deixou de ser o terrorismo internacional. A figurinha antagônica é a Rússia.
De fato, sob o amparo da crise na Ucrânia, o Ocidente encontrou na eficácia estratégica de Vladimir Putin um argumento para revisar suas concepções e sua missão. Em fins deste ano, a Aliança Atlântica deve concluir a retirada de suas tropas do Afeganistão. No momento atual, a Ucrânia serviu para reativar suas ambições e retornar para sua missão essencial, ou seja, a segurança na Europa. Constituída por 28 países, que representam 900 milhões de pessoas, a OTAN é hoje a maior aliança militar que existe. Sua discrepância com a Rússia também provém de suas próprias metas e das condições fixadas por Moscou. Há anos, a Europa tentou agregar ao seu espaço político regiões como Ucrânia e Geórgia. Essa aproximação também inclui um ingresso parcial ou total dessas repúblicas na OTAN. Um acordo semelhante com estas regiões colocaria os exércitos do Ocidente às portas da Rússia. Aqui, Vladimir Putin foi claro: “As duas ex-repúblicas soviéticas da Ucrânia e Geórgia não devem fazer parte da OTAN”.
Esse era precisamente o projeto que o ex-presidente norte-americano George Bush colocou em andamento no ano de 2008. Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, a aliança foi ampliando suas áreas de influência nos territórios do derrubado império vermelho. Primeiro fez isso com as repúblicas bálticas da Lituânia, Estônia e Letônia, e depois com uma série de ex-aliados da URSS espalhados pela Europa: Bulgária, Romênia, Albânia, Hungria, Polônia, República Tcheca, Croácia e Eslovênia.
O nó deste perigoso conflito esta, em grande parte, nesse expansionismo atlântico e nas sucessivas provocações ocidentais a Putin. A Ucrânia é, para o mandatário russo, a pérola mais preciosa. A Europa ocidental insistiu em sua estratégia de trazer Kiev para a sua zona de influência, de uma forma ou de outra, apoiando a revolta pró-Ocidente, que acabou com o mandato do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, ou procurando a todo custo encerrar um acordo de associação com a Ucrânia, como ocorreu este ano. Em resposta a isso, a Rússia avançou os peões a respeito dos quais as chancelarias ocidentais qualificam, com uma hipocrisia muito audaz, “a guerra de Putin”, ou seja, o que as estratégias militares da Aliança Atlântica chamam de “a guerra híbrida” que, segundo eles, a Rússia desencadeou na Ucrânia. Essa ideia de guerra híbrida não tem nada a ver com a guerra entre duas nações - a convencional - ou com a guerra assimétrica - contra uma força com menos capacidade militar, como uma guerrilha, por exemplo -. Trata-se de um conflito no qual um dos atores - agora Moscou - ativa uma espécie de mistura de exércitos convencionais com soldados sem uniforme, guerra de guerrilhas, guerra da informação, mobilização de civis, ciberataques, levantes urbanos, instauração de focos de conflito, grupos subversivos, pressões econômicas. Esse é o roteiro com o qual trabalha, hoje, a Aliança Atlântica.
Enquanto os ocidentais elaboraram uma espécie de montagem diplomática para abraçar a Ucrânia, Putin lhes preparou como resposta um coquetel imprevisto. Até o momento, nem Moscou e nem os ocidentais romperam o pacto que os liga, desde 1997. Naquele ano, a Rússia e a OTAN acordaram a chamada ata fundadora da relação entre a aliança militar e a Rússia. Mediante este texto, a aliança transatlântica declara que não “tem nenhuma intenção, nem projeto ou razão” de instalar arsenais nucleares nos novos países membros. No atual momento, o que existe é um vocabulário guerreiro, acusações de tom alarmante e claros movimentos militares dos dois lados. Porém, tudo aponta para que as renovadas ambições da Aliança Atlântica e o próprio desenho estratégico da Rússia aumentem as provocações e ameaças. A não ser que a razão liberal, ou seja, os interesses econômicos e energéticos em jogo, venha desarmar um conflito em constante multiplicação.

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