O assalto à República
Qual é projeto que os promotores do golpe? Por que querem assaltar o poder e derrubar a presidente eleita, atropelando a Constituição e as instituições?
Por Gerson Gomes*, Plataforma Política Social
A tentativa de derrubar a atual Presidente da República, que se iniciou no dia seguinte à sua vitória nas urnas, é uma ilustração clara desse padrão. Esse processo está sendo conduzido por um réu por corrupção e lavagem de dinheiro, membro de um partido cujo presidente, também denunciado em uma das tantas delações premiadas de moda no Paraná, determinou o rompimento com o Governo, embora ele mesmo não o tenha feito. O processo é apoiado pela grande mídia e por líderes da Oposição, todos indômitos críticos da corrupção, embora sobre muitos deles – órgãos da mídia e líderes – pesem denúncias de desvio de recursos públicos, tráfico de divisas, sonegação de impostos, recebimento de propinas, para citar só alguns exemplos.
Não bastasse isso, o processo de impeachment contra a Presidente não tem fundamento concreto, jurídico ou factual. Os argumentos invocados para sua justificação variam ao sabor da conjuntura, dando a impressão de que em realidade há um prejulgamento a partir do qual se buscam tentativas de incriminação, em um estilo de fazer inveja aos tempos áureos do obscurantismo inquisitorial.
Impeachment sem fato comprovado, sem base jurídica, é golpe. Impeachment contra uma autoridade legitimamente eleita, sobre a qual não existe prova de crime de responsabilidade ou de envolvimento em atos ilícitos no exercício do seu mandato, é golpe. E mais, é um golpe que nasce marcado pela ilegitimidade moral dos que o lideram e de muitos dos que o apoiam, na mídia, no Congresso e no Judiciário.
Mas, qual é projeto que os promotores do golpe oferecem ao País? Por que querem assaltar o poder e derrubar a presidente eleita, atropelando a Constituição e as instituições democráticas?
Aqui vale separar duas classes de motivações. A primeira, mais óbvia, é a urgente restauração do anterior regime de impunidade, com o “engavetamento” das denúncias e processos contra os implicados em atos de corrupção pertencentes à Casa Grande e sua entourage, sem prejuízo, é claro, da rigorosa punição, mesmo sem provas, para a turma da Senzala e seus simpatizantes. A segunda se relaciona aos interesses econômicos, internos e externos, em jogo. Nessa esfera, as propostas públicas dos promotores do golpe tem quatro eixos articulados e interdependentes:
i. implantação do que os economistas neoliberais e a mídia conservadora chamam de “reformas estruturais que o País necessita” – ou seja, a reforma da legislação e das relações trabalhistas, com a perda do poder de negociação dos trabalhadores e esvaziamento dos mecanismos de proteção do emprego; a reforma fiscal, para viabilizar o corte dos gastos sociais em educação, saúde, previdência e em programas de transferência de renda para os setores mais vulneráveis da população; a liquidação da política de valorização real do salário mínimo, implantada a partir de 2003; e o aprofundamento e generalização da privatização dos serviços sociais básicos;
ii. restauração da matriz econômica neoliberal dos anos 90, com a redução do papel de coordenação e regulação do Estado na economia e consequente reversão das políticas de compras estatais, de conteúdo nacional e de financiamento público, o abandono da centralidade do crescimento e do emprego no desenho da política econômica e a privatização do que resta de patrimônio público, especialmente no que se refere ao pré-sal, a outros recursos naturais estratégicos, incluindo a água, e aos bancos públicos;
iii. retomada e aprofundamento do processo de inserção subordinada do Brasil na ordem global, com a intensificação da abertura comercial e financeira da economia, a adesão a acordos internacionais de investimento voltados para a hierarquização dos interesses das corporações multinacionais e a adequação do marco jurídico nacional sobre a matéria à legislação norte-americana;
iv. a liquidação do projeto de transformação do Brasil em potência regional – com a reversão da política de consolidação do Mercosul e de outras instituições de âmbito sul-americano, o esvaziamento das relações com os BRICs e outros parceiros estratégicos da Ásia e da África, a reorientação do posicionamento do País nos fóruns internacionais e a adequação da política de defesa nacional ao padrão geopolítico comandado pelos Estados Unidos.
Em resumo, trata-se de reordenar o modelo de acumulação e de distribuição da renda de acordo aos interesses da Casa Grande e de seus parceiros externos – a potência hegemônica e as grandes corporações interessadas em ocupar o mercado nacional, explorar a força de trabalho nativa e controlar os recursos naturais estratégicos do País. E de assegurar que os custos do ajuste da economia, que a elite empresarial, beneficiária de bilhões de reais de isenções e renúncias fiscais, se nega a compartilhar, sejam pagos pelos de sempre, os trabalhadores e os setores de menores recursos, que são a maioria esmagadora da população.
Esse modelo econômico é incompatível com o aperfeiçoamento democrático, com a universalização da cidadania e dos direitos sociais e com a redução das assimetrias de renda, riqueza e oportunidades ainda vigentes. Ele não cabe na Constituição de 1988, é um modelo de privilégios, para poucos. De ser implantado, condenará o Brasil à condição de mero território de expansão e realização de lucros do capitalismo global, com a regressão do seu processo de desenvolvimento, a desindustrialização da economia, a exacerbação do rentismo e o agravamento dos fenômenos de exclusão e desigualdade social. O que, obviamente, não exclui que setores que hoje financiam e apoiam o assalto à República multipliquem substancialmente suas rendas e engordem suas contas nos paraísos offshore…
*Economista, ex-Cepal e ex-FAO
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