Trump presidente: “a direita se credenciou como líder do movimento contra a globalização”
- Valéria Nader, da Redação
Os Estados Unidos ainda absorvem a vitória de
Donald Trump e o mundo continua perplexo com mais um resultado
eleitoral pautado pelo discurso de extrema-direita e sua
demonização do “outro”. Para analisar os impactos da volta do
Partido Republicano ao poder, entrevistamos Scott Martin,
cientista político e especialista em relações
internacionais, também professor da New School e da
Universidade de Columbia, ambas em Nova York, onde acumula estudos
sobre questões latino-americanas e brasileiras.
“Já existem planos em andamento para uma
gigantesca manifestação pelos direitos civis no dia de Martin
Luther King, em janeiro, e a Marcha do Milhão de Mulheres em
janeiro, em Washington, ao redor do dia da posse de Trump. A vitória
de Trump parece unir feminismo, direitos civis, ambientalismo,
movimento sindical, direitos dos imigrantes e outros ativistas de
uma maneira que Obama deve ter sonhado algum dia. Vemos muitas
pessoas que nunca tiveram o hábito de protestar indo às ruas,
jovens, velhos, famílias...”, pontuou, destacando não lembrar de
uma eleição tão rapidamente seguida de protestos no país.
Ao longo da conversa, Martin desfaz alguns mitos a
respeito de uma possível faceta menos ameaçadora e virulenta de
Donald Trump, em parte inflados pelas conhecidas conexões
politicas e econômicas de Hillary Clinton, ainda secretária de
Estado do governo Obama. Isso significa que uma dose menor de
intervencionismo e militarismo pode ser mera ilusão, assim como
sua promessa de voltar a olhar “pra dentro” numa economia de fluxos
financeiros de imbricações praticamente irreversíveis.
“Ao final, os instintos isolacionistas para
‘reconstruir a América’ serão truncados por impulsos
militaristas e uma tendência a ver o mundo nos termos do ‘nós contra
eles’ e a ver um terrorista atrás de cada conflito. Não estou
dizendo que os neocons estão completamente de volta ao
controle, como sob Bush filho, mas parece que unilateralistas e
militaristas estão de volta sob Trump. É por isso que os japoneses e
os europeus estão profundamente preocupados”, destacou.
Além de alertar para possíveis retrocessos com
países latino-americanos, no que a relação com o México será o
ponto mais tenso, Scott Martin lamenta o fato de haver uma
consolidação do fenômeno de resistência aos processos
globalizantes capitaneado pelo discurso populista de direita.
Por fim, a despeito da habitual crítica à esquerda sobre a
incapacidade de Obama frear dinâmicas históricas de opressão e
injustiça, o professor faz um balanço mais amigável de seus oito
anos de mandato.
“A ideia de que estávamos em uma ‘América
pós-racial’ com Obama foi sempre fantástica. Há limites no que um
presidente pode fazer, e acredite que ele tentou bastante, no
controle de armas, na reforma da justiça criminal, denunciando
especificamente o aumento do abuso policial e assassinatos em
todo o país, os quais o governo federal não pode controlar
diretamente ou resolver com muita facilidade. Ele sempre foi
bloqueado pelo obstrucionismo republicano no Congresso e pelos
limites do federalismo, onde a maioria dos estados está nas mãos
dos republicanos”, resumiu.
A entrevista completa com Scott Martin pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual o significado da vitória eleitoral de Donald Trump para os Estados Unidos e o mundo, sob seu ponto de vista?
Scott Martin: Odeio ser
alarmista, mas são tempos muito preocupantes. Vê-se um
ressurgimento da extrema-direita nacionalista, que se encaixa
na tendência do Brexit, no impulso de uma extrema-direita e
partidos nativistas no Leste Europeu que rapidamente ganham
apoio na Europa Ocidental. Isso já encorajou a simpatia por Marine
Le Pen e seu National Front na França, embora eu espere que por lá
ainda haja uma retomada a favor dos valores republicanos
profundamente enraizados.
Alguns já dizem que estamos nos
“desglobalizando”, em termos da participação do comércio e
fluxos financeiros nacionais no PIB mundial. Isso sinaliza que,
como o TPP (Tratado Trans-Pacífico) está morto, não é possível
imaginar o avanço das conversas na OMC (Organização Mundial do
Comércio) com Trump no poder. E o NAFTA será minimizado ou
descartado. Podem ocorrer guerras comerciais com a China. Nada disso
será particularmente bom para os trabalhadores e os empregos, e
são eles, mais que as multinacionais, quem sofrerão a pior parte.
Um protecionismo mercantil na linha “cada país
por conta própria” pode ganhar força. A posição de Trump em
questões como o acordo nuclear com o Irã, OTAN (Organização do
Tratado Atlântico Norte) e outras alianças centrais, o provável
abraço em Assad pra derrotar o Estado Islâmico (EI) e um
unilateralismo mais musculoso dos EUA pelo mundo são prováveis, e
perigosos. A abordagem conciliatória com Putin e a Rússia
praticamente soa como recuar aos dias de grandes potências com
suas respectivas esferas de influência, redividindo o mundo em
blocos.
Os flertes com Putin durante a campanha, em meio à
ciberespionagem da Rússia e os vazamentos do wikileaks a
mostrarem suas conexões com os russos, fazem desses problemas muito
graves do ponto de vista do Estado de Direito e da segurança
nacional. Leis podem ter sido quebradas, mas ninguém está
investigando. E não fiquemos surpresos se a tortura e a técnica
de afogamento voltarem à política norte-americana em seu
tratamento com suspeitos de terrorismo.
Correio da Cidadania: O
que você pode comentar da cobertura midiática do processo
eleitoral, especialmente sobre a maneira como Trump foi
retratado desde o longínquo início das campanhas eleitorais e até
depois dos resultados das pesquisas?
Scott Martin: The Economist
se expressou da melhor forma: “os eleitores de Trump o levaram a
sério, mas não literalmente, enquanto seus críticos tomaram suas
palavras literalmente, mas não o levaram a sério”. Ele bateu na
“mídia liberal” e no establishment, enquanto, ao mesmo tempo, usava
a mídia brilhantemente. Usou o twitter pra se comunicar
diretamente com milhões de seguidores. Moldou a narrativa da
mídia através de ligações diretas para a CNN, que o entrevistava
onde quer que ele estivesse no momento. A mídia baseada em fatos, em
seu zelo por ser imparcial e equilibrada, deu a ele uma
plataforma mesmo sem levá-lo a sério.
A CNN mostrava seus comícios ao vivo. E a “mídia
liberal” tendia a banalizá-lo nas primárias do Partido
Republicano e até nas eleições gerais, pensando que sua retórica
o faria inaceitável para amplas faixas do eleitorado. Isso se
provou um pensamento ingênuo, embora existissem algumas vozes de
alerta entre os comentaristas de esquerda (Robert Reich, o
cineasta Michael Moore, parcelas da ala de Sanders-Warren na
esquerda do Partido Democrata). Eles fizeram advertências e
Moore previu sua vitória.
Outro ponto é o quanto se nota a fragmentação da
mídia, e como Trump explorou tal fato. Ele pôde projetar uma imagem
(mais moderada) através da mídia convencional impressa e
televisiva, e uma outra através da franja midiática de
extrema-direita e seu ódio, como o Breitbart ou outros sites nos
quais notícias falsas, acusações bizarras ou apenas retóricas
racistas, homofóbicas e misóginas podiam ser amplificadas
pelas redes sociais e outras mídias que tais seguidores,
apologistas e fanáticos produzem e disseminam.
Foi uma caixa de ressonância da
extrema-direita. Os conservadores da ala “NeverTrump” ficaram
fora, mas foram muito discretos. Por fim, aqueles do Partido
Republicano que não o apoiaram abertamente, ou até fizeram
oposição, “entraram no time” agora. É uma situação perigosa, de
poder sem controle, com as duas casas legislativas dominadas pelos
republicanos, a chance de mudança do equilíbrio de forças na
Suprema Corte e o domínio republicano na maioria dos estados.
Correio da Cidadania: Você acredita que mais gente irá às ruas protestar depois desta eleição?
Scott Martin: Isso já está
acontecendo e é um acontecimento pós-eleitoral sem precedentes.
Ao menos eu nunca vi isso nos meus 55 anos, o que inclui a vitória de
George W. Bush numa eleição cheia de irregularidades na contagem
dos votos da Flórida. Tampouco aconteceu após a eleição de Bush pai
ou depois da vitória de Reagan, ou ainda de Richard Nixon.
As pessoas não estão protestando pelo fato de
Trump ter vencido no colégio eleitoral (nem mesmo aqueles que odeiam
essas regras que custaram duas presidências aos Democratas em 16
anos). Protestam contra sua retórica divisionista e odiosa, suas
promessas de políticas anti-imigrantes. Contra direitos de
mulheres, negros, latinos. Isso nunca aconteceria se algum outro
nome dentre os republicanos tivesse ganhado, como Jeb Bush ou John
Kasich. Trump quebrou parâmetros com seus fortes apelos ao
nacionalismo branco e racista. Não significa, é claro, que todos
os seus eleitores apoiem tais ideias. Muitos se levaram pela
ansiedade de ver algo ser feito contra as elites políticas e pelo
declínio de longo prazo dos salários e níveis de bem-estar pessoal
na economia, o que Trump abordou brilhantemente.
Sim, eu acredito que os protestos vão crescer. Já
existem planos em andamento para uma gigantesca manifestação
pelos direitos civis no dia de Martin Luther King, em janeiro, e a
Marcha do Milhão de Mulheres em janeiro, em Washington, ao redor do
dia da posse. A vitória de Trump parece unir feminismo, direitos
civis, ambientalismo, movimento sindical, direitos dos
imigrantes e outros ativistas de uma maneira que Obama deve ter
sonhado algum dia. Direitos e ganhos em diversas áreas estão
ameaçados. Parece uma ameaça existencial a várias situações que
já estavam garantidas, dadas como certas até agora, de modo que
vemos muitas pessoas que nunca tiveram o hábito de protestar indo às
ruas, jovens, velhos, famílias...
Correio da Cidadania: É
possível fazer previsões sobre o governo de Trump? Mais
especificamente, o que pensa que pode acontecer com as leis
migratórias e o programa de saúde Obama Health Care?
Scott Martin: A maioria dos
sinais é bem problemática, mesmo a poucos dias de alguns chamados à
“unidade”. Um conselheiro próximo da Casa Branca, com autoridade
semelhante à de chefe de gabinete, encabeçou o discurso de ódio e
falsas notícias do website Breitbart (Bannon). A EPA (Agência de
Proteção Ambiental na sigla em inglês) e o Ministério do
Interior devem ficar nas mãos do “Big Oil” e lobistas dos
combustíveis fósseis que negam o aquecimento global. O
departamento de Estado possivelmente e o cargo de assessor de
Segurança Nacional, já com a nomeação do general Flynn,
demitido por Obama de um cargo de inteligência por
incompetência, devem ir para as mãos de pessoas de estilo
autoritário e bem possivelmente com pouca ou nenhuma
experiência em política externa. Nas nomeações da Suprema
Corte, onde agora há uma vacância, e poderíamos ter mais uma ou duas
neste mandato presidencial, a tendência nas nomeações será
contra o aborto, contra as mulheres, contra os direitos civis, contra
os direitos trabalhistas, pró-business e provavelmente
pró-expansão da autoridade executiva.
Na imigração, parece que um mínimo de 2 a 3
milhões de imigrantes serão deportados como “criminosos”, apesar
de especialistas colocarem em dúvida o fato de haver tamanha
quantidade de criminosos após cerca de 2 milhões terem sido
deportados nos anos de Obama. A segurança da fronteira será outro
grande foco (onde Obama já fortalecera a segurança a tal ponto que
tivemos mais mexicanos voltando do que entrando nos Estados Unidos
nos últimos cinco anos, como mostram pesquisas). Teremos o aumento
dos abusos de direitos humanos nas fronteiras, suponho.
Poderia, eventualmente, com a fronteira
“segura”, ser feito algum esforço em favor da concessão do status de
cidadão, ou pelo menos de residência permanente, para os milhões
que passaram aqui estes anos, pagaram impostos sem receber
benefícios e forneceram mão de obra em regiões onde os cidadãos
norte-americanos não querem trabalhar? Podemos imaginar esse
enredo, se formos bem otimistas.
Seria como “Nixon na China” (alusão à
inesperada política de abertura do ex-presidente conservador ao
país asiático ainda à época do Mao, também nome de uma famosa ópera),
de acordo com o momento. Mas Trump empregou imigrantes legais e
ilegais, e pode ser cioso das preocupações do empresariado
quanto à força de trabalho disponível. Coisas estranhas já
aconteceram! De toda forma, muitos republicanos conservadores,
como George W. Bush, já quiseram isso, até a ideia se tornar
politicamente tóxica em relação ao nativismo criado nas cabeças
obscuras das bases e bancadas republicanas. Mas um bocado mais
teria de acontecer na economia, emprego, segurança da fronteira
para Trump, em algum momento, se sentir seguro o bastante, frente a
essa base social, em levar tal política adiante.
Correio da Cidadania: Sobre questões
relativas ao comércio, acredita que Trump irá realmente levar o
país para políticas comerciais mais nacionalistas, restritivas
e protecionistas?
Scott Martin: Sim, embora eu
tenha esperanças de que haja contrapesos. Além dos acordos
comerciais com futuro nebuloso que mencionei anteriormente,
ele poderia se valer agressivamente das leis antidumping para
propósitos protecionistas contra determinados setores, em
determinados países. Ou declarar determinados países
“manipuladores do valor das suas moedas” para fins comerciais. O
que, particularmente com a China, pode incitar retaliação.
Acho que nós estamos em um momento de extenso
intervalo no avanço do comércio global através de acordos de
comércio e investimentos regionais e multilaterais. Enquanto
isso é teoricamente bom para os direitos trabalhistas, meio
ambiente e proteção ao consumidor, que na verdade tendem a
ser tratados selvagemente nesses acordos, não é necessariamente
bom para o comércio global ou para as perspectivas dos países em
desenvolvimento que dependem desproporcionalmente da
abertura dos mercados do norte.
Mas, falando de forma geral, a globalização tem
produzido apenas uma crescente desigualdade e lacunas entre os
possuídos e despossuídos no norte, e também em muitos lugares do sul
global. Uma pausa não é algo ruim, mas a esquerda (tanto do norte
quanto do sul) precisa de uma agenda de inclusão, de integração
social, e isto ainda não foi articulado. Ninguém ganha com o
aumento do protecionismo e do mercantilismo no final das contas.
E nós não discutimos o meio
ambiente. Trump pode significar um efetivo ponto final aos acordos
de Paris. Os EUA têm de conceder um aviso prévio de quatro anos, mas o
governo pode efetivamente rescindir as ordens executivas sob as
quais os Estados Unidos estavam cumprindo suas promessas quanto às
emissões de usinas elétricas e automóveis, e outros países
provavelmente não agirão se os EUA estiverem recuando. Um
desastre no tema das mudanças climáticas. Mas, ao mesmo tempo, há
resistências. Do empresariado já comprometido com as
estratégias verdes, de 300 empresas que já firmaram abaixo
assinado contra retrocessos na política ambiental e na adesão ao
Acordo de Paris. E o estado da California, que sempre foi pioneiro
nas políticas contra emissões de automóveis, e com cerca de 40%
da população, pode voltar a emitir normas que acabariam valendo na
prática para as montadoras nacionais, como aconteceu à época de
Bush.
Correio da Cidadania: Na sua opinião,
como o próximo presidente dos EUA irá lidar com os países da América
Latina? Quais poderão ser as diferenças de estratégia entre as
administrações Obama e Trump?
Scott Martin: Imagino um retorno
a um unilateralismo agressivo. Um congelamento, senão um
retrocesso, na normalização com Cuba, embora eu espere que
o Trump homem de negócios vença o Trump homem da política nesse
assunto. Direitos humanos e democracia serão preocupações menos
prementes senão inexistentes. Talvez haja corte nas verbas de ajuda
externa e de assistência (bilateral e multilateral), dada a
tendência isolacionista. No tema guerra às drogas, a tendência é a
permanência do quadro atual ou uma regressão se, de alguma
maneira, houver uma retomada do modelo de combate ao terrorismo
da gestão Bush filho, que associe narcotráfico com terrorismo. E
vamos ter inexoravelmente um aumento de gastos militares,
sobretudo para políticas “contra-terroristas”.
Minha maior preocupação é no que toca as
relações com o México, o país que sigo de perto, para onde viajo
frequentemente e onde tenho relações familiares. Minha esposa é
mexicana e muitos familiares vivem lá. Trump
quer, simultaneamente, ao menos dobrar o número de deportações
para o México, fechar a fronteira com um muro e, na renegociação
do NAFTA, extrair grandes concessões do México, já que o Canadá
afirmou a disposição de aceitar reabrir o NAFTA, o que deixa o
México sem escolha. Isso poderia gerar uma explosão social, com
milhões de pessoas de volta ao país, cortes no mercado de trabalho,
onde milhares de empregos dependem da integração com os EUA, sem
poder mais contar com a imigração como uma “válvula segura”
tradicional, conforme ocorreu nas últimas décadas, e que permitiu
ao México diminuir os custos sociais de uma continuada e
aprofundada política econômica neoliberal.
Tudo isso com um presidente mexicano de
centro-direita que é terrivelmente impopular por conta de
corrupção, de um péssimo desempenho em direitos humanos e
investigações nas violações dos mesmos (como no caso dos
estudantes desaparecidos), além também de sua péssima
performance econômica, com reformas como a privatização do
petróleo, que não leva benefícios econômicos para a maioria dos
mexicanos.
O peso mexicano (moeda do país) vem em queda
livre desde as eleições, com todas essas preocupações e
incertezas. O México apostou pesado em uma integração com os
Estados Unidos desde os anos 80 e 90, o que agora parece um colossal
erro histórico. É uma panela de pressão na fronteira sul dos EUA.
Eu predigo (e espero) que o nacionalismo de
esquerda, o MORENA e Lopez Obrador terão de agir juntos e canalizar
todas as queixas nas próximas eleições, de 2018. O povo mexicano
está cansado do duopólio conservador PRI-PAN no poder, e ainda
ultrajado pelo novo presidente dos EUA, que insultou a todos os
mexicanos como um povo. Eu penso que a reação contra a direita
estadunidense, populista e nacionalista, virá de uma esquerda
mexicana ascendente, também populista e nacionalista, mas
espero que tenha uma natureza eminentemente democrática.
Isso pode ocorrer também no restante da região?
Não tenho certeza, uma vez que governos ditos de esquerda
implodiram em seus países devido a diversos erros relacionados
às suas formas de atuar (que espero que estejam prestes a cair na
Venezuela), seguidos ainda do oportunismo da oposição e de
questionáveis sucessores de direita e centro direita. Mas, caso
ocorresse, seria uma reentrada para movimentos
anti-imperialistas e nacionalistas, que poderiam retornar
enquanto um agressivo Tio Sam mostra sua cara novamente.
Finalmente, qualquer melhora que tenha havido
na relação hemisférica sob Obama provavelmente não prosseguirá,
e pode ser revertida.
Correio da Cidadania: Sobre essas questões, como ficam as relações com a Rússia e Oriente Médio?
Scott Martin: Estou muito
preocupado, por motivos mencionados anteriormente. Não é nada
auspiciosa a conciliação com um ditador nacionalista de
direita Na Rússia, que faz coisas ruins em casa, nas suas fronteiras e
na Síria, e que ainda poderia fazer pior no Leste Europeu e no
antigo império Soviético. Por exemplo, na Ucrânia e nos países
bálticos
Pode haver uma recuo na beligerância vis-à-vis
ao Irã, que deve fortalecer os mullahs, ameaçar a paz e Israel.
Talvez as botas sejam trajadas nos campos de guerra no Iraque
novamente (volta de soldados americanos em cena) e na luta contra o
EI (Estado Islâmico). Possivelmente haverá um movimento para
abraçar uma monarquia autoritária saudita, que comete atos
abomináveis no Iêmen e faz seus jogos com o islã radical com seu
financiamento internacional. Mas será pressionado a tomar
partido aberto contra o novo inimigo declarado, o “islamismo
radical terrorista”. O cenário ficará mais complicado caso se
tomem medidas extremas na política de imigração, como o registro
de muçulmanos ou ainda maiores restrições à entrada de cidadãos
de países árabes para estudarem ou fazerem turismo ou negócios.
O anti-paz Netanyahu, que agiu de modo vil
falando contra Obama no Congresso, estará agora empoderado a
resistir ao processo de paz, proteger e aumentar as colônias e
assentamentos israelenses em território palestino. Ele
comemorou a vitória de Trump e está extasiado. Com nenhuma
esperança de paz, a intifada vai provavelmente ressurgir nos
próximos anos. E Trump provavelmente a denunciará como
“terrorista”.
Correio da Cidadania: Houve algumas
análises na América Latina, especialmente no Brasil, destacando
o fato de que a administração Trump poderia ser menos
militarista que seria a de Hillary Clinton, o que teria um impacto
positivo não apenas em países como o Brasil, mas também no Oriente
Médio. Como você responderia a esses comentários?
Scott Martin: Isso pode provar ser
um pensamento ilusório. Certamente, Hillary era mais agressiva
como Secretária de Estado do que Obama, e provavelmente teria
pressionado por uma zona de exclusão aérea na Síria. Apoiou ainda a
intervenção na Líbia sem uma estratégia clara pós-Kadafi. Mas,
sob Trump, é provável uma escalada maior de gastos militares, o que
é ruim para o povo norte-americano e não pode ser bom para o mundo.
Assim como deve haver mais uso da ajuda militar bilateral para
sustentar aqueles que são tidos como aliados, não importa quão
corruptos ou antidemocráticos.
Um país que eu sigo e para onde onde viajei em
meados desse ano é a Etiópia. Um regime brutal envolveu-se na
repressão de um ano de protestos pacíficos espalhados pelo país.
Agora, vê-se o começo de um estado de emergência, declarado mês
passado, que suspende todos os direitos, amordaçou a imprensa já
censurada e bloqueou a Internet.
Os EUA e o Ocidente, que ajudam e promovem um
regime administrado por uma pequena minoria étnica como aliada do
Ocidente na perigosa região do Chifre da África, compactuaram
com essa repressão brutal do povo etíope. eles continuarão a
perseguir tais políticas de curto prazo e injustas sob Trump. Só
tende a piorar. Esse é apenas um exemplo. A justificativa será a
"guerra ao terror", e tudo será visto através dessa lente. Penso que, ao
final, os instintos isolacionistas para "reconstruir a América"
e olhar para dentro serão truncados por impulsos militaristas e
uma tendência a ver o mundo nos termos do "nós contra eles" e a ver um
terrorista atrás de cada conflito, atrás de cada refugiado.
Se olharmos para os potenciais Secretários de
Estado inicialmente sob consideração, esta é a maneira que eles
veem o mundo. Eles apoiaram a invasão do Iraque. Já um Mitt Romney
seria diferente, se fosse o escolhido. Se olharmos para cargos de
Assessor de Segurança Nacional (Flynn) e diretor da CIA
(Pompeo), há sinais preocupantes quanto à proximidade com a
Rússia, o foco exclusivo no islã radical como eixo da política
externa, a oposição ao tratado da anti-proliferação nuclear com o
Irã. Não vejo que hajam aprendido as lições da invasão ao Iraque.
Não estou dizendo que os neocons estão completamente de
volta ao controle, como sob Bush filho, mas parece que
unilateralistas e militaristas estão de volta sob Trump. É por
isso que os japoneses e os europeus estão profundamente
preocupados. Sobre a tendência a aplacar a Rússia. Sobre o
desgaste de alianças sob o disfarce de “repartição de encargos”.
Sobre a conversa frouxa de que o mundo estará melhor lá fora com mais
aliados dos EUA possuindo armas nucleares.
Meu senso é que há duas áreas mais prováveis de
confronto perigoso, onde a política dos EUA será testada e pode
contribuir para resultados realmente ruins para o mundo: a Coréia
do Norte e a China. A Coréia do Norte tem cada vez mais a
capacidade de projetar mísseis nucleares para longe da Ásia,
inclusive contra os EUA. As sanções não funcionaram e nenhuma
outra estratégia funcionou. Acho que pode haver uma forte tentação
de Trump em tentar algo como o ataque convencional de Israel contra o
reator nuclear do Iraque sob Saddam. Isso poderia levar a uma
potencial escalada de confrontação nuclear na Ásia, que pode
acabar se espalhando para fora. Coisas perigosas.
Na China, eu acho que teremos crescentes
escaramuças e tensões sobre o comércio internacional e as
linhas marítimas, como no mar da China do Sul, e outras questões
relativas à China se afirmar como uma potência global sob o regime
atual, enquanto Trump afirma o poder dos EUA. A China precisa ser
contida e é uma ameaça para seus vizinhos asiáticos, além de cada
vez mais repressiva em casa. Mas eu duvido que haverá uma política
inteligente para lidar com isso sob a nova administração.
Correio da Cidadania: Finalmente, a
administração Obama recebeu análises muito controversas ao redor
do planeta, algumas apontando suas limitações em lidar com
questões sociais e raciais internas, enquanto outras ainda
apontaram uma não esperada e desnecessária escalada de
militarização. Tendo isto em mente, como avalia a administração
Obama em seus oito anos de duração?
Scott Martin: Dado o acordo com o
Irã, a abertura a Cuba e os esforços para retirar tropas do
Afeganistão e Iraque, acho que a crítica da militarização da
política externa é sem méritos. No entanto, a ideia de que
estávamos em uma "América pós-racial" com Obama foi sempre
fantástica. Há limites no que um presidente pode fazer, e acredite
que ele tentou, no controle de armas, na reforma da justiça
criminal, denunciando o aumento do abuso policial e
assassinatos em todo o país, os quais o governo federal não pode
controlar diretamente ou resolver com muita facilidade. Ele
sempre foi bloqueado pelo obstrucionismo republicano no
Congresso e pelos limites do federalismo, onde a maioria dos
estados está nas mãos dos republicanos. Se ele reforçou
deportações de pessoas com antecedentes criminais, isso foi
feito pelo menos através do Estado de Direito e também em um esforço
para tentar abrir o caminho para a reforma da imigração. E foi feito
em concomitância a movimentos paralelos, como a ordem executiva
que deu a 800.000 pessoas que vieram para os EUA como crianças um
status legal temporário, até o parecer final do Congresso.
Apesar de um declínio no crime, e no crime
violento em especial, a direita, seus meios de comunicação e os
políticos açoitaram os medos do cidadão, de modo que muitos
acreditassem que o crime estava aumentando, de acordo com algumas
pesquisas. O “Black Lives Matter Movement” (movimento de jovens
associado à causa negra) contra os assassinatos e brutalidades
da polícia foi demonizado pela direita (e talvez pudesse aprender
algo em tática e retórica da comunidade tradicional de
direitos civis).
Os imigrantes foram confundidos com criminosos
na narrativa de direita que Trump promoveu, mas outros também
trouxeram essa narrativa antes dele. No entanto, Trump bateu
insistentemente nessa tecla. "O outro", que era negro, marrom,
muçulmano, latino, um imigrante ou uma feminista, foi retratado
como uma ameaça. Para a segurança. Para "nossos trabalhos". Para o
"nosso país". Para a masculinidade. Para o privilégio branco. Tudo
isso de alguma forma foi uma reação a todos os valores
progressistas que Obama e sua coalizão representam. O ódio e a
divisão ganharam o dia. Mas a narrativa de Trump incidiu também em
uma genuína questão econômica e social, considerando que os
salários médios nos EUA são hoje mais baixos do que nos anos 70.
E Hillary era uma mensageira muito falha para
tal combate, com os laços de Clinton com o NAFTA e Wall Street, seus
grandes doadores, seu servidor de e-mail, a confusão do público com
o privado na Fundação Clinton quando ela estava no governo, a
identificação dos Clintons com a desregulamentação financeira
e com políticas de livre comércio que remontam aos anos 90. Ela era
o status quo em uma "eleição de mudança". Uma política de carreira,
ainda que ela tenha feito bastante coisa boas na sua trajetória.
Bernie Sanders explorou essa mesma espécie de
ansiedade econômica muito real, como fez Trump, afirmando que
Hillary não tinha uma boa mensagem. Houve um debate sobre classe,
globalização, inclusão e exclusão nessa eleição e a mensagem
de Trump ganhou o dia, com pessoas suficientes para levar ao poder
esta nova geração de populismo nacionalista de direita.
Tivemos tais figuras antes, mas nunca como
presidente. Ele é muito pior, muito mais ameaçador em casa e pelo
menos igualmente ameaçador no exterior, comparado a George W.
Bush ou Reagan ao chegarem ao cargo. Vivemos em tempos muito
perigosos, tanto neste país como em todo o mundo. Neste momento, a
ala direita se credenciou como “dona” do movimento contra a
globalização, posição que antes pertencia à esquerda. Agora, esse
movimento será direcionado para seus próprios e lamentáveis
fins de divisão e exclusão.
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