“NÃO OLHE PARA CIMA” NÃO É APENAS SOBRE NEGACIONISMO, POR ELIARA SANTANA
“Não olhe para cima” não é apenas sobre negacionismo, por Eliara Santana
Depois de um longo inverno, finalmente assisti ao filme “Não olhe para cima”.
Confesso a vocês que fui movida muito mais pela suposição do tema – filmes inverossímeis sobre catástrofes horríveis (adoro a modalidade, assim como os filmes de herói) – do que pelo grande debate que ele suscitou nas redes e outras mídias.
Como disse, fui esperando aqueles filmes deliciosos e tolos de catástrofes, que me fazem esquecer por um momento que temos um néscio ogro genocida na presidência que ignora solenemente a tragédia das chuvas, entre outras tragédias que assolam o Brasil. Mas me surpreendi.
O filme, pra mim, é uma deliciosa e poderosa crítica satírica sobre a organização e o modus operandi da sociedade contemporânea. É uma representação estereotipada que define e delineia os humanos contemporâneos na sociedade contemporânea.
Por isso, acho que o filme vai muito além de ser uma crítica ao negacionismo. Muito além – o que não significa que também não critique; sim, ele critica e muito. Mas a crítica contundente não se limita a apontar o dedo para negacionistas.
Na narrativa da colisão de um cometa gigantesco com a Terra (tema até banal entre os filmes de catástrofes) e as negativas que emergem, há todo um desenho do modo de vida contemporâneo, das pessoas, da relações, dos falseamentos, da necessidade de exposição, do machismo que não deixa as mulheres terem voz (mesmo quando são elas que descobrem os cometas), da necessidade de clicks, dos tapetes puxados em todas as instâncias (da academia ao mundo político, passando pelo jornalismo), das disputas de poder em todas as instâncias. Da absurda necessidade de sermos efetivamente ouvidos, quando nunca somos.
É um desenho da forma como o establishment constrói tudo isso, lucra com tudo isso e está de fato pouco se importando com cometas ou aquecimento global ou fome mundial. A nave do mainstream está sempre pronta pra fugir pra outro planeta…
Não vou dar mais detalhes dos personagens estereotipados, muitos facilmente identificáveis com personagens do mundinho real, porque não quero dar spoiller. Mas eles são ótimos, deliciosamente construídos.
“Não olhe para cima” expõe o modo como a sociedade contemporânea é construída. Por isso, ele não é simplesmente um filme sobre um herói da ciência que mostra a ignorantes que o mundo vai acabar. Ele revela muito mais ao tecer suas construções estereotipadas. Critica, por exemplo, o modo de estruturação do fazer científico, a correlação de forças na academia, a forma de organização e construção e interação, o academicismo que não dialoga com os humanos “comuns”.
O estereótipo do cientista super talentoso e especializado que ignora a vida mundana dos humanos “comuns” – e que simplesmente não sabe que uma famosa cantora se separou do namorado que a traiu com outra rsrs – cutuca, quem sabe, o distanciamento entre academia e mundo real, academia e pessoas comuns; os cientistas descobrem cometas que vão se chocar com a Terra, mas não sabem comunicar isso às pessoas. Os cientistas e pesquisadores sabem tudo sobre o cosmos das fake news, mas não conseguiram ainda falar num papo reto com as pessoas “comuns” sobre isso… talvez o filme seja também sobre isso.
“Não olhe para cima” escancara que a sociedade contemporânea é absolutamente midiatizada e se comporta a partir do olhar da e para a mídia. Por isso, o poder da mídia e sua estrutura para controlar as percepções e criar o consenso é bem desenhado, bem mostrado. A mídia é um poder ao lado de outros poderes.
E essa construção do filme me fez lembrar muito do que venho discutindo e aprendendo sobre letramento midiático e sobre a comunicação como de fato constitutiva de todos os processos – sociais, políticos, econômicos. Lembrei-me de uma fala preciosa de Len Masterman, um dos precursores do letramento midiático: “A mídia não integra nossa cultura. Ela É nossa cultura”.
“Não olhe para cima” confirma também que a idiotização e a desinformação são projetos políticos. Potentes. Bem desenhados. Bem arquitetados. Com intenções e propósitos bem definidos.
De fato, diante da nossa realidade – um presidente que nega vacina, que dança funk misógino no barco, que quer a população armada, que nega vacina para crianças, que anda feliz de jet ski enquanto pessoas morrem nas enchentes, que afunda a economia, que sepulta a democracia, que afronta os outros Poderes (paro aqui, porque a lista é enorme) –, o filme pode até parecer tosco e idiota. Mas ele é, na verdade, ácido nas críticas e na construção referencial estereotipada dos personagens e da realidade.
Pensando melhor, chego até a achar que o filme nem é tão estereotipado assim… afinal, precisamos lembrar que, como é dito no filme (único spoiller!), por aqui também ninguém quer dar as más notícias. Ninguém quer mostrar que o cometa vai acabar com a Terra. Todos querem dourar a pílula, falar que a eleição de Bolsonaro foi legítima e parte de um processo democrático, que Sergio Moro é contra a corrupção e nem desconfiava quem era Jair; todos querem dourar a pílula e falar que a economia está reagindo apesar da inflação galopante e da renda em queda livre, que o desemprego cai (apesar de aumentar o trabalho informal), todos querem omitir números para não dizerem que a desigualdade entre nós é brutal, querem omitir sujeitos históricos e dizer que foi “a década” que fez muito pelo Brasil. Enfim, nem tudo é exagero caricato.
Por tudo isso, acho que vale muito a pena ver o filme. Fica a dica.
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