quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Xadrez de Bolsonaro se desmanchando no ar

 


XADREZ DE BOLSONARO SE DESMANCHANDO NO AR, POR LUIS NASSIF

Peça 1 – o fim do ciclo Bolsonaro

Tudo o que é Bolsonaro se desmancha no ar ou boia no esgoto.

No início, as táticas de sobrevivência da família eram simples como o seu cérebro. Havia um mapeamento eficiente das redes sociais. A cada sinal de enfraquecimento de Bolsonaro providenciava-se um fato novo, uma frase escandalosa para um público acostumado a merda e circo. E, em começo de governo, os estragos ainda não eram sentidos.

A cada jogada repetida, os idiotas da objetividade saudavam: ele parece tosco, mas é um gênio político. Para a formiga, lagartixa é dragão. Saudá-lo como gênio intuitivo era a maneira de justificar a extraodrinária mediocrização institucional do país, o fracasso de todos os poderes, jogando a 7a economia do mundo sob o jugo de um idiota completo.

Agora, o modelo se esgotou. Especialmente porque, a cada dia que passa, surgem mais evidências do enorme apagão administrativo em que o país foi jogado, em um processo amplo de destruição, de inconsequência, de uma irresponsabilidade geral e irrestrita.

Em queda livre, Bolsonaro precisou administrar as alianças com prebendas mais substanciosas. E aí, se enrola de todas as maneiras, comportando-se como um náufrago no mar, e se agarrando a qualquer galho para se manter à tona.

Tenta cativar a Polícia Federal e cria uma crise monumental com a Receita e o Banco Central. Tenta cativar a classe médica bolsonarista, com mudanças para fortalecer o Conselho Federal de Medicina e para criar uma enorme demanda para a classe – obrigando crianças que irão se vacinar a pagar por uma consulta médica. E consegue jogar seu Ministro da Saúde na relação dos criminosos de guerra – que irão se ver com a justiça brasileira e internacional quando cessar esse pesadelo.

Peça 2 – o fim do ciclo militar

Fica claro, na quadra atual, que o governo Bolsonaro é fundamentalmente um governo militar. Centrão, olavistas e quetais são aliados de ocasião. A verdadeira cara do bolsonarismo são os militares que levou para o Palácio. 

Bolsonaro nunca foi do trabalho. É inimaginável vê-lo tomando decisões administrativas no dia-a-dia ou prestando atenção em qualquer tema de administração pública ou política. A verdadeira gestão de governo é feita pelos militares acantonados no Palácio – generais Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Eduardo Pazuello. E, em outros tempos, Fernando Azevedo.

São eles que definem os passos de Bolsonaro, alertam quando suas loucuras chegam às raias da ebulição, definem suas alianças políticas e, em tese, as prioridades administrativas.

Os resultados até agora comprovam ser uma das equipes mais canhestras e descompromissadas com o interesse nacional na história da República.

Em relação à ditadura, mantém a mesma insensibilidade sobre educação, políticas sociais e emprego. E, ao contrário da era Geisel, nenhum compromisso em relação a projetos de desenvolvimento.

É de sua responsabilidade direta o esvaziamento do sistema de inovação, do INEP, da CAPES, os atrasos na compra de vacinas e o consequente desastre do combate à pandemia, a crise com a Receita, os conflitos com governadores, o escandaloso orçamento secreto, os problemas ambientais.

Foram literalmente jantados pelas raposas do Centrão, que montaram suas tendas em pleno Palácio do Alvorada. 

Doravante, o militarismo na política só sobreviverá pelos chamados medos ancestrais. É o caso do Ministro Luis Edson Fachin, que inibiu-se com um mero twitter do general Villas Boas e, agora, leva para o Tribunal Superior Eleitoral um general representante do Partido Militar, como anteparo contra eventuais pressões da tropa.

Peça 3 – O tempo de Lula 3

Como tratado no Xadrez do Início da Maior Campanha Popular da História, todos os sinais indicam uma onda avassaladora em direção a Lula, que supera as eventuais discussões sobre vícios e virtudes pessoais do candidato e do partido. 

Afinal, em um momento em que a palavra de ordem é a busca da paz nacional, em torno de uma candidatura competitiva, que político poderia ser recebido nos salões e nos encontros com catadores de lixo, com moradores de rua, com movimentos sociais de todas as naturezas, nos salões internacionais e nos grotões? Esta é a prova do pudim, não simulacros de debates eleitorais entre candidatos indicados exclusivamente pela mídia.

A chamada Terceira Via tem um histórico de mediocridade. Em nenhum momento saiu dos salões, ousou misturar-se a qualquer coisa que cheirasse povo ou intelectualidade. Seu símbolo de status maior é Miami. 

Em 2014 havia diversos movimentos prestes a romper com Dilma Rousseff – LBTGI, educação inclusiva, Universidades, movimento negro. Mas qual a alternativa? Aécio Neves. Ficaram com Dilma.

Lula tornou-se a grande esperança e reside aí o problema. 

Peça 4 – o país de Tico e Teco

Lula assumirá carregando o peso das expectativas gerais da Nação.

Assumiu 2002 com esse peso. Não se tinha um país redondo, como alguns querem fazer crer. Os erros da privatização do setor elétrico, as loucuras cambiais que devastaram a indústria, os erros de Armínio Fraga e Luiz Fernando Figueiredo na condução da política monetária em 2002, a expansão da miséria por todos os quadrantes, tudo isso criou uma transição amarga.

Mas o Estado não estava destruído como agora. Nem a miséria era tão avassaladora.

Além disso, vive-se hoje em dia o período de maiores mudanças da história, desde a primeira revolução industrial. E tem-se um país partido ao meio e sem inteligência formada.

Hoje em dia, nos centros desenvolvidos, a elite intelectual já aponta nas tecnologias exterminadoras de emprego a maior ameaça à humanidade, não apenas por substituírem o trabalho humano, mas por torná-lo irrelevante. Por aqui ainda se trata o fenômeno como “o novo Iluminismo”.

Vamos a alguns exemplos simples, mostrando a incapacidade das instituições de juntarem o teco com o tico.

Teco-Tico 1

  1. A maior fonte de financiamento da Previdência são os encargos da folha de salários.
  2. Aprovada pelo Congresso, Supremo e mídias, a reforma trabalhista precarizou fundamentalmente o emprego e reduziu encargos da folha sem nenhuma espécie de compensação.
  3. Logo, irá comprometer irreversivelmente o financiamento da Previdência Social. 

Ou seja, 1 + 1 = 2.

E não houve um sopro de vida inteligente no Supremo e na mídia, antevendo esse desastre que recairá sobre as futuras gerações.

Teco-Tico 2

  1. A maior fonte de aparelhamento da máquina pública são os cargos comissionados – embora sejam relevantes para funções determinadas e restritas.
  2. A proposta de reforma administrativa aumentaria em dezenas de vezes o comissionamento.
  3. Logo, aumentaria o aparelhamento da máquina.

Ou seja, 1 + 1 = 2.

Por aqui, se saudou unanimemente a reforma, como maneira de conferir ao setor público a agilidade do setor privado e acabar com o aparelhamento.

Por aparelhamento certamente entendiam as funções e regulamentos típicos de Estado que atrapalham os grandes negócios públicos.

Teco-Tico 3

  1. As vinculações orçamentárias se destinam a preservar verbas para áreas essenciais, garantindo um piso de gastos para educação e saúde.
  2. Propõe-se, então, uma reforma orçamentária para dotar o orçamento de maior flexibilidade e. aumentar o atendimento à educação e saúde.
  3. Ou seja, acaba-se com a destinação mínima obrigatória de verbas para educação e saúde para poder aumentar a destinação de verbas para educação e saúde.

E nem se ruborizam.

Como um país em que exercícios lógicos simples não são compreendidos pelo tribunal do Congresso, do Supremo e da mídia, vai entender o cálculo diferencial das profundas transformações que virão pela frente?

Peça 5 – a crise da inteligência brasileira

A tragédia nacional, a razão maior do subdesenvolvimento brasileiro é a crise da inteligência brasileira. E não é por falta de inteligência: é por falta de canais institucionais.

A inteligência brasileira está distribuída em alguns centros universitários, em algumas consultorias, em alguns cérebros brilhantes. Mas os dutos que levam as ideias para os centros de poder estão irreversivelmente embolorados. Não conseguem avançar além dos slogans vazios de mercado. 

Os temas mais relevantes merecem uma ou outra análise, sem destaque. Mas nas manchetes, lides, chamadas principais – em suma, o que condiciona a opinião pública – preponderam palavras mágicas, “reformas”, “privatização”, um liberalismo escandalosamente superficial e com prazo de validade vencido em todos os centros de inteligência mundiais.

Desde a redemocratização, havia dois centros de racionalidade, o PSDB e o PT – cada qual com seus vícios e virtudes. O PSDB se esfarelou quando passou ao comando de José Serra e, depois, de Aécio Neves. E o PT jamais mostrou compreensão sobre os fenômenos da nova era, que já eram nítidos pelo menos desde meados dos anos 2.000.

  • Foi incapaz de perceber as transformações sociais promovidas pela inclusão de milhões de pessoas na classe média. A mudança de classe cria um novo cidadão. Em vez de incluídos agradecidos e mobilizador em torno de temas como solidariedade, projetos de país, surgiram novos cidadãos assimilando todos os vícios de pensamento da velha classe média individualista, crentes que chegaram ao sucesso pela meritocracia, exigentes em relação aos serviços públicos e descontentes com a estagnação da economia. Sem nenhum trabalho de base, viraram presas fáceis para os neopentecostais.
  • Não percebeu o avanço desestabilizador dos algoritmos nem após a espionagem da NSA sobre a presidente da República.
  • Não percebeu os riscos do aprofundamento da financeirização, com a falta de regulação do mercado, e Banco Central e Fazenda atrelados aos interesses imediatos do mercado.
  • No momento em que o mundo já trabalhava a 4a revolução industrial, voltou-se para o modelo antigo dos campeões nacionais – uma excrescência que desestruturou a pecuária e a indústria do couro, criou enormes ressentimentos no meio empresarial e transformou empresas nacionais em campeões globais, sem nenhum ganho estrutural para o país.
  • Com exceção de uma iniciativa isolada de José Genoíno, não cuidou de envolver a alta burocracia pública e militar em projetos de país. Sem projetos e sem saber onde se situar, cada qual resolveu atuar no vácuo-do-meu-pirão-primeiro. O país tornou-se uma enorme ópera bufa, com cada poder lançando seu candidato a estadista, o MPF com Janot, o STF com Barroso, as FFAAs com Villas Boas, o Judiciário com Moro. Só faltou o rei Momo.
  • Descuidou-se totalmente do Poder Judiciário, a ponto de escolher Ministros do STF sem compromisso com bandeiras sociais, atrasar indicações de Ministros do STF, do STJ, dos Tribunais Federais e do próprio Tribunal Superior Eleitoral – mesmo na época em que poderia ter impichado a chapa Dilma-Temer.

Mesmo assim, promoveu diversos avanços institucionais na máquina pública, especialmente nas políticas sociais, incluindo Educação e Saúde. Agiu como um contraponto racional às pirações imediatistas do ultraliberalismo à brasileira mantendo a máquina pública inteira.

Com o impeachment e a entrada de Michel Temer-Eduardo Cunha, todas as pontes de racionalidade implodiram. E as transformações do período anterior, pouco enraizadas na opinião pública, voaram com o vento do golpe.

Peça 6 – as prioridades

Agora, haverá o desafio de reconquistar e reconstruir o país, em meio às turbulências da maior crise das democracias liberais, maior que a dos anos 20.

O grande desafio contemporâneo é o poder corrosivo das novas tecnologias sobre o emprego, as relações sociais e as articulações políticas.

A polarização com a URSS obrigava o Ocidente a se cercar de algumas preocupações com o Estado Social e com a regulação, como forma de coibir abusos do poder econômico.

O fim da União Soviética marcou o apogeu do chamado homem liberal, a ideia de que o mercado seria capaz de substituir o Estado em todas as atividades. O homus liberal avançou em todas as frentes, levando a um individualismo exacerbado. Sem a ex-URSS, o fantasma do comunismo foi substituído pelo da regulação. A lógica é de que toda forma de regulação impediria o funcionamento adequado do mercado. A partir daí, o ultraliberalismo encontra sua melhor forma de expressão política, a ultradireita,

A única métrica de desempenho das empresas passou a ser o valor das suas ações no mercado. Em cima dessa lógica houve um processo de privatização selvagem de empresas públicas, substituindo monopólios públicos por monopólios privados em setores estratégicos. E o mercado passou a se apropriar de todas as instâncias de regulação, como o CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico), OAB-RJ Central, os órgãos de controle.

O desafio maior de Lula 3 não será apenas o da reestatização das estatais estratégicas , mas o aprofundamento da democracia em todas as instâncias, trazendo a sociedade organizada para o centro das políticas públicas e criando ferramentas de organização da sociedade desorganizada.

Em todos os casos, as ideias-força são:

  • Geração de emprego e renda.
  • Programas com visão sistêmica.
  • Corrente de colaboração / solidariedade
  • Prestação de contas.

Peça 7 – os programas prioritários

Já existe uma bela soma de experiências bem sucedidas que tiveram continuidade, experiências bem sucedidas sem continuidade, e ideias-chave para os novos tempos.

Ação federativa e pactos nacionais

O modelo campeão, o das Conferências Nacionais, consiste em montar estruturas estaduais e municipais sincronizadas com as estruturas federais setoriais. 

  • A partir da base, as Conferências Municipais definem prioridades que recebem uma primeira padronização nas conferências estaduais até serem uniformizadas nas nacionais, dando consistência e articulação aos programas federais.
  • O fortalecimento dos conselhos de secretários municipais e estaduais dos diversos setores da administração e das agências estaduais.

Agricultura familiar

  • Os programas de agricultura familiar casados com compras públicas.
  • O programa de bioetanol com agricultura familiar, ensaiado antes da descoberta do pré-Sal, e administrado pela Petrobras.
  • Aceleração da reforma agrária com apoio tecnológico da Embrapa, valendo-se da estrutura e do know how desenvolvido pelo Movimento dos Sem Terra.

Pequena e micro empresa

  • Rearticulação das ações de aprimoramento das PMEs através da parceria Sebrae-Federações de Indústria.
  • Reativação da lei que concede prioridade às PMEs em até 35% das compras públicas, mantidas igualdade de qualidade com as maiores.
  • Remontagem do Prominp.
  • Remontagem do MEI (Movimento Empresarial pela Inovação) artravés do qual grandes corporações “adotavam” PMEs e incutiam princípios de gestão pela qualidade e inovação.

Federações empresariais

  • Articulação da Finep-Fundações de Amparo à Pesquisa para financiar a inovação.
  • Remontagem das parcerias com Confederações empresariais, tipo a que foi criada e não lançada no âmbito da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial).
  • Fortalecimento dos programas de parceria CNI-Universidades federais, para pesquisa e desenvolvimento.

Políticas industriais

  • Reativação e ampliação do Programa de Desenvolvimento Produtivo (PDP), que permitiu lançar as bases de uma nova indústria da saúde no país.
  • Montagem de programas de mobilidade visando estimular soluções de baixo carbono para o transporte nas cidades.

Em suma, o desafio será montar a grande orquestração, o trabalho colaborativo e democrático em todas as frentes. E Lula, com seu poder de comunicação, ser o arranjador e o maestro condutor.

As redes sociais, que até agora serviram para propósitos deletérios, serão o canal através do qual Lula poderá comandar a grande orquestra brasileira, com conjuntos espalhados por todos os lados, no trabalho de juntar pessoas e setores em busca de soluções conjuntas.

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