domingo, 20 de março de 2022

Efeito Heisenberg midiático torna São Paulo e Ucrânia estúdios de TV a céu aberto.

 

Efeito Heisenberg midiático torna São Paulo e Ucrânia estúdios de TV a céu aberto, por Wilson Ferreira

O Efeito Heisenberg ilustra muito bem o potencial efeito letal da grande mídia em guerras híbridas.  

Efeito Heisenberg midiático torna São Paulo e Ucrânia estúdios de TV a céu aberto

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

O que há em comum entre uma cratera que quase parou a Linha 11 da companhia de trens de São Paulo e mercenários brasileiros que ingenuamente facilitam a localização da ciberinteligência russa por postarem, nas redes sociais, fotos e clipes ao som de “Tropa de Elite”? Um efeito midiático que praticamente transforma acontecimentos em estúdios de TV a céu aberto: o “Efeito Heisenberg” – a mídia já não consegue transmitir os fatos, mas o impacto que a cobertura produz nos próprios fatos. Na verdade, o tempo todo ela cobre a si mesma. Enquanto a “alternativa técnica” da Prefeitura para tapar a cratera provocou cenas catastróficas de enchentes na região da Zona Leste de São Paulo, a vaidade das poses heroicas em busca de likes atrai os mísseis russos. O Efeito Heisenberg ilustra muito bem o potencial efeito letal da grande mídia em guerras híbridas.  

07/03: Por conta das fortes chuvas que castigaram a cidade de São Paulo, uma cratera se abriu ao lado da Linha 11 (Coral) entre as estações Tatuapé e Corinthians-Itaquera da Companhia Paulista de trens Metropolitanos (CPTM). A causa foi o rompimento de uma galeria por onde escoa as águas da chuva durante o forte temporal que caiu na cidade no domingo, 06/03. Os trens começaram a operar com velocidade reduzida, aumentando o tempo de parada e a lotação das composições. Apesar das alternativas colocadas à disposição pela secretaria municipal de transportes, o caos nas estações só crescia;

08/03: cobrado pelos telejornais locais, a prefeitura divulgou uma data para realizar as obras emergenciais que normalizariam a Linha 11: 45 dias, dada a “complexidade das obras”, mesmo com os operários revezando em dois turnos. “Aí fica lento né… demora, tudo mundo reclama!”, reclamou o apresentador Carlos Tramontina no final desse dia, no telejornal local SPTV 2. Já no Bom Dia São Paulo, o telejornal ocupou 20 minutos mostrando os trens lotados, dando destaque para deficientes físicos que não podiam desembarcar e pessoas que estavam perdendo o dia de trabalho. E outras temendo até perder o emprego!…;

09/03: Parece que o protesto de Tramontina no dia anterior foi a deixa para o que viria no dia seguinte. Paulo Galli, secretário dos transportes municipais, concede entrevista ao vivo, por telefone, para o apresentador Rodrigo Bocardi. Enquanto o secretario fala, são mostradas em loop imagens de estações lotadas e passageiros se engalfinhando para entrar no trem… mais imagens de trens lotados. “As pessoas estão no limite… mais 45 dias é impossível”, já tinha dito Bocardi na abertura do telejornal.

E ao entrevistar Marcos Monteiro, secretário de infraestrutura e obras da capital, o bate bumbo aumentou: “Venho com a pergunta que todos estão fazendo… como a gente consegue fechar um buraco como aquele da Marginal, com os carros passando por ali, com um tempo tão curto e esse tem que demorar 45 dias?”. E pressionou: “O senhor, como professor de estruturas de concreto, … não existe uma alternativa para preencher esse espaço com concreto?”. 

A crise da Linha 11 e as imagens de desespero de passageiros nos trens lotados sobe para a rede nacional, no telejornal Bom Dia Brasil.

10/03: E a “alternativa técnica” veio. Sob a pressão da grande mídia nos telejornais locais, iniciou-se a simples concretagem da cratera, liberando a Linha 11 em 24 horas.

15/03: O Bom Dia São Paulo dá destaque a moradores do bairro Artur Alvim que fecham a Avenida Radial Leste queimando pneus, contra os graves alagamentos na região que começaram logo depois da “alternativa técnica” emergencial da Prefeitura. 

Agora o telejornal não mostra mais o desespero de passageiros, mas de moradores e comerciantes que tiveram severos prejuízos em enchentes que se tornaram recorrentes no bairro. “Isso nunca aconteceu!”, protestam os moradores locais contra a “alternativa técnica” da Prefeitura.

Efeito Heisenberg na cratera da CPTM

Este episódio da crise aberta pela cratera (desculpem o trocadilho…) o “bate bumbo” dos telejornais locais, o anúncio dos 45 dias de obras, e depois mais jornalismo de megafone, a volta atrás da Prefeitura com uma “alternativa técnica” para finalmente terminar em pneus queimados dos protestos contra o efeito colateral de todo o imbróglio, é um didático exemplo daquilo que o crítico social Neil Gabler chamou de “Efeito Heisenberg”.

Para os leitores deste Cinegnose ainda não familiarizados com esse conceito, Gabler atribui esse fenômeno a um efeito secundário produzido pela mídia, resultante da sua onipresença que transforma, em muitos momentos, a sociedade em um gigantesco estúdio de TV. Da seguinte maneira: as mídias não relatam mais o que as pessoas fazem, mas os esforços dessas pessoas para obterem a atenção das mídias.

Disso decorre que na medida em que os agentes sociais vivem cada vez mais para as mídias, estas por sua vez cobrem a si mesma. Ou melhor dizendo, transmitem o impacto que as próprias coberturas jornalísticas geram entre os agentes sociais.

A alusão ao físico Werner Heisenberg (1901-1976) refere-se ao seu princípio da incerteza quântica, que o fenômeno midiático parece aludir – quando se estuda uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la. E a onipresença midiática teria esse mesmo destino quântico ao querer “estudar” os fatos – leia GABLER, Neil. Vida, O Filme, Companhia das Letras, 1999.

De ponta a ponta, do dia 07/03 ao dia 15/03, um “evento criado por Deus” (expressão do historiador Daniel Boorstin para designar acontecimentos objetivos, sem contaminação midiática), o temporal que abriu uma cratera, virou um evento mediatizado e midiático: num primeiro momento, a avaliação técnica mostrou a complexidade do problema (a galeria pluvial que impactava toda a região). 

Para logo se transformar no “caos da Linha 11 da CPTM”, aglomerações, empurrões, idosos e deficientes deixados para trás etc. E o jornalismo de megafone, principalmente de Rodrigo Bocardi – “a definição do prazo foi uma cobrança nossa!”, jactava o jornalista. E a retórica simplista da tábula rasa em comparar o “buraco do metrô” com o “buraco da CPTM”.

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