Eric T. Fair serviu no exército americano entre 1995 e 2000. Trabalhou no Iraque como um “interrogador” no começo de 2004. Atuou no presídio de Abu Ghraib, perto de Bagdá, que ficou famoso pelas fotos que vazaram de soldados subjugando prisioneiros.
De volta aos EUA, ele passou por severos problemas de saúde decorrentes de seus traumas como torturador. Contou sua história em diversos órgãos de imprensa e virou uma voz ativa contra a tortura. Nos últimos meses, deu aulas de literatura da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia.
Há meses, Fair escreveu um artigo no Washington Post sobre a necessidade de seu país discutir a questão das torturas abertamente. Nesta semana, soube-se do dossiê divulgado pelo Comitê de Inteligência do Senado, elaborado por espiões americanos de alto escalão após os ataques de 11 de setembro de 2001.
O documento escancarou que a CIA enganou a população sobre o que estava fazendo. Mesmo usando técnicas como simulação de afogamentos, espancamentos, exposição ao frio, privação de sono por 180 horas, hidratação retal e outras coisas, não obteve informações que impedissem o surgimento de novas ameaças.
O depoimento de Fair é relevante também à luz da divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. O que vai pela mente de um torturador arrependido?
“Precisamos abrir o livro”, diz ele, referindo-se a esse capítulo que vivia nas sombras. Vale o mesmo para o Brasil.
Sete anos atrás, escrevi um artigo sobre o meu papel conduzindo interrogatórios abusivos em lugares como Abu Ghraib e Fallujah. Eu terminei sugerindo que a história de Abu Ghraib e dos interrogatórios abusivos não tinha acabado. De muitas maneiras, eu pensei, ainda tínhamos que abrir o livro.
Nosso país passou os sete anos seguintes negando, ignorando ou defendendo a nossa utilização de práticas de interrogatório que manipularam e abusaram do bem-estar emocional, mental e físico de milhares de prisioneiros estrangeiros.
Nas últimas semanas, surgiram relatos sobre o aumento do atrito entre o comitê especial de Inteligência do Senado e os funcionários da CIA responsáveis por um relatório interno sobre os interrogatórios. Mas, em vez de um debate significativo focado na eficácia, na moral e nas consequências, há declarações sobre necessidade, eficácia e contexto.
A discussão pública sobre os interrogatórios tem sido dominada por um debate que se concentra em uma análise de custo-benefício. Será que o mandato de segurança suspende os padrões éticos? O bem-estar físico dos americanos é mais valioso do que os códigos de honra? Nós valorizamos os nossos corpos mais do que as nossas almas?
Eu simpatizo com os homens e as mulheres que se encontravam no fronte confrontados com essas perguntas difíceis. Eles se sentem isolados e oprimidos. Sua guerra tem sido ignorada por um percentual alarmante dos norte-americanos. Uma percentagem ainda maior não foi capaz de servir ao lado deles. Enquanto isso, esse mesmo público exige um padrão quase impossível de sucesso. Essas demandas e expectativas são canalizadas através líderes civis e militares que pressionam subordinados a produzir resultados nos ambientes mais desafiadores.
No entanto, os poucos de nós que tiveram a coragem de servir continuamos a ser responsáveis por nossas ações. E quando essas ações não cumprem as normas legais e morais, não podemos nos esconder das conseqüências.
Mesmo os mais ferrenhos defensores de práticas de interrogatório agressivas reconhecem a sua natureza maliciosa. Eles dizem que as táticas são um mal necessário, ou são praticadas nas sombras, ou pertencem ao escuro. Eles lutam para manter as histórias no silêncio. Eles as tornam confidenciais, desviam do assunto, negam. Eles não apenas fecham o livro: eles o apagam. Mas uma prestação de contas de nossas falhas é o único caminho a seguir.
No final do verão de 2005, eu voltei do Iraque pela segunda vez. Minha consciência foi envenenada, o meu código moral abalado. Eu abri mão do meu cargo na Agência de Segurança Nacional no ano seguinte e voltei para casa na Pensilvânia, em um esforço para abordar as conseqüências de minhas ações. Oito anos depois, a luta continua.
Passei a maior parte desse tempo pesquisando e buscando caminhos para o perdão. Estudei no Seminário Teológico de Princeton, participei de conferências sobre a tortura, publiquei artigos sobre o meu envolvimento nos interrogatórios e fiz amizade com um rabino que me mostrou um processo de arrependimento. O rabino me apresentou aos escritos de Maimônides, um filósofo judeu medieval que escreveu sobre a importância de ser específico durante o processo de confissão. Qualquer coisa a menos e a expiação é negada ao transgressor. Então deixe-me ser mais específico.
Em abril de 2004, eu estava lotado em um centro de detenção em Fallujah. Dentro do centro de detenção havia um escritório. Dentro do escritório havia uma pequena cadeira feita de tábuas de madeira compensada.
A cadeira era de dois metros de altura. As pernas traseiras eram mais altas do que as pernas dianteiras. O assento e o encosto se inclinavam para a frente. Tiras de plástico eram usadas para forçar o detento a ficar em uma posição agachada da qual ele não podia sair. Isso causava falhas musculares dos quadris, isquiotibiais e panturrilhas. Era uma tortura.
Os detidos em Fallujah eram o grupo de homens mais duro que eu já vi. Muitos matavam com um entusiasmo doentio. Eles muitas vezes massacravam o que restava de suas vítimas. É fácil argumentar que mereciam muito mais do que o que nós fazíamos.
Ainda assim, essas táticas mancharam minha alma de forma irrevogável. Mas, como membros de nosso governo e suas agências continuam a defender o uso da tortura, e como o povo americano continua a ignorar este capítulo sórdido, a mancha não é só minha.
Jose Rodriguez Jr., ex-chefe do Serviço Nacional Clandestino da CIA, insiste que aqueles que sugerem que nós agíssemos com menos brutalidade nunca sentiram a responsabilidade de proteger vidas inocentes. Eu senti esse fardo. E quando chegou a hora, eu não agi suavemente.
Estou lidando com os meus próprios fardos agora. Meu casamento está afundando. Meu papel como pai está se deteriorando. Meu filho está sofrendo. Eu não sou mais a pessoa que eu já fui uma vez. Eu tento me arrepender. Eu trabalho para me confessar. Eu tenho esperança de ser perdoado.
Como um país, temos de saber o que aconteceu. Precisamos confessar. Precisamos ser mais específicos. Precisamos abrir o livro.
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