PENSANDO AS INDEPENDÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA
Por Fábio Melo* Muitas vezes, os processos de independência da América Latina não são abordados de forma adequada nas aulas de história, seja pela falta de tempo, seja pela complexidade do conteúdo – que pode causar algumas confusões.
Este
texto, tem a pretensão de fornecer um apoio a estudantes e professores
que tem dificuldade de abordar, estudar e compreender o período das
independências, que, na maioria das vezes, acaba sendo resumido à ação
de alguns “personagens heróicos”, como Bolívar, na Venezuela, e San
Martín, na Argentina.
Neste
texto será abordado apenas as independências da América Latina de
colonização espanhola. Visto que, estas são, muitas vezes, relegadas a
um “segundo plano” frente a independência das Treze Colônias inglesas e a
do Brasil.
1. Contradições internas e externas.
Geralmente,
ao se tratar das independências da América Latina, é colocada a
tradicional contradição dos elementos locais, os criollos, contra os
elementos externos: funcionários e governantes (corregidores e
vice-reis) vindos da Espanha. Embora esta situação seja, de fato,
verídica, ela sozinha não explica os motivos e o posterior
desenvolvimento dos movimentos.
Os
criollos eram a classe dominante na América Colonial. Eram donos de
terras e minas, de trabalhadores escravizados e de indígenas submetidos a
trabalhos servis. É bem verdade que os criollos eram incomodados pelos
funcionários coloniais – muita vezes corruptos.
As
reformas boubônicas (século XVIII), tentaram adequar algumas ideias
iluministas de racionalidade às práticas de monopólio mercantilistas –
reforçando assim o poder colonial. Os criollos passaram a ser vigiados
de perto pelos funcionários espanhóis: o objetivo era evitar o
contrabando e assegurar o máximo de controle possível às atividades
produtivas exercidas pelos criollos; garantindo à Coroa os tributos
vindos de impostos cobrados nas colônias. Sendo assim, as reformas
boubônicas podem ser analisadas no sentido de “dividir para manter a
dominação”: uma vez que dividiu as colônias em novos vice-reinos e com
novos portos abertos ao comércio (comércio feito dentro da lógica do
exclusivo metropolitano – que muitos chamam de “pacto colonial”[1]).
A
rivalidade entre criollos e funcionários metropolitanos era, em última
análise, um conflito “externo”: pois envolvia basicamente as relações de
comércio entre os criollos, entre metrópole e outros países. As ideias
liberais estavam surgindo e os criollos não suportavam mais ser
asfixiados pelos sistema colonial.
Do
ponto de vista interno, na dinâmica das próprias colônias, além dos
criollos, que são a elite da sociedade, existem os já mencionados
índios, trabalhadores escravizados, e uma grande massa de mestiços que
tinha seu acesso restrito em muitos lugares (como igrejas por exemplo) e
certas profissões. A maioria dos indígenas era submetida a trabalhos
servis (nas fazendas e nas minas, a mita). Africanos eram submetidos a
escravidão no Brasil, Colômbia (na época colonial Nova Granada),
Venezuela e, principalmente nas Antilhas. Os mestiços, marginalizados,
trabalhavam onde podiam: em geral viviam de empregos assalariados nas
grandes cidades ou como peões nas regiões de pecuária extensiva (Rio da
Prata – Argentina, Uruguai – e Rio Grande do Sul, principalmente). Todos
estes grupos sociais vivendo em um mesmo
espaço gera tensão. Volta e meia esta tensão virava revolta: tal como o
movimento indígena de Tupac Amaru em fins do século XVIII. Tupac Amaru
(que embora índio, era de uma antiga família da nobreza inca e foi
educado no melhor estilo europeu em uma universidade do Peru) liderou um
poderoso exército de indígenas que matou um governador chamado Arriaga.
A
revolta de Tupac Amaru é bastante reveladora sobre as tensões sociais.
Ao mesmo tempo que pregava um “retorno ao passado”, das velhas tradições
incaicas, também mostrava a ojeriza aos elevados impostos do sistema
colonial. O que explica a brutalidade com que a revolta de Tupac Amaru
foi dizimada pelos exércitos criollos (Tupac teve a língua cortada e foi
esquartejado em praça pública) é a participação popular de índios,
mestiços... e até mesmo de alguns criollos, mais pobres e insatisfeitos.
Nesta
complexa contradição interna-externa, os movimentos de independência na
América espanhola se iniciam um tanto quanto “caducos”. Basta citarmos o
exemplo do levante de Francisco Miranda na Venezuela em 1806. Miranda,
um criollo de ideias radicais que lutou nos Estados Unidos e na França,
conseguiu apoio inglês e desembarcou na costa da Venezuela. Ele e seus
seguidores acreditavam que ao brabar um grito de independência, o povo
iria se juntar à sua causa. Mas o que ocorreu foi o contrário: o povo
não se manifestou; os criollos reagiram e o movimento de Miranda foi
logo debelado.
Um
exemplo que ilustra muito bem esta contradição interna entre criollos e
as classes perigosas (como eram chamados indígenas, negros e mestiços)
nos processos de independência é o que ocorreu em Quito (atual Equador)
em 1810. Neste ano, enquanto os criollos se reuniam numa Junta de
Governo e debatiam a possibilidade de uma emancipação, índios e mestiços
se revoltaram contra a Junta. Os criollos exploravam diretamente os
indígenas, e não o rei da Espanha – que vivia longe, do outro lado do
imenso oceano... Se havia
algum culpado pela sua miséria, eram os criollos, pensavam indígenas e
mestiços. A partir daí, podemos perceber como o próprio sistema colonial
criava estas contradições internas. Também é conveniente lembrar do
movimento de José Tomas Boves, um dos grandes inimigos de Bolívar.
Boves, que era espanhol e pertencia a uma categoria social de
fazendeiros criadores de gado (llanos) reuniu uma massa de camponeses,
pobres, mestiços e negros que em nome do rei da Espanha ocupou terras e
as distribuiu para seus seguidores miseráveis. O movimento de Boves é um
autêntico movimento de pobres contra ricos.
Ainda
podemos citar o exemplo do primeiro movimento de independência do
México (Nova Espanha) liderado pelo padre Miguel Hidalgo. Agregando
camponeses – em sua maioria indígenas ou mestiços – Hidalgo formou um
exército de cerca de 80 mil pessoas com o objetivo de chegar a Cidade do
México. Seu lema era “viva o rei, abaixo o mal governo!”. Seu
estandarte era a Virgem de Guadalupe. E seu objetivo era dar terra aos
indígenas e por fim ao regime de castas. Mais uma vez os criollos não
poderiam deixar o povo tomar as rédeas da independência e o movimento de
Hidalgo foi temporariamente abalado; ressurgindo mais tarde com um de
seus seguidores, o também padre José Maria Morelos.
2. Influências
Os
livros didáticos geralmente apontam como as grandes influências dos
movimentos de independência a Revolução Francesa de 1789 e o pensamento
iluminista. A elite criolla, urbana e bem instruída nas universidades
americanas e europeias, tinha acesso a leituras iluministas e aos seus
principais expoentes (Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Smith). Os
criollos mais radicais, tinham sua admiração por Marat, Robespierre e
Saint-Just. O fato é que a independência das Treze Colônias em 1776 e a
Revolução Haitiana (1794-1804) devem ser considerados como influências
muito mais decisivas do que a Revolução Francesa.
Em
primeiro lugar, a Espanha era aliada da França. Foi somente quando o
absolutista Fernando VII subiu ao trono, após uma trama palaciana, que o
governo francês (na época a ditadura militar de Napoleão) resolveu
invadir o país para não correr o risco de perder um aliado. A solução
que Napoleão encontrou foi colocar no trono da Espanha seu irmão, José,
em 1808. Assim, ele garantia um país aliado na Europa e também as
colonias espanholas na América como possível área de dominação francesa.
Por isso que após 1808 os movimentos de independência ganham força. Ao
mesmo tempo que os espanhóis passam a guerra aberta contra os invasores
franceses e o “rei” francês no trono de seu país.
A
independência das Treze Colonias é um fato que influênciou não só na
América mas também a própria Revolução Francesa. Ocorre que, após os
Estados Unidos consolidarem sua independência, eles adotaram uma postura
“isolacionista”, enquanto a França, fazia questão de expandir seus
ideais para o mundo. Mas a postura isolacionista dos Estados Unidos, não
impediu que se tornasse um exemplo para os criollos, principalmente
aqueles que queriam uma “independência sem mudanças”: o país rompeu com a
Inglaterra e continuou com a escravidão. Uma independência que começou
radical, mas terminou com um acordo entre elites (Constituição de 1787, ainda hoje em vigor, com várias emendas).
Por
outro lado, a Revolução Haitiana, que se estende de 1794 até 1804, é um
exemplo radical. Negros escravizados levantaram-se contra os brancos
proprietários de terra pra proclamar, ao mesmo tempo, a independência e o
fim da escravidão! Todos os países da América conheceram a escravidão e
o pesadelo de qualquer dono de escravizados é a revolta destes
trabalhadores contra sua autoridade. O lema do Haiti é “a união faz a
força” e, de fato, se escravizados se unissem, teriam força o suficiente
para pôr abaixo qualquer sistema colonial. Não é a toa, que a Revolução
Haitiana resultou num “bloqueio continental americano”
ao Haiti. De acordo com Jacob Gorender: "As dificuldades do Haiti não
se deveram, com o passar do tempo, somente ao domínio da agricultura de
subsistência e à ausência de perspectivas econômicas elevadas.
Deveram-se também, e não menos, à quarentena, que lhe impuseram até
mesmo as nações latino-americanas recém-independentes"[2]
3. Os projetos de independência
As
independências se desenvolvem num longo e complexo processo que vai de
(mais ou menos) 1808 até 1824 (batalha de Ayachuco – vitória final dos
criollos contra os exércitos espanhóis na Bolívia/Alto Peru). No
decorrer destes anos, os criollos não esboçaram apenas um, mas vários
projetos de independência.
Primeiramente,
temos que considerar que haviam vários “graus” de criollos. Havia,
obviamente, os mais abastados, donos de terras e minas que possuíam
levas de mão de obra a sua disposição (escravizados, livres e servis
como a maioria esmagadora dos indígenas). Mas também havia os criollos,
que embora tenham um pedaço de terra, não eram tão ricos e viviam
modestamente.
Esta
situação, muitas vezes aproximava alguns criollos às classes perigosas e
isto fez com que projetos “alternativos” ao “independência sem
mudanças” da elite criolla, se tornassem um problema maior para os ricos
do que a própria resistência espanhola na época das guerras de
independência.
Exemplos
não nos faltam. Um deles é o projeto de Hidalgo e Morelos, ao qual
acabamos de nos referir. Ambos eram padres do clero secular, sendo assim
tinham contato com os mais desfavorecidos pelo sistema colonial,
explorados pelos ricos criollos. Hidalgo foi morto em 1811, mas seu
discípulo, Morelos, continuou seu projeto de independência no México. Um
projeto radical e socializante, que pregava a distribuição de terras, o
fim da escravidão e dos tributos e, principalmente, a soberania
popular.
Morelos
representava um perigo tão grande para a elite criolla, que estes
acabaram adotando um modelo conservador de independência semelhante ao
do Brasil, com um imperador: o militar Agustín Iturbide. Só para citar
um exemplo, Morelos convocou uma assembleia constituinte para o México, o
que despertou a fúria da elite criolla. Ao invés de adotar a
constituição de Morelos (redigida sob inspiração dos ideais citados
acima: distribuição de terras, o fim da escravidão, dos tributos e
soberania popular), os criollos resolveram adotar a constituição espanhola de 1813!
O
movimento mais organizado e radical, que representou a mais original
alternativa às independências conservadoras da elite criolla, foi a Liga
Federal de José Artigas.
José
Artigas era um criollo de origem modesta que conseguiu entrar numa
milicia chamada corpo de blandengues. A função dos bandengues era
policiar as terras da Banda Oriental (atual Uruguai) contra os
indígenas. Mas ao entrar em contato com os indígenas, Artigas e sua
tropa passaram a mediar conflitos e não mais expulsa-los das terras.
Assim, ele percebeu que faltava terra para os índios... e terra para
eles havia, sempre houve.
Quando
o movimento de independência iniciou em Buenos Aires (1810), Artigas
foi até a capital do vice-reino da Prata (que na época agregava o
Paraguai, Uruguai, Bolívia, além da própria Argentina) lutar contra os
espanhóis. Quando volta para a Banda Oriental, requisita auxílio dos
buenairenses para libertar Montevidéu dos monarquistas. Mas a ajuda não
vem. Artigas acaba formando um exército – de criollos, mestiços, negros e
índios – que lutam juntos contra o poder colonial. Por fim, os
artiguistas tomam Montevidéu, mas inicia a reação contra seu movimento.
De
1813 até 1820, Artigas e seus seguidores formam a Liga Federal dos
Povos Livres. Uma república federativa que englobava as províncias do
norte da atual Argentina, o Uruguai e parte do Rio Grande do Sul.
Artigas distribuiu terras. O seu lema era “que os mais necessitados
sejam os maiores beneficiados”. Mas era difícil por em prática suas
ideias, isto porque, Artigas e seus seguidores, lutavam paralelamente
contra as tropas de Buenos Aires, contra os luso-brasileiros e contra os
exércitos da Espanha! Podemos dizer que a independência da Argentina
(só proclamada em 1816) é uma reação contra Artigas.
Embora
estes projetos alternativos não tenham tido uma continuidade, falar
sobre as independências sem cita-los, é, no mínimo, ocultar uma parte
essencial deste período da história americana.
***
Os
tópicos e as analises acima, são apenas recortes. Foram feitos desta
forma para facilitar a compreensão dos processos; e assim dar um
subsídio empírico para se pensar os movimentos e projetos de
independência. Outras leituras, de outros historiadores, são possíveis,
sem dúvida. Cabe, neste sentido, levar em conta a criatividade de cada
professor/historiador.
É
importante que se diga que o conteúdo das independências da América
Latina (de colonização espanhola) é um conteúdo que permanece relegado a
um segundo plano. Muitos livros didáticos contribuem para isto,
principalmente porque adotam a velha “história dos grandes personagens”.
Bolívar é geralmente o mais citado, mas pouco se compreende a
complexidade deste personagem – que serviu, por muito tempo de modelo ao
pensamento conservador da Venezuela, até ser “ressuscitado” numa
leitura de esquerda por Hugo Chavez.
Tratar
com maior abrangência dos processos de independência da América, como
um todo, é apenas uma parte da luta contra o eurocentrismo na história –
principalmente na sala de aula.
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Notas:
[1]
O termo “pacto colonial”, disseminado por uma historiografia antiga,
mas ainda cheia de força, não é condizente com a situação objetiva das
relações metrópole-colônias. Isto porque a ideia de “pacto” sugere que
havia um acordo amigável entre colonos/criollos e os governantes
metropolitanos. Uma vez que a colonização europeia da América está
dentro das práticas mercantilistas, em que o governo (o Estado
Absolutista) se esforçava para manter o controle sobre todas as
atividades econômicas, não se pode dizer que houve um “pacto amigável” e
sim uma “imposição” característica da própria lógica mercantilista: os
colonos tinham a função de enriquecer a metrópole, nada além disso –
essencialmente não era algo aberto a negociações. Sendo assim, o termo
mais correto a ser utilizado é sistema colonial, uma vez que “pacto” da a
ideia de “unidade”, enquanto que “sistema” parece abranger de forma
mais adequada a situação das diversas práticas que mantinham as relações
metrópole-colônias. Ademais, esta questão de “pacto colonial” pode ser
debatida nas salas de aula e nos grupos de estudo.
[2] O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18 (50), 2004, p. 301.
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Sobre o Autor:
|
Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras. Um defensor da justiça social, da preservação do meio ambiente, da Petrobras e das causas nacionalistas.
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
HISTÓRIA - Pensando as independências na América Latina.
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