Mídia cria os fanáticos da "Lava-Jato"
Por Osvaldo Bertolino, em seu blog:
Doutor Sérgio Moro. É assim que muitos incautos pelas ruas se referem ao juiz que comanda a ação persecutória que recebeu o nome de “Operação Lava Jato”. Há um culto ao doutor no Brasil, especialmente nas camadas médias, envolvidas por lances patéticos da mídia para divertir o público, como se neles não estivesse hipotecado nosso futuro como nação. Cria-se, desse modo, legiões de incautos, cegos e fanatizados, sem a menor noção do que há por baixo de um tapete cuidadosamente vigiado pelos setores dominantes da sociedade.
Essa fanatização tem a finalidade de conter o crescente questionamento ao poder inflado dos setores ideologicamente dominantes, tendência que vem da Abolição, da Independência, da proclamação da República e da Revolução de 1930. O ciclo de governos Lula-Dilma deu mais um impulso nessa tendência ao engajar milhões de brasileiros que se multiplicavam à margem da sociedade organizada, sem cidadania e sem poder aquisitivo, ao universo político e econômico do país.
Povo empreendedor e criativo
Culturalmente, por mais que certos historiadores e antropólogos digam - corretamente, registre-se - que nossas antigas raízes coloniais e escravistas continuam crescendo, já mudamos muito. Somos hoje um povo empreendedor e criativo na vida cotidiana; um povo informal, iconoclasta, sempre propenso a diluir hierarquias rígidas de status ou de função. Mas os “doutores” não estão dispostos a entregar a rapadura.
Um caso recente, que ganhou certa repercussão na mídia, explica porque figuras obscuras, como Sérgio Moro, de uma hora para outra são alçadas à condição de autoridade suprema, com direito a pisotear as leis e garrotear o Estado Democrático de Direito.
Trata-se do juiz Antônio Merreiros, de São Gonçalo (RJ), que entrou na Justiça exigindo ser tratado por “senhor”, ou “doutor”, pelos porteiros do prédio onde mora e ganhou a causa. Se um porteiro tiver a pachorra de chamá-lo de “você”, terá de pagar multa de 100 salários mínimos. Merreiros (doutor Merreiros, desculpem) teria dito: “Doutor é uma palavra que significa pessoa formada e é assim que quero ser chamado.”
Origem no passado escravagista do país
Antes de prosseguir, é preciso esclarecer, embora sucintamente, o conceito de “doutor”. Segundo o doutor Cláudio Moreno, do site “Sua Língua”, só pode ser chamado assim aquele que cumpriu as etapas constantes no curso de doutorado, incluindo a defesa de uma tese original diante de uma banca composta por cinco outros doutores. Fora do mundo acadêmico, ainda segundo o doutor Cláudio Moreno, são também chamados de “doutores” os médicos e os advogados.
De acordo com ele, isso deve ser resquício do ensino colonial, quando os jovens brasileiros abonados iam à Europa estudar medicina e direito. Hoje em dia, em um ambiente em que historicamente pouca coisa acontece sem a marca da discriminação social “doutor” também é qualquer um com algum estudo ou cuja aparência sugira que pertence às classes dominantes. É o “doutor” usado por guardadores de carro, porteiros, vendedores dos semáforos.
Muitos desses “doutores” - os acadêmicos e os informais - agem como se o simples fato de ostentar símbolos de poder desobrigasse alguém de prestar contas, a si mesmo ou à sociedade, dos passos que executam. O doutor Sérgio Moro é um exemplo típico. Ele se enquadra naquela categoria de gente que se beneficia da fragmentação social - que tem origem no passado escravagista do país - para impor seu autoritarismo. Moro é daqueles que veem a grande massa de brasileiros pobres como seres primevos, por serem negros, índios, mestiços.
Escravidão até as barbas do século XX
Para eles, os brasileiros pobres devem ser despossuídos a ponto de não ter direito sobre seu próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante e pelos suplícios impostos pelos patrões. A submissão funciona como sucedâneo da lei - uma anomalia no Estado Democrático de Direito. Em um país que manteve a escravidão até as barbas do século XX - caso único no mundo - é, de certa forma, natural que esta ideologia esteja impregnada na carne dessa elite.
E por isso há entre os dois extremos sociais brasileiros uma desconfiança recíproca, uma indisposição a selar contratos sociais, uma oposição natural a qualquer tentativa de organização conjunta, nacional. A tradição brasileira é de rompimento violento desses tratados sempre que a direita se acha no direito de proteger suas benesses, suas maracutaias. Vem daí o inconsciente coletivo do país de que a política e a Justiça obedecem sempre a interesses minoritários e poderosos, de que Estado é sinônimo de opressão, de que pactos democráticos nunca favorecem o cidadão comum.
Em dois ou três séculos, pouco mudou na essência do modo como a elite e o povo se veem e se relacionam. Uns continuam abusando do seu poder inchado, sabotando a trama social existente no país e nutrindo ódios de classe. Outros continuam lutando com todas as forças pela sobrevivência. O pobre sentindo muita revolta por se perceber confinado na base da pirâmide social e o rico achando que a solução mais eficaz para erradicar a pobreza é o extermínio dos pobres.
Nunca se denunciou tanto
O mais revoltante, no entanto, é que brasileiro rico não teme a lei: ou ele salta a barreira ou passa por baixo, mas poucos se detêm na fronteira do direito. Tomemos como exemplo o resultado do noticiário da mídia, que certamente leva os incautos - os fanáticos da “Lava Jato” - a imaginar que logo o Brasil será um dos países mais honestos do mundo. Isso ocorre porque as redações publicam livremente as mais duras denúncias em relação a quaisquer denúncias.
Tomemos ainda a quantidade de comissões de inquérito no Congresso Nacional, com poderes equivalentes e recursos superiores aos da Justiça para convocar pessoas e requisitar informações, que se sucedem na investigação de tudo que se possa imaginar. E o Ministério Público, que dia sim, dia não, acusa alguém de alguma coisa. E ainda a Polícia Federal, que está sempre tocando operações com algum nome de meter medo: Anaconda, Albatroz, Lince, Vampiro, Farol da Colina, Satiagraha e assim por diante.
Levemos em conta, por fim, que vivemos em um mundo no qual parlamentares, promotores ou delegados de polícia têm facilidades inéditas para quebrar o sigilo legal que protege as contas bancárias, os telefonemas ou as declarações de imposto de renda das pessoas. Nunca se denunciou tanto, e nunca tantos foram denunciados. Conclusão: quem é que teria peito, num país como este, de fazer alguma coisa errada? A resposta é: cada vez mais gente. A prova disso está, precisamente, na própria quantidade de denúncias que a cada dia surgem no noticiário. O problema é que há denúncias e denúncias.
Dinheiro, relacionamentos e esperteza
Quando se mistura tudo no mesmo balaio de gatos, o resultado desse ambiente de inquisição geral, irrestrita e permanente, é que o delinquente envolvido de fato em delitos contra o erário ou a função pública tem aparição fugaz na primeira página dos jornais ou no noticiário da TV e do rádio - em contraste com a superexposição dos presos seletivos com base em acusações de fontes de quinta categoria surgidas em farsas como o “mensalão” e a “Operação Lava Jato”.
A seletividade dos chefes das investigações, mais o filtro da mídia, separam o joio do trigo. E aí joga-se o trigo na cadeia e libera-se o joio; com estômago firme, bons advogados e a ajuda da mídia o acusado com indícios de provas robustas acaba saindo vivo da confusão. Com o passar do tempo, seu caso vai sendo esquecido e a partir daí tudo se resume a aproveitar as vantagens incomparáveis que o sistema judicial brasileiro oferece aos acusados que dispõem de dinheiro, relacionamentos e esperteza. Possivelmente não existe no mundo civilizado um sistema judicial tão bem preparado para não fornecer justiça como o do Brasil.
A parceria de inquéritos malfeitos, promotores e delegados cujo desempenho é julgado pelo número de acusações que fazem e por suas aparições na mídia, e não pelas condenações baseadas na lei que conseguem, e tribunais que a própria legislação tornou paraplégicos só pode mesmo resultar nisso. Resumo da ópera: o caso já não é de esperar que a aplicação da justiça seja mais rápida; é pedir, simplesmente, que se torne possível. Que se repeite o Estado Democrático de Direito.
Doutor Sérgio Moro. É assim que muitos incautos pelas ruas se referem ao juiz que comanda a ação persecutória que recebeu o nome de “Operação Lava Jato”. Há um culto ao doutor no Brasil, especialmente nas camadas médias, envolvidas por lances patéticos da mídia para divertir o público, como se neles não estivesse hipotecado nosso futuro como nação. Cria-se, desse modo, legiões de incautos, cegos e fanatizados, sem a menor noção do que há por baixo de um tapete cuidadosamente vigiado pelos setores dominantes da sociedade.
Essa fanatização tem a finalidade de conter o crescente questionamento ao poder inflado dos setores ideologicamente dominantes, tendência que vem da Abolição, da Independência, da proclamação da República e da Revolução de 1930. O ciclo de governos Lula-Dilma deu mais um impulso nessa tendência ao engajar milhões de brasileiros que se multiplicavam à margem da sociedade organizada, sem cidadania e sem poder aquisitivo, ao universo político e econômico do país.
Povo empreendedor e criativo
Culturalmente, por mais que certos historiadores e antropólogos digam - corretamente, registre-se - que nossas antigas raízes coloniais e escravistas continuam crescendo, já mudamos muito. Somos hoje um povo empreendedor e criativo na vida cotidiana; um povo informal, iconoclasta, sempre propenso a diluir hierarquias rígidas de status ou de função. Mas os “doutores” não estão dispostos a entregar a rapadura.
Um caso recente, que ganhou certa repercussão na mídia, explica porque figuras obscuras, como Sérgio Moro, de uma hora para outra são alçadas à condição de autoridade suprema, com direito a pisotear as leis e garrotear o Estado Democrático de Direito.
Trata-se do juiz Antônio Merreiros, de São Gonçalo (RJ), que entrou na Justiça exigindo ser tratado por “senhor”, ou “doutor”, pelos porteiros do prédio onde mora e ganhou a causa. Se um porteiro tiver a pachorra de chamá-lo de “você”, terá de pagar multa de 100 salários mínimos. Merreiros (doutor Merreiros, desculpem) teria dito: “Doutor é uma palavra que significa pessoa formada e é assim que quero ser chamado.”
Origem no passado escravagista do país
Antes de prosseguir, é preciso esclarecer, embora sucintamente, o conceito de “doutor”. Segundo o doutor Cláudio Moreno, do site “Sua Língua”, só pode ser chamado assim aquele que cumpriu as etapas constantes no curso de doutorado, incluindo a defesa de uma tese original diante de uma banca composta por cinco outros doutores. Fora do mundo acadêmico, ainda segundo o doutor Cláudio Moreno, são também chamados de “doutores” os médicos e os advogados.
De acordo com ele, isso deve ser resquício do ensino colonial, quando os jovens brasileiros abonados iam à Europa estudar medicina e direito. Hoje em dia, em um ambiente em que historicamente pouca coisa acontece sem a marca da discriminação social “doutor” também é qualquer um com algum estudo ou cuja aparência sugira que pertence às classes dominantes. É o “doutor” usado por guardadores de carro, porteiros, vendedores dos semáforos.
Muitos desses “doutores” - os acadêmicos e os informais - agem como se o simples fato de ostentar símbolos de poder desobrigasse alguém de prestar contas, a si mesmo ou à sociedade, dos passos que executam. O doutor Sérgio Moro é um exemplo típico. Ele se enquadra naquela categoria de gente que se beneficia da fragmentação social - que tem origem no passado escravagista do país - para impor seu autoritarismo. Moro é daqueles que veem a grande massa de brasileiros pobres como seres primevos, por serem negros, índios, mestiços.
Escravidão até as barbas do século XX
Para eles, os brasileiros pobres devem ser despossuídos a ponto de não ter direito sobre seu próprio corpo e cuja vida deve ser definida pelo trabalho cruciante e pelos suplícios impostos pelos patrões. A submissão funciona como sucedâneo da lei - uma anomalia no Estado Democrático de Direito. Em um país que manteve a escravidão até as barbas do século XX - caso único no mundo - é, de certa forma, natural que esta ideologia esteja impregnada na carne dessa elite.
E por isso há entre os dois extremos sociais brasileiros uma desconfiança recíproca, uma indisposição a selar contratos sociais, uma oposição natural a qualquer tentativa de organização conjunta, nacional. A tradição brasileira é de rompimento violento desses tratados sempre que a direita se acha no direito de proteger suas benesses, suas maracutaias. Vem daí o inconsciente coletivo do país de que a política e a Justiça obedecem sempre a interesses minoritários e poderosos, de que Estado é sinônimo de opressão, de que pactos democráticos nunca favorecem o cidadão comum.
Em dois ou três séculos, pouco mudou na essência do modo como a elite e o povo se veem e se relacionam. Uns continuam abusando do seu poder inchado, sabotando a trama social existente no país e nutrindo ódios de classe. Outros continuam lutando com todas as forças pela sobrevivência. O pobre sentindo muita revolta por se perceber confinado na base da pirâmide social e o rico achando que a solução mais eficaz para erradicar a pobreza é o extermínio dos pobres.
Nunca se denunciou tanto
O mais revoltante, no entanto, é que brasileiro rico não teme a lei: ou ele salta a barreira ou passa por baixo, mas poucos se detêm na fronteira do direito. Tomemos como exemplo o resultado do noticiário da mídia, que certamente leva os incautos - os fanáticos da “Lava Jato” - a imaginar que logo o Brasil será um dos países mais honestos do mundo. Isso ocorre porque as redações publicam livremente as mais duras denúncias em relação a quaisquer denúncias.
Tomemos ainda a quantidade de comissões de inquérito no Congresso Nacional, com poderes equivalentes e recursos superiores aos da Justiça para convocar pessoas e requisitar informações, que se sucedem na investigação de tudo que se possa imaginar. E o Ministério Público, que dia sim, dia não, acusa alguém de alguma coisa. E ainda a Polícia Federal, que está sempre tocando operações com algum nome de meter medo: Anaconda, Albatroz, Lince, Vampiro, Farol da Colina, Satiagraha e assim por diante.
Levemos em conta, por fim, que vivemos em um mundo no qual parlamentares, promotores ou delegados de polícia têm facilidades inéditas para quebrar o sigilo legal que protege as contas bancárias, os telefonemas ou as declarações de imposto de renda das pessoas. Nunca se denunciou tanto, e nunca tantos foram denunciados. Conclusão: quem é que teria peito, num país como este, de fazer alguma coisa errada? A resposta é: cada vez mais gente. A prova disso está, precisamente, na própria quantidade de denúncias que a cada dia surgem no noticiário. O problema é que há denúncias e denúncias.
Dinheiro, relacionamentos e esperteza
Quando se mistura tudo no mesmo balaio de gatos, o resultado desse ambiente de inquisição geral, irrestrita e permanente, é que o delinquente envolvido de fato em delitos contra o erário ou a função pública tem aparição fugaz na primeira página dos jornais ou no noticiário da TV e do rádio - em contraste com a superexposição dos presos seletivos com base em acusações de fontes de quinta categoria surgidas em farsas como o “mensalão” e a “Operação Lava Jato”.
A seletividade dos chefes das investigações, mais o filtro da mídia, separam o joio do trigo. E aí joga-se o trigo na cadeia e libera-se o joio; com estômago firme, bons advogados e a ajuda da mídia o acusado com indícios de provas robustas acaba saindo vivo da confusão. Com o passar do tempo, seu caso vai sendo esquecido e a partir daí tudo se resume a aproveitar as vantagens incomparáveis que o sistema judicial brasileiro oferece aos acusados que dispõem de dinheiro, relacionamentos e esperteza. Possivelmente não existe no mundo civilizado um sistema judicial tão bem preparado para não fornecer justiça como o do Brasil.
A parceria de inquéritos malfeitos, promotores e delegados cujo desempenho é julgado pelo número de acusações que fazem e por suas aparições na mídia, e não pelas condenações baseadas na lei que conseguem, e tribunais que a própria legislação tornou paraplégicos só pode mesmo resultar nisso. Resumo da ópera: o caso já não é de esperar que a aplicação da justiça seja mais rápida; é pedir, simplesmente, que se torne possível. Que se repeite o Estado Democrático de Direito.
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