Quarta, 24 de fevereiro de 2016
“Impeachment levaria um ano e meio, quase todo mandato de Dilma”
Conversar com o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro
é entender um pouco mais o Brasil a partir de uma perspectiva exterior.
Ele avalia a ascensão e o declínio do país no cenário internacional nos
últimos anos e propõe comparações entre as crises daqui e da Europa.
Professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne, o historiador fez
praticamente toda sua carreira na França, para onde mudou-se ainda
durante a ditadura militar brasileira. Hoje dá aulas na Fundação Getulio
Vargas, em São Paulo, e ainda orienta doutorandos da Sorbonne. Com uma
formação ampla, aborda temas da história brasileira até política
econômica e internacional. Em entrevista ao El País reflete sobre o Brasil e o cenário político atual.
A entrevista é de André de Oliveira, publicada por El País, 23-02-2016.
Eis a entrevista.
O Brasil começou a década como um dos atores que mais atraíam atenção no cenário global, essa impressão era um exagero?
Eu passei muito tempo
fora do Brasil, sou de uma época em que presidente brasileiro no
exterior era vaiado. Não à toa, eram os militares. A situação externa
brasileira só foi melhorar com o FHC, mas só mudou com o Lula. A nomeação de José Graziano na direção da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] e de Roberto Azevêdo na direção da OMC [Organização Mundial do Comércio] são exemplos claros da política externa exitosa dos anos Lula. A diplomacia brasileira passou a ter um papel muito significativo, o ministro Celso Amorim teve um papel importante no G20,
em várias outras iniciativas de política internacional e expandiu os
horizontes do Brasil no mundo. Hoje, temos mais embaixadas na África do
que na América Latina, o que acabou sendo fundamental para a eleição de Azevêdo, que, apoiado pelas delegações africanas, venceu o candidato mexicano apoiado pelos EUA. Desse ponto de vista, a empolgação dentro e fora do Brasil não era uma ficção. Aquela capa da The Economist, em que o Cristo Redentor aparecia sendo lançado como um foguete, era um exagero do ponto de vista econômico, mas não do geopolítico.
E o que fez o país perder essa relevância? Só as crises econômicas e políticas explicam?
Com a Dilma,
o Brasil voltou à mediocridade que sempre reinou no campo da política
externa. Ela sempre foi extremamente provinciana e voltou a ser. Um
exemplo caro disso é que durante as eleições, por exemplo, não se debate
sobre política externa. Só entram, de maneira indireta, questões sobre
chavismo, Venezuela, Cuba. Isso não é debate. Aí também tem o fato de que Dilma
nunca se interessou pela questão exterior, não toma iniciativas
internacionais importantes. Hoje a gente esqueceu os nomes dos ministros
do exterior, são pessoas que não têm relevo e isso vai de par com a
perda de um encanto e relevância brasileira.
2015 foi talvez o ano mais duro politicamente dos últimos tempos. Qual é seu prognóstico daqui para frente?
"No Brasil as comparações com casos do exterior não são bem feitas. A Lava Jato é abertamente inspirada na Mani Pulite, mas essa operação foi problemática"
A questão do impeachment, que pautou grande parte das discussões, ficou bastante improvável no Congresso depois da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). E, por outro lado, no TSE
(Tribunal Superior Eleitoral) se tudo acontecer como quer a oposição, o
processo levaria no mínimo um ano e meio, o que nos jogaria
praticamente para o fim do Governo Dilma. Invalidar um
mandato de alguém que está na reta final seria um despropósito. Desse
ponto de vista, estamos em um momento de esgotamento da ofensiva contra o
Governo e também do assédio ao Governo.
E não é a primeira vez que a via do TSE é testada pela oposição...
É verdade. Logo no início de 2015, o PSDB
pediu a recontagem de votos. Ela foi feita e, no final, eles deram uma
declaração de que não conseguiram chegar a nenhuma conclusão. Esse fato
com certeza vai pesar em qualquer decisão futura do Tribunal. Além
disso, é importante dizer uma coisa. Muito se falou sobre a margem
apertada com que Dilma venceu as eleições de 2014
e isso não é verdade. 3,5 milhões de votos a mais é muita coisa. As
vantagens sempre são mínimas nas democracias e dá pra dizer que nunca
mais um presidente vai ser eleito com tranquilidade no Brasil, as
posições já estão muito cristalizadas. Na França, o único exemplo
factível de comparação, por ter uma eleição presidencial de dois turnos,
a diferença entre Hollande e Sarkozy foi pequena também. Isso é normal.
E como você avalia o papel da Justiça nessa crise política?
No Brasil as comparações com casos do exterior não são bem feitas. A Lava Jato é abertamente inspirada na Mani Pulite
[que investigou casos de corrupção e resultou no fim de partidos
políticos na Itália], mas essa operação foi problemática. Um dos
resultados foi que Berlusconi acabou primeiro-ministro
e, se caiu depois, não foi pelas mãos da operação, mas por causa de uma
intervenção da União Europeia. Aqui no Brasil, não existe nenhuma
instância suprarregional que poderia intervir ou reavaliar decisões. É o
mesmo caso do julgamento do mensalão.
Lá não houve uma possibilidade de recall, ou seja, os julgados não
puderam recorrer a uma segunda instância, o que é básico em países com
democracia consolidada. Primeiro porque foram julgados direto no STF, segundo porque não podiam recorrer a nenhuma instância supranacional, como há, na Europa, a corte de Luxemburgo. Eu sou bem cioso em relação à presunção da inocência e acho a coerção por prisão que tem havido algo escandaloso.
De qualquer jeito, a crise continua aí. O que vai tirar a política da inércia?
É importante dizer que
nós estamos em uma situação grave, mas que, quando olho para fora, vejo
outros países com ainda mais problemas. Velhos Estados, como Espanha e
França, convivem com crises de representatividade em que se somam
problemas de identidade nacional. O Sarkozy, por
exemplo, queria criar um ministério da identidade nacional. Há problemas
que colocam em questão a noção de cidadania e isso não existe no
Brasil, um país de dimensões continentais. O que há no Brasil é um
Governo na defensiva, impotente. Acredito que o fato que fará com que as
coisas comecem a desanuviar um pouco o ambiente são as eleições
municipais. No Brasil, elas representam o fim e o começo da política.
Como assim?
"O Alckmin
está testando com o João Dória a possibilidade de se impor como
candidato a presidente em 2018. Se ele não conseguir, é bem possível que
saia do PSDB"
A instância mais antiga
de organização das oligarquias é a Câmara municipal. O colonato se
organizava ali e é possível ver sua importância no fato de que o
reconhecimento do imperador, por exemplo, foi feio exatamente por essas
câmaras municipais. Não havia outra assembleia naquele momento, então se
vê, por aí, que é uma instância muito antiga. Outra coisa é que as
eleições municipais nunca se interromperam completamente no Brasil.
Durante a ditadura militar foram interrompidas nas
capitais e em cidades com grande população, mas continuaram acontecendo
em alguns locais. Isso é muito particular, porque dá uma força, não de
tradição democrática, mas de tradição parlamentar. Um dos resultados
disso é que no Brasil nunca houve a figura do ditador, tão comum a
vários países hispano-americanos. Não é que houvesse democracia, mas é
que a descentralização oligárquica dava uma feição diferente ao jogo
político. Essa é a importância histórica, por isso o fim e o começo da
política.
Elas vão redistribuir
as cartas na política nacional. O sujeito que se elege prefeito é o cara
que já condiciona a eleição do deputado estadual e do deputado federal.
Toda a vinculação da próxima eleição legislativa vai ser mapeada agora,
inclusive por causa da questão do financiamento das campanhas que, pela
primeira vez, não poderá contar com doação de empresas. O futuro
candidato a deputado tem todo o interesse em aparecer do lado de um
prefeito ou vereador que está em trajetória ascendente. Isso vai
reorganizar as coisas.
Como os partidos irão lidar com essa proibição?
Ninguém sabe como isso
vai funcionar direito. A meu ver, há duas questões centrais. A primeira é
a possibilidade de que os atuais prefeitos sejam reeleitos. Desafiar um
prefeito já estabelecido tem um custo altíssimo e sem poder contar com
fundos de financiamento empresarial ficará complicado. É possível que o
cenário fique cristalizado de uma maneira rígida. Isso é uma
possibilidade ruim que puxa a outra questão envolvida no assunto. Sem
fundos, os partidos terão que contar com militância e mobilização. Vão
conseguir? Nesse sentido, o PT, que passa por um
momento muito difícil, é o único que tem uma vantagem relativa. O Brasil
tem cerca de 5.500 municípios no Brasil, eles tem diretórios em 4.200. PSDB e PMDB têm muito menos que isso.
Desse ponto de vista, São Paulo é bem importante...
Sim. É uma cidade de 12
milhões de habitantes com um orçamento alto e fundos de tributação
próprios. É um lugar de efeito simbólico muito grande para a eleição
nacional e que, no momento, vive um caso de exemplaridade de gestão. O
prefeito Haddad
está mostrando isso ao ter feito uma administração que ganhou grande
visibilidade internacional. Hoje, por exemplo, a prefeitura de São Paulo
tem técnicos competentes para gerir o orçamento e conseguir parcerias
com órgãos internacionais e nacionais, como o Banco Mundial, o BID e o BNDES.
Isso é uma coisa que não fica evidente e que é muito importante, é um
caso raro na América Latina e até em países europeus, como Espanha e
Portugal, que tiveram problemas para lidar com as normas europeias de
demanda de fundos. São Paulo, assim, é um trunfo para o PT.
Mas o petista, apesar de bem avaliado internacionalmente, tem problemas graves de aprovação.
Aí entra o outro lado interessante dessas eleições municipais: é que o Haddad pode ser reeleito por causa da desordem do outro lado, da oposição. Há um racha no PSDB. Visivelmente, o Alckmin está testando com o João Dória, a possibilidade de se impor como candidato a presidente em 2018. Se ele não conseguir, é bem possível que saia do PSDB. O mesmo vale para o José Serra, se o Alckmin ganhar, talvez o Serra saia do partido. O que estamos vendo é que a eleição municipal pode ser o primeiro indício do fim do PSDB em São Paulo, que representa, por si só, metade do PSDB. No lado do PT, o Haddad
representa a sobrevivência política do partido em um momento em que a
oposição se prepara para tentar dar o golpe final. As eleições do
segundo semestre representam a sobrevivência para o PT e a consolidação para o PSDB. Os dois partidos nasceram em São Paulo e podem ter o futuro definido agora.
"Velhos Estados europeus convivem com crises de representatividade em que se somam problemas de identidade nacional. Isso não existe no Brasil"
"Velhos Estados europeus convivem com crises de representatividade em que se somam problemas de identidade nacional. Isso não existe no Brasil"
E você arrisca algum cenário para depois das eleições?
O fato de o Lula
ainda ser considerado o melhor presidente da história do país, apesar
dos ataques cotidianos na mídia tradicional, não é de se desprezar. Digo
isso porque esse é um traço forte do caso brasileiro: o PT não tem nenhum apoio na mídia, ela é inteira antipetista. Se a comparação pode ser feita, é o contrário do que acontece nos EUA, por exemplo, onde o Obama é perseguido, mas tem os dois maiores jornais do país ao seu favor. Aqui, apoiando o PT,
só há revistas de circulação baixa e sites de nicho. É claro que sua
imagem está abalada agora, mas o PSDB também está desgastado. O PT cai muito, mas o PSDB não ganha. Por isso, há aí, mais uma vez, um espaço para outro candidato crescer, como a Marina.
O que ficou claro no Brasil é que ninguém aguenta quatro mandatos de um
mesmo partido, porque sempre há corrupção, porque há incompetências,
porque há um desgaste das palavras de ordem, porque a militância
desaparece e o partido perde contato com a base. Não dá para reescrever
as coisas, mas isso deve deixar ensinamentos para as lideranças
políticas no futuro.
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